Raniero Panzieri – Democracia direta e controle operário

[Avanti!, Milão, 5 de agosto de 1958]

 

Alguns dias atrás, Paolo Spriano se ocupou, no Unitá[1], da questão – definida como “uma questão teórica atual” – da democracia direta, analisando alguns textos sobre este tema que foram publicados no Mondo Operaio e no Contemporaneo.

É certamente positivo – digamos logo – que essa questão, até hoje geralmente colocada de lado, seja colocada em primeiro plano na imprensa comunista; e no artigo de Spriano estão muitas coisas, em nossa opinião, também positivas, inclusive a referência a alguns aspectos, que em geral ficam na sombra, da declaração programática do VIII Congresso comunista.

No entanto, parece necessário fazer duas observações – uma de método e uma de conteúdo – que exprimem e dão a medida do nosso desacordo com o que Spriano escreve.

Em primeiro lugar (é a questão metodológica, primeiro o método e depois o conteúdo), Spriano erra ao discutir apenas os aspectos do debate que acontece no Mondo Operaio, escolhendo unilateralmente e esquecendo o ponto de partida e o fio lógico que conduz o desenvolvimento desse debate: se tivesse feito as coisas de outro modo, não apenas seu método teria sido melhor, mas certamente os argumentos óbvios que ele fez certamente teriam permanecido na caneta e certas questões não lhe teriam escapado.

A observação de conteúdo se refere ao salto lógico que vi no artigo em questão. Primeiro, Spriano, se referindo no Mondo Operaio, ao certeiro artigo de Colletti no Contemporaneo, ao VIII Congresso do PCI[2], faz duas afirmações de grande importância, escrevendo que a construção da democracia direta é parte integrante do socialismo e da luta pelo socialismo, e que essa não é reenviada para uma fase superior do desenvolvimento (o comunismo), mas é iniciada subitamente no curso da luta pelo poder socialista e no momento de seu exercício. Logo depois, ele faz desaparecer nas mangas, como em um jogo de prestidigitação, essas duas afirmações – que a nós nos parecem, pelo contrário, duas afirmações importantes – e reduz a luta pela democracia direta na sociedade italiana de hoje à atividade dos partidos e dos sindicatos, rejeitando o controle operário como uma posição intelectualista e livresca. Em suma, feita a declaração de princípio, tudo volta a ser como antes, salvo a sacrossanta afirmação de que a luta pelo socialismo não pode ser esgotada no parlamento, mas é conduzida nas cidades: afirmação sacrossanta, dizíamos, mas também obviamente porque discutíamos entre socialistas e comunistas, e não com socialdemocratas.

Dizemos logo que parece ser muito cômodo e impossível liquidar o problema com duas piadas afirmando que toda busca e toda luta pela democracia direta, que não se esgota nos partidos e nos sindicatos, é irreal, abstrata, e além disso intelectualista e livresca. Se nos limitássemos a discutir apenas aquilo que está completamente dado; se devêssemos nos ocupar do controle dos trabalhadores sobre a produção apenas quando esse controle fosse, pelo menos em parte, uma realidade ou uma reivindicação orgânica e avançada das massas, então evidentemente não seríamos nem socialistas nem comunistas, mas apenas conservadores (pelo menos no sentido estrito de que o companheiro Gomulka e os polacos dão a essa palavra). Intelectualista e livresca é a antecipação programática de fenômenos e perspectivas das quais não existe traço na realidade; não é intelectualista nem livresca a tentativa de conectar e explicar fenômenos cujas raízes já estão dadas; tentar elaborar, lhes dando um corpo lógico, reivindicações que estão objetivamente presentes na luta de massas, ainda que não sejam exprimidas na política atual do partido da classe.

Retornaremos a isto mais adiante. Nesse ponto, na verdade, é preciso nos determos na consideração da tese que reduz a democracia direta às atividades dos partidos e sindicatos. No nosso país – é verdade – partidos e sindicatos, em uma mistura na qual atuam fora do parlamento e dão força e solidez à luta de massas, são instrumentos de uma democracia  mais geral. Mas a questão, neste ponto, é quais são os objetivos da luta de massas. Os partidos podem promover a luta pelos objetivos políticos gerais e, no entanto, muitas vezes têm uma tendência – não ocasional, mas orgânica – a instrumentalizar a luta em torno da atividade parlamentar. Os sindicatos (os mesmos sobre os quais, aliás, pesa hoje o perigo da parlamentarização!) são portadores de instâncias reivindicativas, de defesa do nível de vida dos trabalhadores. Nem partidos, nem sindicatos se colocam, nem podem se colocar propriamente, primeiramente a questão de uma ação no interior das estruturas produtivas: eles só podem estimular essa ação, incluindo-a organicamente em sua própria política. O problema continua, apesar disso, insolúvel e falar unicamente de partidos e sindicatos é correr o risco de fazer um giro sobre eles mesmos, sem responder à questão: quais objetivos próprios, particulares, tem a luta de massas extraparlamentar? De que modo, com quais instrumentos, por quais vias se desenvolvem a atividade e a luta dos trabalhadores pela democracia direta?

A coisa parece ainda mais séria se se toma em consideração o fato de que a nossa luta é uma luta pelo poder (de outro modo, deveríamos nos perguntar, com uma velha batida: lutamos para fazer o que?). Se estamos de acordo – pelo menos, Spriano o afirma – sobre o fato de que a sociedade socialista não é um reino milagroso que é criado com um toque igualmente mágico de varinha, mas uma coisa que se conquista a partir de agora, que tem sua semente vital na luta pelo poder, é preciso fazer a pergunta sobre o que quer dizer uma luta que, na Itália, exclua o controle desde baixo, o controle dos trabalhadores sobre a produção. Depois que o poder da burguesia foi destruído, o partido se identifica, ou tende a se identificar com o Estado: os sindicatos ou se burocratizam ou permanecem instrumentos reivindicativos e de defesa dos trabalhadores (é essa a experiência concreta soviética, polaca, húngara, iugoslava, e não uma previsão nebulosa). Qual é a garantia democrática do poder socialista se faltar o controle operário? Ou será que se deve adiar esse controle – e apenas isso, sem que se saiba o motivo –, ainda como instância de luta, ao dia seguinte do salto revolucionário, tanto que falando hoje se pode fazer dele uma abstração livresca? Mas os elementos que são estranhos à nossa luta pelo socialismo tendem, devemos enfatizar, a estar ausentes também no poder socialista de amanhã. Negar isso seria, de fato, retornar a uma concepção mística do socialismo: essa concessão, expulsa pela porta, volta pela janela. Incluir ou não o controle operário na política do partido de classe significa querer ou não um Estado socialista baseado na autogestão dos trabalhadores. E queremos enfatizar que ninguém exige (e como poderia?) que o controle operário seja realizado imediatamente: o que conta é a luta por isso, que qualifica uma política de classe de maneira democrática e não reformista.

Também para anular argumentos parecidos, permanece a questão – certamente primária – da sociedade italiana, na qual lutamos. Nesta sociedade – e essa é a nossa tese, a nossa convicção – o controle operário é uma questão real, que se enraíza em uma realidade existente.

Pensemos, antes de tudo, na fábrica moderna. Nela, em virtude do desenvolvimento técnico, do processo de automação, de suas dimensões, o trabalhador é reduzido a uma pequena roda da engrenagem de uma grande máquina que é, na totalidade, desconhecida. Sobre essas bases se desenvolveram o prática e a ideologia do monopólio (relações humanas, organização científica do trabalho, etc.) que buscavam escravizar o corpo e a alma do próprio trabalhador, realizar plenamente a sua alienação. Como romper essa dinâmica negativa, como lutar em igualdade de condições contra a “democracia corporativa” de tipo patronal a não ser propondo novamente a reivindicação da participação dos trabalhadores no controle do processo produtivo em seu conjunto? E, de resto, a contratação a nível corporativo e as técnicas sindicais modernas não conduziram as coisas exatamente nessa direção, ainda que o sindicato em um certo ponto deva se deter, porque além desse limite isso entraria em contradição com as suas funções?

A reivindicação do controle é reforçada se de uma única fábrica moderna a perspectiva se expande para os vastos setores produtivos. Se os órgãos do poder político no Estado burguês sempre foram o “comitê de negócios” da classe capitalista, hoje assistimos, no entanto, a uma conjunção ainda maior do que no passado entre o Estado e os monopólios. Na verdade, os monopólios são levados a assumir cada vez mais o controle direto da sociedade e do Estado, enquanto as suas operações econômicas exigem cada vez mais a ajuda e a intervenção amigável do Estado. E, desde o momento em que o centro do poder político burguês se desloca cada vez mais dos edifícios institucionais para a realidade econômica, seria realmente um suicídio se o movimento operário se resignasse a ficar alheio a esta realidade, a disputar terreno com o poder burguês sobretudo no parlamento, longe da fonte efetiva desse poder.

Hoje, uma questão central do movimento de classes é a do desenvolvimento econômico. Tendo liquidado todas as posições que eram exclusivamente de protesto e de denúncia, e se transformando justamente no protagonista – de hoje e de amanhã – do desenvolvimento econômico, o movimento operário deve desfazer os nós do controle. Se, de fato, pode haver um fundamento para as preocupações daqueles que temem que as ações pelo controle degenerem em um corporativismo híbrido, do qual pagariam o preço os desempregados e as zonas em recessão, por outro lado é risível a ideia de que o movimento operário posso conduzir a luta pelo desenvolvimento econômico apenas através do parlamento (ainda que esta segunda ação seja útil de um ponto de vista geral). Quem tem um mínimo de prática dessas coisas sabe que os complexos produtivos modernos não são controlados simplesmente estando nos conselhos de administração: é necessária a participação nos órgãos de programação, de direção, de execução. Nenhum operário da FIAT poderia realmente levar a sério quem lhe dissesse que as contas no bolso de Valletta[3] foram feitas no parlamento de Roma. O perigo corporativo é combatido estendendo a luta pelo controle a todas as frentes produtivas e vinculando estreitamente as várias fases dessa luta entre elas e nos quadros mais gerais da luta de massas.

Há quem, diante desta perspectiva (Spriano, na verdade, não o diz explicitamente, mas se pode deduzir isso de seu raciocínio), observe que a luta pelo controle, por mais justa que seja, não é atual, porque é uma luta ofensiva, enquanto na fábrica a situação é, infelizmente, defensiva: trata-se de defender a liberdade sindical, a liberdade individual.

Realmente, não conseguimos entender como se pode aceitar uma distinção tão escolástica, tão esquemática, tão abstrata, entre a luta defensiva e a ofensiva, entre uma e outra fase da luta em geral. Nos lembramos daqueles que reprovavam a Lênin por querer a revolução socialista, quando só era “atual” a revolução burguesa. A verdade é que sem o controle – ou a luta pelo controle – não pode haver liberdade na fábrica moderna. Quem aceita, por exemplo, na FIAT ou na Montecatini, permanecer alheio ao processo produtivo, na realidade entrega nesse mesmo momento o dispositivo de comando nas mãos do patronato. Uma distinção desse tipo – entre defensiva e ofensiva – ainda era possível na antiga fábrica, mas não no complexo monopolístico, que é um mundo fechado e particular, tendendo a absorver subordinar tudo a suas leis de direção. O dissemos e repetimos: o próprio sindicato teve de deixar suas velhas posições para trás, as reivindicações salariais genéricas, e se colocar o problema da produção. Talvez a contratação corporativa não seja mais uma linha avançada, ofensiva, a respeito da velha linha reivindicativa. No entanto, a velha contratação corporativa vence, e a velha linha domina nos dias de hoje.

Enfim, devemos observar que a lição decisiva vem da classe operária. Por anos os operários nem sequer sentiram a necessidade de falar de controle ou, se sentiram a necessidade de falar disso em algum momento, foi só em termos negativos; mas basta ir às fábricas, onde acontecem as experiências dos conselhos de gestão, se sentem, em nove a cada dez vezes, que todos os operários se vinculam de modo extraordinário a esse patrimônio prático e ideológico; e ainda, quando se vai, por exemplo, a Monfalcone, e se estudam as lutas dos operários da CRDA[4], se vê que elas eram focadas – mesmo que não se tratasse de uma consciência precisa – nas reivindicações pelo controle; e também no mesmo sentido, até as lutas dos mineiros sicilianos de enxofre.

E, para concluir, quando se fala da França[5] (Spriano não fala), há coisa mais significativa do que a recusa dos operários – uma recusa objetiva, mas frequentemente explícita – em lutar para defender o parlamento? Haviam sindicatos e partidos, mas certamente os operários da Renault se referiam a outra cosia quando diziam de si mesmos “nós” e em relação à situação do próprio país, “eles”. De Spriano, enfim, gostaríamos de saber o que tem a ver o revisionismo com isso tudo: o revisionismo é forçado aqui para declarar a reivindicação de controle livresca. Isso é simplesmente um alvo confortável, uma fórmula mágica que se invoca ritualmente. A questão aqui não é a da recusa do leninismo, mas a da escolha entre uma concepção burocrática do socialismo e uma concepção democrática, genuinamente leninista. Trata-se, em suma, não de abraçar o reformismo revisionista (que, por sua conta, se afasta do controle como da peste) mas de estabelecer a partir de que posição ele vai ser combatido: da posição do dogmatismo burocrático ou da democracia socialista. A reivindicação do controle e, perspectivamente, da autogestão, tornam claro o significado da tese sobre a via democrática para o socialismo. Separada do controle operário e da autogestão, a expressão “via democrática” ou é uma adesão tardia ao reformismo ou é  simplesmente cobertura  de uma concessão dogmática do stalinismo.

[1] La democrazia diretta, “L’Unitá”, Milão, 11 de junho de 1958.

[2] Roma, 8-14 de dezembro de 1956. Primeiro congresso do PCI desde o XX Congresso do PCUS.

[3] Engenheiro Vittorio Valletta, atual presidente da FIAT.

[4] Cantieri Riuniti dell’Adriatico, da Finmeccanica. Por volta de outubro de ’57 e no momento em que esse artigo era escrito, aconteciam na CRDA lutas muito avançadas, pelo controle dos representantes operários sobre o trabalho por peça, pela transformação dos parcelários em pecistas, a reavaliação e a extensão da indenização por insalubridade, etc.

[5] Referência aos acontecimentos referidos na imprensa do poder pelo general de Gaulle e a passagem da IV à V República.

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de Scritti 1956-1960. Lampugnani Nigri, 1973.
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