Huey P. Newton – À República da Nova Áfrika

Aqui fala Huey P. Newton, em Los Padres, California, 1969, 13 de setembro.

Saudações à República da Nova África[1] e ao Presidente Robert Williams. Estou muito contente de poder dar a vocês as boas-vindas. Devo acrescentar que este é o momento perfeito. E precisamos muito de vocês. E agora que a consciência do povo está em um nível tão alto, talvez possamos aproveitar a sua liderança e também estar prontos para nos movermos em um sentido revolucionário.

A algum tempo atrás, recebi uma mensagem da República da Nova África com uma série de perguntas a respeito da filosofa do Partido Pantera Negra, e perguntas muito detalhadas em certos pontos, e sobre os nossos pensamentos a respeito dessas posições. Naquele momento eu não estava preparado para enviar uma mensagem de resposta. Tive que pensar sobre muitas questões, e por conta da situação aqui é muito difícil para mim me comunicar, o que explica esse lapso de tempo entre as perguntas e a resposta. E não poderei expor minhas posições sobre todas as questões, mas eu gostaria de dar algumas explicações gerais sobre a posição do Partido Pantera Negra em relação à República da Nova África.

A posição do Partido Pantera Negra é de que o povo negro no país é definitivamente colonizado e sofre do roubo colonial mais do que qualquer grupo étnico no país. Talvez com exceção dos indígenas, mas certamente tanto quanto a população indígena. Nós também percebemos que o povo americano em geral é colonizado. E que são colonizados simplesmente porque estão em uma sociedade capitalista, com um pequeno grupelho de dominantes que são os proprietários dos meios de produção no controle da tomada de decisões, eles são o corpo que toma as decisões. Assim, isso toma a liberdade do povo americano em geral. E eles simplesmente trabalham para o enriquecimento dessa classe dominante. No que diz respeito aos negros, é claro, eles estão na parte de baixo dessa escada, somos explorados não apenas por esse pequeno grupo dominante, mas somos oprimidos e reprimidos até mesmo pelos brancos trabalhadores nesse país. E isso acontece simplesmente porque a classe dominante, a classe dominante branca usa a velha política romana de dividir para conquistar. Em outras palavras, a classe trabalhadora branca é usada como peão ou ferramenta da classe dominante, mas ela também é escravizada. Então, é com essa perspectiva histórica de dividir para conquistar que a classe dominante pode manter a maioria do povo em uma posição oprimida de maneira efetiva e com sucesso; porque estão divididos em certos grupos de interesses, ainda que esses interesses que os grupos das classes inferiores carreguem não sejam necessariamente benéficos para eles.

No que diz respeito à nossa posição quanto a separação, nós pedimos, como vocês sabem, um plebiscito supervisionado pela ONU para que os negros possam decidir se eles querem se separar da união ou qualquer outra posição que desejem. No que diz respeito ao Partido Pantera Negra, estamos submetidos à vontade da maioria do povo, mas pensamos que o povo deve ter essa escolha, e pensamos que a República da Nova África está perfeitamente justificada em exigir e declarar o direito de se separar da união. Então, não vemos contradição entre a posição do Partido Pantera negra e a posição da República da Nova África até onde eu sei, é apenas uma questão de momento. Pensamos que certas condições têm que existir antes mesmo que nos seja dado o direito de fazer essa escolha. Também levamos em consideração o fato de que se os negros nesse mesmo minuto puderem se separar da união e ter, digamos, cinco estados ou seis estados, seria impossível ter liberdade lado a lado de um país capitalista e imperialista. Todos sabemos que a mãe África não é livre simplesmente por causa do imperialismo, da dominação ocidental. E não há indicação de que seria diferente se tivéssemos um país separado, aqui na América do Norte. De fato, logicamente sofreríamos com o imperialismo e o colonialismo ainda mais do que o Terceiro Mundo está sofrendo agora. Eles estão geograficamente melhor localizados, milhares de milhas distantes, mas ainda assim eles não podem se libertar simplesmente por conta de altos desenvolvimentos tecnológicos, os maiores desenvolvimentos tecnológicos que o Ocidente tem e que fazem o mundo muito menor, uma pequena vizinhança.

Então, levando essas coisas em consideração, concluímos que a única maneira pela qual podemos ser livre é livrando a terra de uma vez por todas de toda a estrutura opressora da América. Sabemos que não podemos fazer isso sem luta popular, sem muitas alianças e coalizões, e essa é a razão pela qual estamos nos movendo no sentido em que estamos, de maneira que possamos conseguir tantas alianças quanto possamos com pessoas que estão igualmente insatisfeitas com o sistema. E também estamos indo adiante, tentando seguir com a campanha de educação política, para que o povo esteja ciente das condições e portanto talvez eles possam dar passos no sentido de controlar essas condições. Pensamos que essa é a coisa mais importante nesse momento; conseguir organizar de alguma maneira para que tenhamos uma força formidável para oferecer um desafio à estrutura do império americano. Então convidamos a República da Nova África a lutar conosco, porque sabemos, pelas pessoas com quem conversamos (conversei com May Mallory e outras pessoas familiares com a filosofia da República da Nova África), que elas parecem estar muito atentas para a necessidade de que toda a estrutura da América tem que ser transformada para que o povo americano seja livre. E esse é, mais uma vez, com todo o conhecimento e toda a perspectiva de que o objetivo final da República da Nova África é a separação. Em outras palavras, não estamos, na verdade, lidando com essa questão no momento porque pensamos que para nós ela é de certo modo prematura, e percebo a importância fisiológica de lutar por um território. Mas nesse momento o Partido Pantera Negra pensa que não queremos nos colocar em uma situação de enclave em que estaríamos mais isolados do que já estamos. Estamos isolados nas zonas de gueto, e pensamos que essa é uma ótima posição no que diz respeito à estratégia, no que diz respeito à grande batalha com a ordem estabelecida. E, mais uma vez, penso que seria perfeitamente justificado se os negros decidissem que querem se separar da união, mas penso que a questão deve ser colocada para as massas populares, para a maioria do povo.

Mais uma vez, penso que seria perfeitamente justificável se os negros decidissem que eles querem se separar da união, mas penso que a questão deveria ser deixada para as massas populares, para a maioria popular. Então, isso está resumido. Como disse antes, não tenho a possibilidade de ter longas discussões por aqui, e espero conversar com Milton Henry num futuro próximo (se for possível, sei que ele está bastante ocupado no momento) ou com representantes da República da Nova África, para que possamos conversar sobre essas questões. Existem muitas coisas que não conheço sobre a posição da República da Nova África, coisas que eu ouvi, que li, e concordo totalmente com elas. Gostaria que a República da Nova África soubesse que apoiamos Robert Williams em sua situação difícil neste momento, que o apoiamos cem por cento, e que queremos oferecer todos os auxílios que nos pedem; e gostaríamos de saber exatamente o que podemos fazer que poderia ser de maior ajuda nos procedimentos jurídicos que estão surgindo, que tipo de apoio moral poderíamos dar. Talvez possamos enviar alguns representantes, e publicaremos no nosso jornal, The Black Panther, artigos para informar o povo sobre a posição de Robert Williams sobre as atividades criminosas de que ele tem sido vítima nos últimos oito ou nove anos. Eu também gostaria de pedir à República da Nova África que nos desse algum apoio com Bobby Seale, nosso Presidente do Partido Pantera Negra. Bobby Seale está agora em uma prisão, como vocês sabem, em São Francisco, ele tem um processo acontecendo em Chicago, um em Connecticut, e convidamos a República da Nova África a dar o seu apoio. Gostaríamos muito disso e qualquer apoio moral que pudessem dar seriam bem-vindo. Deveríamos trabalhar mais próximos do que temos feito, e talvez isso possa ser um problema em que poderíamos trabalhar juntos, o problema dos presos políticos na América, e o povo como um todo é a favor da libertação dos presos políticos. Esse pode ser um ponto de convergência em que todas as organizações e partidos revolucionárias negros poderiam se reunir. Porque acredito sinceramente que algum bem pode sair de cada ataque que o opressor faz. Ele educa, esclarece muitas pessoas a respeito de sua violência. Então, talvez, esse possa ser um ponto de virada para ambas as nossas organizações e partidos. Por fim, o que eu gostaria de dizer é

 

TODO PODER AO POVO, E MAIS PODER AINDA AO PRESIDENTE DA REPÚBLICA DA NOVA ÁFRICA, ROBERT WILLIAMS

 

The Black Panther, 6 de dezembro de 1969

[1] N.T.: A República da Nova África, fundada em 1968, é o projeto de uma nação negra autodeterminada no sul dos Estados Unidos da América, nos territórios da Louisiana, Mississipi, Alabama, Geórgia e Carolina do Sul, exigindo uma indenização do Estado norte-americano pela escravidão e pelo racismo institucional.

 

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de The Black Panthers Speak. Haymarket Books, 2014.
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Huey Newton – A fundação do Partido Pantera Negra

texto retirado de Revolutionary Suicide, a autobiografia de Huey Newton, p. 115-119]

 

Por todo esse tempo, Bobby e eu não pensávamos no Partido Pantera Negra, não tínhamos nenhum plano para liderar uma organização, e o Programa de Dez Pontos ainda estava no futuro. Havíamos visto Watts se levantar no ano anterior. Havíamos visto como a polícia atacou a comunidade de Watts depois de gerar o problema em primeiro lugar. Havíamos visto Martin Luther King ir a Watts em um esforço para acalmar o povo, e vimos a sua filosofia de não-violência ser recusada. O povo negro foi ensinado a ser não-violento, isso era muito profundo em nós. Para que servia, no entanto, a não-violência quando a polícia estava determinada a agir pela força? Havíamos visto a polícia de Oakland e a Patrulha Rodoviária da Califórnia começarem a carregar as suas espingardas abertamente como uma maneira de assustar a comunidade. Vimos tudo isso, e reconhecemos que a consciência crescente do povo negro estava quase no ponto de explodir. As pessoas devem se relacionar com a história de sua comunidade e com seu futuro. Tudo que vimos nos convenceu de que nosso tempo havia chegado.

Dessa necessidade nasceu o Partido Pantera Negra. Bobby e eu finalmente não tínhamos outra escolha a não ser formar uma organização para envolver nossos irmãos das classes de baixo.

Trabalhamos nisso em conversas e discussões. A maior parte das conversas eram casuais. Bobby viviam perto do campus, e a sua sala virou uma espécie de quartel general. Apesar de ainda estarmos com o Soul Students, fomos a poucas reuniões, e quando íamos nossa presença era na maior parte das vezes incômoda; colocávamos questões que perturbavam todo mundo. Nossas conversas um com o outro se tornaram uma coisa importante. Os irmãos que tinham horários de aula livres e outros que só andavam pelo campus entravam e saíam da casa de Bobby. Bebíamos cerveja e vinho e ruminávamos a situação política, nossos problemas sociais e os méritos e limites de outros grupos. Também discutíamos as conquistas negras do passado, em especial na medida em que nos ajudavam a compreender os eventos atuais.

Em um certo sentido, essas sessões na casa de Bobby eram nossa aulas de educação política e o Partido de certa forma saiu delas. Mesmo depois que nos organizamos formalmente, continuamos as discussões em nosso escritório. No momento, tínhamos avançado para tratar não só dos problemas, mas das soluções possíveis.

Também líamos. A literatura dos povos oprimidos e de suas lutas por libertação em outros países é muito grande, e passamos por esses livros para ver como as suas experiências poderiam nos ajudar a entender nossa situação difícil. Lemos a obra de Frantz Fanon, especialmente Os condenados da Terra, os quatro volumes do Presidente Mao, e Guerra de guerrilhas, de Che Guevara. Che e Mao eram veteranos das guerras do povo e tinham construído estratégias vitoriosas para libertar o seu povo. Lemos os trabalhos desses homens porque os víamos como companheiros; o opressor que os havia controlado estava nos controlando, tanto direta quanto indiretamente. Acreditávamos que era necessário saber como eles conquistaram sua liberdade para ir adiante em conseguir a nossa. No entanto, não nos limitávamos a simplesmente importar ideias e estratégias; tínhamos que transformar o que aprendíamos em princípios e métodos aplicáveis aos nossos irmãos no bairro.

Mao, Fanon e Guevara, todos viam claramente que o povo tinha sido privado de seus direitos de nascença e de sua dignidade, não por uma filosofia ou por palavras, mas debaixo da mira de uma arma. Eles sofreram um sequestro por mafiosos e estupros; para eles, a única maneira de conquistar a liberdade é combater a força com força. No fim, isso é uma forma de autodefesa. Ainda que a defesa possa em certos momentos assumir as características da agressão, em última análise o povo não começa, ele simplesmente responde ao que foi feito a ele. O povo respeita a expressão de força e dignidade mostrada por homens que se recusam a se curvar às armas da opressão. Ainda que isso possa significar a morte, esses homens vão lutar, porque a morte com dignidade é preferível à vergonha. Então, existe sempre a chance de o opressor ser superado.

Fanon fez uma declaração durante a guerra da Argélia que me impressionou; ele disse que aquele era o “ano do bumerangue”, que é a terceira fase da violência. Nesse momento, a violência do agressor se volta contra ele e o atinge com um golpe de morte. Ainda assim, o opressor não compreende o processo; ele não sabe mais do que ele sabia no primeiro momento em que começou a violência. Os oprimidos estão sempre na defensiva, o opressor é sempre agressivo e surpreendido quando o povo volta contra ele a força que foi usada contra eles.

Negros armados, de Robert Williams, teve uma grande influência no tipo de partido que desenvolvemos. Williams tinha sido ativo em Monroe, Carolina do Norte, com um programa de autodefesa armada que integrou muitos na comunidade. No entanto, eu não gostava da maneira com a qual ele chamou o governo federal a prestar auxílio; víamos o governo como inimigo, a agência de um grupelho dominante que controla o país. Também tínhamos alguma literatura sobre os Díaconos para a Defesa e a Justiça, na Louisiana, o estado em que eu nasci. Um dos seus líderes passou pela zona litorânea em uma turnê de discursos e para levantar fundos, e gostamos do que ele disse. Os Diáconos tinham feito um bom trabalho em defender os ativistas pelos direitos civis na sua área, mas eles também tinham o hábito de chamar o governo federal para ajudar na defesa ou pelo menos para ajudá-los a defender as pessoas que estavam defendendo a lei. Os Diáconos chegaram mesmo ao ponto de alistar xerifes e policiais locais para defender os ativistas, com a ameaça de que se as instituições de defesa da ordem não os defendesse, os Diáconos os defenderiam. Também víamos a polícia local, a guarda nacional e os militares regulares como um grande grupo armado que se opunha à vontade do povo. Em uma situação limite, o povo não teria nenhuma defesa real a não ser a que pudesse dar a si mesmo.

Lemos também os trabalhos dos defensores da liberdade que tinham feito tanto pelas comunidades negras nos Estados Unidos. Bobby tinha reunido todos os discursos de Malcolm X e ideias de jornais como The Militant e Muhammad Speaks. Estudamos esse material cuidadosamente. Ainda que o programa de Malcolm para a Organização da Unidade Afro-Americana nunca tenha sido colocado em ação, ele deixava claro que os negros precisavam se armar. A influência de Malcolm sempre foi presente. Continuamos a acreditar que o Partido Pantera Negra existe com o espírito de Malcolm.

Frequentemente é difícil dizer exatamente como uma ação ou programa foi determinado de uma maneira espiritual. Esse tipo de coisa intangível é difícil de descrever, ainda que ele possa ser mais significativo do que qualquer influência precisa. Portanto, as palavras nessa página não podem transmitir o efeito que Malcolm teve no Partido Pantera negra, ainda que no que me diz respeito, o Partido seja um testamento vivo ao trabalho da sua vida. Eu não estou dizendo que o Partido fez o que Malcolm teria feito. Muitos outros dizem que os seus programas são os programas de Malcolm. Não dizemos isso, mas o espírito de Malcolm está em nós.

De todas essas coisas – os livros, os escritos e o espírito de Malcolm, nossa análise da situação local – a ideia de uma organização estava saindo. Um dia, muito de repente, quase por acaso, encontramos um nome. Eu tinha lido um panfleto sobre um registro de eleitores no Mississippi, sobre como o condado de Lowndes havia se armado contra a violência estabelecida. O seu grupo político, chamado Organização da Liberdade do Condado de Lowndes, tinha uma pantera negra como símbolo. Alguns dias depois, quando Bobby e eu estávamos conversando, eu sugeri que usássemos a pantera como nosso símbolo e que chamássemos nossa organização política de Partido Pantera Negra. A pantera é um animal feroz, mas não ataca a não ser que seja encurralada; é então que ela atava. A imagem parecia apropriada, e Bobby concordou sem discussão. Nesse ponto, sabíamos que era hora de parar de falarmos e começar a organizarmos. Ainda que sempre tenhamos desejado sair das características retóricas e intelectualistas dos outros grupos, às vezes éramos tão inativos quanto eles. Havia chegado o momento para a ação.

 

 

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de Revolutionary Suicide. Londres: Penguin Classics. 2009.
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Huey P. Newton – Intercomunalismo

Nós, o Partido Pantera Negra, acreditamos que tudo está em constante estado de mudança, então usamos uma estrutura de pensamento que pode nos colocar em relação com o processo de mudança. Isto é, nós acreditamos que as conclusões a que chegamos sempre vão mudar, mas que os fundamentos do método pelo qual chegamos a nossas conclusões permanecerá constante. Nossa ideologia, portanto, é a parte mais importante de nosso pensamento.

Existem muitas ideologias diferentes ou escolas de pensamento, e todas elas começam com um conjunto de afirmações a priori. A humanidade ainda é limitada em seu conhecimento e tem dificuldade, nesse momento histórico, de falar sobre o início das coisas e o fim das coisas sem começar com premissas que ainda não podem ser provadas.

Isso é verdade em relação a ambas as escolas gerais de pensamento – a idealista e a materialista. Os idealistas baseiam seu pensamento em certas pressuposições sobre as coisas das quais eles têm muito pouco conhecimento; os materialistas gostam de pensar que estão em contato com a realidade, ou o mundo material, desconsiderando o fato de que eles apenas assumem que há um mundo material.

O Partido Pantera Negra escolheu pressupostos materialistas para sustentar sua ideologia. Essa é uma escolha puramente arbitrária. O idealismo pode ser o caso real; podemos não estar aqui. Não sabemos realmente se estamos em Connecticut ou em São Francisco, ou se estamos sonhando ou em um estado de sonho, ou se estamos acordados e em um estado de sonho. Talvez estejamos apenas em algum lugar no vazio; simplesmente não podemos ter certeza. Mas como os membros do Partido Pantera Negra são materialistas, acreditamos que algum dia os cientistas poderão oferecer informações que nos darão não apenas a evidência mas a prova de que há um mundo material e de que a sua gênese foi material – movimento e matéria – e não espiritual.

Até esse momento, no entanto, e para os fins dessa discussão, peço apenas que concordemos na estipulação de que um mundo material existe e se desenvolve externa e independentemente de todos nós. Com essa elaboração, temos o fundamento para um diálogo inteligível. Pensamos que há um mundo material e que ele existe e se desenvolve independentemente de todos nós, e pensamos que o organismo humano, através de seus sistema sensorial, tem a habilidade de observar e analisar este mundo material.

O materialista dialético acredita que tudo o que existe tem contradições internas fundamentais. Por exemplo, os deus africanos ao sul do Saara sempre tiveram pelo menos duas cabeças, uma para o bem e outra para o mal. Agora, as pessoas criam Deus a sua própria imagem, criam o que elas pensam Dele – porque Deus é sempre um “Ele” em sociedades patriarcais – e como ele é ou deve ser. Então, os africanos disseram, com efeito: sou tanto bom quanto mal, bem e mal são duas partes de uma coisa que sou eu. Este é um exemplo de uma contradição interna.

As sociedades ocidentais, por outro lado, dividiram o bem e o mal, colocando Deus nos céus e o diabo lá embaixo no inferno. O bem e o mal lutam pelo controle sobre as pessoas nas religiões ocidentais, mas eles são duas entidades completamente diferentes. Esse é um exemplo de uma contradição externa.

Essa luta entre tendências opostas mutuamente exclusivas no interior de todas as coisas que existem explica o fato observável de que todas as coisas têm movimento e estão em um estado constante de transformação. As coisas se transformam porque enquanto uma tendência ou força está dominante em relação a outra, a mudança é, apesar disso, uma constante e em algum ponto o equilíbrio irá se alterar e haverá um novo desenvolvimento qualitativo. Novas propriedades passarão a existir, qualidades que não existiam de todo antes. Estas qualidades não podem ser analisadas sem compreender, em primeiro lugar, as forças em luta no interior de cada objeto, e ainda assim as limitações e determinações dessas novas qualidades não podem ser definidas pelas forças que as criaram.

O conflito de classes se desenvolve pelos mesmos princípios que governam todos os outros fenômenos no mundo material. Em uma sociedade contemporânea, uma classe que controla a propriedade domina a classe que não controla a propriedade. Há uma classe de trabalhadores e uma classe de proprietários, e por isso há uma contradição básica nos interesses dessas duas classes, que estão constantemente lutando uma com a outra. Agora, como as coisas não permanecem as mesmas, podemos ter certeza de uma coisa: o proprietário não permanecerá o proprietário e as pessoas que são dominadas não permanecerão dominadas. Não sabemos exatamente como isso vai acontecer, mas depois que analisamos todos os outros elementos da situação, podemos fazer algumas previsões. Podemos estar certos de que se aumentarmos a intensidade da luta, chegaremos a um ponto em que o equilíbrio de forças irá mudar e haverá um salto qualitativo para uma nova situação como um novo equilíbrio social. Eu digo “salto” porque sabemos pela experiência com o mundo físico que quando transformações desse tipo ocorrem, elas ocorrem com uma grande força.

Esses princípios do desenvolvimento dialético não representam uma lei de ferro que pode ser aplicada mecanicamente ao processo social. Existem exceções a essas leis de desenvolvimento e transformação, e é por isso que, como materialistas dialéticos, enfatizamos que temos que analisar cada conjunto de condições separadamente e fazer análises concretas das condições concretas em cada instância. Não se pode prever o resultado, mas pode-se ganhar perspectiva o suficiente para coordenar o processo.

O método dialético é essencialmente uma ideologia, mas ainda assim acreditamos que ele é superior a outras ideologias, porque ele nos coloca mais em contato com o que acreditamos ser o mundo real; ele aumenta nossa habilidade para lidar com esse mundo e moldar o seu desenvolvimento e mudança.

Vocês poderiam facilmente perguntar “Bem, esse método pode ser aplicado com sucesso em uma instância particular, mas como vocês sabem que ele será infalível em todos os casos?”. A resposta é que não sabemos.

Não falamos em “todos os casos” ou em “guia infalível” porque tentamos não falar em termos tão absolutos e inclusivos. Apenas dizemos que temos que analisar cada instância, que descobrimos que esse método é o melhor disponível no decorrer de nossas análises, e que pensamos que essa método irá continuar a se mostrar assim no futuro. Nós às vezes temos um problema porque as pessoas não compreendem a ideologia que Marx e Engels começaram a desenvolver. As pessoas dizem “Vocês dizem ser marxistas, mas vocês sabem que Marx era racista?”. Dizemos, “Bem, ele provavelmente era racista: ele fez uma declaração uma vez sobre o casamento de uma mulher branca e de um homem negro, e chamou o homem de gorila ou coisa assim. Os marxistas dizem que ele só estava brincando e que essa declaração mostra a proximidade de Marx ao sujeito, mas isso obviamente é bobagem. Então, parece que Marx era racista.

Se você é um marxista, então o racismo de Marx afeta o seu próprio julgamento, porque se você é um marxista então você é alguém que venera Marx e o pensamento de Marx. Lembrem-se, no entanto, que o próprio Marx disse “eu não sou um marxista”. Esses marxistas se preocupam com as conclusões às quais Marx chegou com seu método, mas eles jogam fora o próprio método – ficando em uma posição completamente estática. É por isso que a maior parte dos marxistas realmente são materialistas históricos: eles olham para o passado buscando respostas para o futuro, e isso não funciona.

Se você é um materialista dialético, no entanto, o racismo de Marx não importa. Você não acredita nas conclusões de uma pessoa, mas na validade de um modo de pensamento; e nós, no partido, como materialistas dialéticos, reconhecemos Karl Marx como um dos grandes contribuidores para esse modo de pensamento. Se Marx era ou não racista é irrelevante e imaterial em relação à questão de se o método de pensamento que ele ajudou a desenvolver nos mostra verdades sobre os processos no mundo material ou não. E isso é verdadeiro em todas as disciplinas. Em cada disciplina, você encontra pessoas com visões distorcidas e que estão em um nível baixo de consciência, e que, no entanto, tem lampejos de inspiração e produzem ideias que devem ser consideradas. Por exemplo, John B. Watson certa vez disse que seu passatempo favorito era caçar e enforcar negros, e ainda assim ele deu grandes passos adiante na investigação e na análise de respostas condicionadas.

Agora que falei alguma coisa sobre a ideologia do Partido, vou descrever a história do Partido e como mudamos nosso entendimento do mundo.

Quando começamos, em outubro de 1966, éramos o que se poderia chamar de nacionalistas negros. Percebemos as contradições na sociedade, a pressão sobre o povo negro em particular, e vimos que a maior parte das pessoas no passado resolveu alguns de seus problemas formando nações. Nós, portanto, dizíamos que era racional e lógico que nós acreditássemos que nossos sofrimentos como um povo terminaríamos quando estabelecêssemos uma nação própria, composta com nosso próprio povo.

Depois de um tempo, vimos que alguma coisa estava errada com essa resolução do problema. No passado, a nacionalidade era uma coisa relativamente fácil de conquistar. Se olharmos ao redor agora, no entanto, vemos que o mundo – o espaço de terra, as partes habitáveis como as conhecemos – está bastante povoado. Então, percebemos que para criar uma nova nação deveríamos nos tornar uma fração dominante nesta, e ainda assim o fato de que não tínhamos poder era a contradição que nos levava a buscar a nacionalidade em primeiro lugar. Era um círculo sem fim, vejam: para alcançar a nacionalidade, tínhamos que nos tornar uma força dominante, mas para nos tornarmos uma força dominante, precisávamos de uma nação.

Então, fizemos uma análise mais profunda e descobrimos que para que nós fôssemos uma força dominante, teriam pelo menos que ser numericamente grandes. Nós nos desenvolvemos de simples nacionalistas ou de nacionalistas separatistas para nacionalistas revolucionários. Dissemos que nos juntaríamos com todas as outras pessoas no mundo, lutando pela descolonização e pela nacionalidade, e chamamos a nós mesmos de uma “colônia dispersa” porque não tínhamos a concentração geográfica que as outras chamadas colônias tinham. Mas tínhamos comunidade negras por todo o país – São Francisco, Los Angeles, New Haven – e há muitas semelhanças entre essas comunidades e o tipo de colônia tradicional. Também pensamos que se nos aliássemos às outras colônias nos tornaríamos um grande número e teríamos chances maiores, uma força maior; e é disso que precisávamos, claro, porque apenas a força fazia de nós um povo colonizado.

Vimos que não apenas era benéfico para nós que fôssemos nacionalistas revolucionários, como era benéfico expressar nossa solidariedade com aqueles amigos que sofriam muitos dos mesmos tipos de pressão que nós sofríamos. Assim, mudamos nossas autodefinições. Dissemos que não apenas éramos nacionalistas revolucionários, ou seja nacionalistas que querem mudanças revolucionárias em tudo, incluindo o sistema econômico que o opressor nos obriga a ter – mas que também éramos indivíduos profundamente preocupados com os outros povos do mundo e seus desejos por revolução. De maneira que para mostrar nossa solidariedade, decidimos nos chamar internacionalistas.

Originalmente, como eu disse, pensávamos que as pessoas poderiam resolver alguns de seus problemas construindo nações, mas essa conclusão mostrou uma lacuna em nossa compreensão do movimento dialético do mundo. Nosso erro foi assumir que as condições nas quais os povos se tornaram nações no passado ainda existem. Para ser uma nação, deve-se satisfazer certas condições essenciais, e se essas coisas não existem ou não podem ser criadas, então não é possível se tornar uma nação.

No passado, Estados-nação eram normalmente habitados por povos de uma determinada origem étnica e religiosa. Eles eram divididos de outros povos seja por um corpo de água ou por um grande espaço terrestre desocupado. Essa separação natural dava à classe dominante da nação e ao povo em geral em certo grau de controle sobre os tipos de instituições políticas, econômicas e sociais que estabeleciam. Isso dava a eles um certo grau de controle sobre seu destino e seu território. Eles estavam seguros, pelo menos na medida em que não seriam atacados ou violados por outra nação a dez mil milhas de distância, simplesmente porque os meios para transportar tropas tão longe não existiam. Essa situação, no entanto, não poderia durar. A tecnologia se desenvolveu até que houve uma transformação qualitativa determinada nas relações no interior e entre as nações.

Sabemos que não se pode mudar uma parte do todo sem mudar o todo, e vice-versa. Enquanto a tecnologia se desenvolvia, houve um aumento nas capacidades militares e nos meios de transporte e comunicação, as nações começaram a controlar outros territórios, distantes dos seus. Normalmente, elas controlavam essas outras terras mandando administradores e colonos que iriam extrair trabalho do povo ou recursos da terra – ou os dois. Esse é o fenômeno que conhecemos como colonialismo.

O controle dos colonos sobre a terra controlada e o povo cresceu de tal modo que não era necessário nem mesmo que o colono estivesse presente para manter o sistema. Ele voltou para a casa. O povo estava tão integrado com o agressor que a sua terra não parecia mais uma colônia. Mas como a sua terra não se parecia também com um Estado livre, alguns teóricos decidiram chamar esses territórios de “neocolônias”. Argumentos relativos a sua definição precisa se desenvolveram. Elas são colônias ou não? E se não são, o que são? Os teóricos sabiam que alguma coisa havia acontecido, mas não sabiam o que era.

Usando o método da dialética materialista, nós no Partido Pantera negra vimos que os Estados Unidos não eram mais uma nação. Eles eram outra coisa, eles não eram mais uma nação. Eles não apenas haviam expandido os seus limites territoriais, mas haviam expandido todos os seus controles também. Nós o chamamos de império. Bem, em uma época o mundo teve um império no qual as condições de dominação eram diferentes – o Império Romano. A diferença entre os impérios romano e americano é que as outras nações podiam existir externa e independentemente do Império Romano porque seus meios de exploração, conquista e controla eram todos relativamente limitados.

Mas quando dizemos “império” hoje, queremos dizer exatamente isso. Um império é um Estado-nação que se transformou em um poder que controla todas as terras e povos do mundo.

Pensamos que não existem mais colônias ou neocolônias. Se um povo é colonizado, deve ser possível para eles se descolonizarem e se tornarem o que eram antes. Mas o que acontece quando as matérias primas são extraídas e o trabalho é explorado em um território que cobre todo o planeta? Quando as riquezas de toda a Terra são dispendidas e usadas para alimenta uma máquina industrial gigantesca no território dos imperialistas? Então, o povo e a economia estão tão integrados ao império do imperialismo que é impossível “descolonizá-los” para retornar às condições de existência anteriores.

Se as colônias não podem se “descolonizar” e retornar a sua existência original como nações, então as nações não existem mais. Nem, pensamos, elas voltarão a existir de novo. E uma vez que devem haver nações para que o nacionalismo revolucionário e o internacionalismo façam sentido, decidimos que nos chamaríamos por um nome novo.

Dizemos que hoje o mundo é uma coleção de comunidades dispersas. Uma comunidade é diferente de uma nação. Uma comunidade é uma pequena unidade com um conjunto completo de instituições que existe para servir a um pequeno grupo de pessoas. E dizemos, além disso, que a luta mundial é entre um pequeno círculo que administras e lucra com o império dos Estados Unidos, e os povos do mundo que querem determinar seus próprios destinos.

Chamamos essa situação de intercomunalismo. Estamos agora na era do intercomunalismo reacionário, me que um círculo dominante, um pequeno grupo de pessoas, controla todos os outros povos usando sua tecnologia.

Ao mesmo tempo, dizemos que essa tecnologia pode resolver a maior parte das contradições materiais com as quais as pessoas se deparam, que existem condições materiais que permitiriam que a população mundial desenvolvesse uma cultura que seja essencialmente humana, que desenvolvesse aquilo que permitiria que as pessoas resolvessem suas contradições de uma maneira que não levaria ao massacre coletivo de todos nós. O desenvolvimento de uma cultura desse tipo seria o intercomunalismo revolucionário.

Algumas comunidades começaram a fazer isso. Elas liberaram seus territórios e estabeleceram governos provisórios. Nós as reconhecemos e dizemos que esses governos representam os povos da China, da Coréia do Norte, os povos nas zonas liberadas do Vietnã do Sul e o povo no Vietnã do Norte.

Acreditamos que os seus exemplos devem ser seguidos para que um dia não exista um intercomunalismo reacionário (império) mas um intercomunalismo revolucionário. O povo do mundo deve tomar o poder do pequeno círculo dominante e expropriar os expropriadores, arranca-los do seu trono e torna-los iguais, distribuindo os frutos de nosso trabalho, que nos foram negados, de maneira equitativa. Sabemos que a maquinaria para realizar essas tarefas existe e queremos acesso a ela.

O imperialismo estabeleceu as fundações para o comunismo mundial, e o próprio imperialismo cresceu até se tornar um intercomunalismo reacionário porque o mundo agora está integrado em uma comunidade. A revolução das comunicações, combinada com a dominação expansiva do império americano, criou uma “cidade global”. Os povos de todas as culturas são sitiados pelas mesmas forças e têm acesso às mesmas tecnologias.

Só existem diferenças de grau entre o que está acontecendo aos negros aqui e o que está acontecendo a todos os povos do mundo, incluindo os africanos. As suas necessidades são as mesmas e a sua energia é a mesma. E as contradições de que eles sofrem só serão resolvidas quando o povo estabelecer um intercomunalismo revolucionário em que eles dividirão toda a riqueza que produzem e habitarão um mesmo mundo.

O cenário da história está montado para uma transformação deste tipo: as bases tecnológicas e administrativas para o socialismo existem. Quando as pessoas tomarem os meios de produção e as instituições sociais, então haverá um salto qualitativo e uma mudança na organização da sociedade. Irá levar algum tempo para resolver as contradições do racismo e de todo tipo de chauvinismo; mas como o povo irá controlar suas próprias instituições sociais, ele será livre para se recriar e para estabelecer o comunismo, um estado do desenvolvimento humano no qual os valores humanos irão moldar as estruturas da sociedade. Nesse momento, o mundo estará pronto para um nível ainda maior do qual não podemos saber nada.

 

***

 

Questão – Fico me perguntando: agora que vocês estabeleceram uma ideologia com a qual podem analisar os diferentes tipos de imperialismo acontecendo nos Estados Unidos, o que vocês farão quando a revolução acontecer? O que acontece uma vez que você tomou as estruturas construídas pelo capitalismo e é responsável por elas? Vocês não vão encontrar as mesmas lutas entre as formas dominantes de governo e os inferiores?

 

Newton – Não vai ser a mesma coisa, porque nada permanece o mesmo. Todas as coisas estão em um constante estado de transformação e portanto você terá novas contradições próprias desse novo fenômeno. Podemos estar bastante certos de que haverá contradições depois que o intercomunalismo revolucionário for a ordem do dia, e podemos estar certos de que haverá contradições depois do comunismo, que é um estado superior ao intercomunalismo revolucionário. Sempre haverá contradições, caso contrário as coisas iriam parar. Então, não é uma questão de “quando a revolução vier”: a revolução está sempre acontecendo. Não é uma questão de “quando a revolução vai acontecer”: a revolução está acontecendo a todos os dias, a cada minuto, porque o novo está sempre lutando contra o velho pela dominância.

Também dizemos que a determinação é uma limitação, e que toda limitação é uma determinação. Essa é a luta do velho e do novo mais uma vez, quando uma coisa parece negar a si mesma. Por exemplo, o imperialismo nega a si mesmo depois de estabelecer os fundamentos para o comunismo, e o comunismo eventualmente negará a si mesmo por suas contradições internas, e então se moverá para um estado ainda mais superior. Eu gosto de pensar que finalmente nos moveremos para um estágio chamado “divindade”, em que o homem saberá os segredos do início e do fim e terá todo controle sobre o universo – e quando eu digo universo, quero dizer movimento e matéria. Isso é apenas especulação, claro, porque a ciência ainda não nos ofereceu a resposta, mas acreditamos que o fará no futuro.

Então é claro que sempre haverá contradições no futuro. Mas algumas contradições são antagônicas e outras são não antagônicas. Normalmente, quando falamos de contradições antagônicas, estamos falando de contradições que se desenvolvem a partir de conflitos econômicos e pensamos que, no futuro, quando o povo tiver o poder, essas contradições antagônicas irão ocorrer cada vez menos

 

Você poderia falar sobre a questão de como vão expropriar os expropriadores quando são eles que têm um exército e  que têm uma força policial?

Bem, todas as coisas carregam um sinal positivo assim como um sinal negativo. É por isso que dizemos que toda determinação tem uma limitação e toda limitação tem uma determinação. Por exemplo, o seu organismo carrega contradições internas desde o momento em que você nasce e começa a se deteriorar. Primeiro, você é um bebê, então uma criança pequena, depois um adolescente e daí em diante até que você é velho. Continuamos nos desenvolvendo e nos consumindo ao mesmo tempo; estamos nos negando. E é dessa maneira que o imperialismo está negando a si mesmo neste momento. Ele se deslocou para uma fase que chamamos de intercomunalismo reacionário e, assim, estabeleceu as condições para o intercomunalismo revolucionário, porque enquanto o inimigo dispersa suas tropas e controla cada vez mais espaço, ele se torna cada vez mais fraco. E na medida em que ele se torna cada vez mais fraco, o povo se torna cada vez mais forte.

Você falou de diferenças tecnológicas entre os vários países do mundo. Como vocês vão integrar todos esses países em um intercomunalismo se essas diferenças existem?

Eles já estão integrados pelo simples fato de que o círculo dominante controla todos eles. No interior da região geográfica da América do Norte, por exemplo, você tem Wall Street, você tem as grandes fábricas de Detroit produzindo automóveis e você tem o Mississippi, onde não existe nenhuma indústria automobilística. Isso quer dizer que o Mississippi não é parte da totalidade completa? Não, isso apenas quer dizer que os expropriadores escolheram colocar a indústria automobilística em Detroit e não no Mississippi. Ao invés de produzir automóveis, eles produzem comida no Mississippi para dar mãos fortes para o povo em Detroit ou em Wall Street. Então a resposta para a sua pergunta é que os sistemas são inclusivos: só porque você não tem uma fábrica em cada comunidade não quer dizer que a comunidade é distinta ou independente ou autônoma.

Bem, então você vê cada uma das comunidades dispersas como tendo algumas coisas para resolver no seu interior antes que elas possam participar do intercomunalismo?

Elas são parte do intercomunalismo, do intercomunalismo reacionário. O que as pessoas têm que fazer é se tornarem conscientes dessa condição. A principal preocupação do Partido Pantera Negra é elevar o nível de consciência do povo com sua teoria e sua prática ao ponto de que ele possa enxergar exatamente o que o está controlando e o que o está oprimindo, e, portanto, enxergar exatamente o que deve ser feito – ou pelo menos qual é o primeiro passo. Uma das maiores contribuições de Freud foi tornar as pessoas conscientes de que elas controlavam grande parte das suas vidas em seu inconsciente. Ele tentou levantar o véu do inconsciente e torna-lo consciente: esse é o primeiro passo para se sentir livre, o primeiro passo para exercer o controle. Parece ser natural que as pessoas que não gostem de ser controladas. Marx fez uma contribuição parecida à liberdade humana, só que ele apontou as coisas externas que controlam as pessoas. Para que as pessoas libertem a si mesmas dos controles externos, elas têm que conhecer esses controles. A consciência do que é expropriador é necessária para expropriar o expropriador, para derrubar os controles externos.

Na intercomuna absoluta você vê comunidades separadas, determinadas geograficamente, tendo uma história específica e um conjunto único de experiências? Cada comunidade manteria algum tipo de identidade separada?

Não, penso que quer gostemos ou não, a dialética tornaria necessário que houvesse uma identidade universal. Se não tivermos uma identidade universal, então teremos chauvinismo cultural, racial e religioso, o tipo de etnocentrismo que temos agora. Então dizemos que mesmo que no future existam pequenas diferenças entre os padrões de comportamento, diferentes ambientes, isso seria uma coisa secundária. E lutamos por um futuro no qual percebamos que somos todos Homo sapiens e temos mais em comum do que o contrário. Estaremos ainda mais próximos do que estamos agora.

 

Gostaria de retornar a uma coisa de que falávamos há um minuto ou dois. Me parece que a mídia de massas de certo modo psicologizou muitas das pessoas em nosso país, em nossa própria região geográfica, para que elas cheguem a desejar muitos dos controles que são impostos a elas pelo sistema capitalista. Então, como vamos conduzir essa revolução se um grande número de pessoas, pelo menos nesse país, são de fato psicologicamente parte da classe dominante?

Parte da ou controladas por ela?

 

Bem, parte dela em um sentido psicológico, porque elas não estão realmente no poder. É uma maneira psicológica de falar sobre a classe média. Você tem algumas reflexões quanto a isso?

Em primeiro lugar, temos que compreender que tudo tem uma base material, e que as nossas personalidade não existiriam, o que outras pessoas chamam de nosso espírito ou nossa mente não existiria, se não fôssemos organismos materiais. Então, para compreender porque algumas vítimas da classe dominante podem se identificar com o círculo dominante, devemos observar suas vidas materiais, e se fizermos isso iremos perceber que as mesmas pessoas que se identificam com o círculo dominante também são muito infelizes. Os seus sentimentos podem ser comparados aos de uma criança: a criança deseja amadurecer para que possa controlar a si mesma, mas ela acredita que precisa da proteção do seu pai para fazer isso. Ela tem pulsões conflitantes. Os psicólogos chamariam isso de conflito neurótico se a criança não conseguir resolvê-lo.

Em certo sentido, então, é disso que estamos falando. Em primeiro lugar, as pessoas tem que estar conscientes das maneiras pelas quais são controladas, então temos que compreender as leis científicas envolvidas, e uma vez que isso for feito, podemos começar a fazer o que quisermos para lidar com o fenômeno.

 

Mas se as forças opositoras nesse ponto incluem um grande número de pessoas, incluindo a maior parte das classes médias, então de onde virá o impulso revolucionário?

Entendo onde você está querendo chegar. Esse impulso virá do número crescente do que chamamos “desempregáveis” em uma sociedade. Chamamos negros e pessoas do terceiro mundo, em particular, e pessoas pobres, em geral, de “desempregáveis” porque eles não tem as qualificações necessárias para trabalhar em uma sociedade de tecnologia altamente desenvolvida. Lembre-se de que eu dizia que toda a sociedade, como toda era, contém a sua oposição: o feudalismo produziu o capitalismo, que destruiu o feudalismo, e o capitalismo produziu o socialismo, que irá destruir o capitalismo. Bem, o mesmo é verdade para o intercomunalismo reacionário. O desenvolvimento tecnológico cria uma grande classe média, e o número de operários também aumenta. Os operários são bem pagos e conseguem muitos confortos. Mas a classe dominante ainda está interessada apenas em si mesma. Ela pode assumir certos compromissos e oferecer um pouco – de fato, o círculo dominante  chegou até mesmo a desenvolver uma estrutura social ou um Estado de bem-estar para manterá oposição em baixa – mas a tecnologia se desenvolve, e a necessidade de operários diminui. Foi estimado que daqui a dez anos, apenas uma pequena porcentagem da força de trabalho atual será necessária para fazer funcionar as indústrias. Então, o que irá acontecer ao seu operário que nesse momento está ganhando quatro dólares por hora? A classe operária irá diminuir, a classe de desempregáveis irá crescer porque serão necessárias mais e mais habilidades para operar as máquinas e menos pessoas. E na medida em que essas pessoas se tornam desempregáveis, então elas irão se tornar cada vez mais alienadas; até mesmo os compromissos socialistas não serão suficientes. Então você poderá encontrar uma integração entre, digamos, os desempregáveis negros e os peão branco racista que não tiver um emprego regular e está possesso com os negros que ele pensa que ameaçam o seu trabalho.  Esperamos que ele irá juntar forças com as pessoas que já são desempregáveis, mas quer ele faça isso quer não, a sua existência material terá mudado. O proletário irá se tornar lumpemproletário. É essa mudança futura, o aumento do lumpemproletariado e a diminuição do proletariado – que nos faz dizer que o lumpemproletariado é a maioria e que ele carrega a bandeira revolucionária.

 

Gostaria de fazer uma pergunta sobre o Partido. Você disse que vê o Partido Pantera Negra primeiramente como uma força para educar o povo, elevar a sua consciência, dar fim à sua opressão, etc. Você vê o Partido como educador do povo negro em especial ou como educador de todos?

Dizemos que o povo negro é a vanguarda da revolução nesse país. E uma vez que ninguém poderá ser livre até que o povo da América seja livre, então o povo negro é a vanguarda da revolução mundial. Não dizemos isso de uma maneira autoproclamatória. Herdamos esse legado primeiramente porque somos os últimos, e como se diz, “os últimos serão os primeiros”.

Acreditamos que os americanos negros são os primeiros verdadeiros internacionalistas; não apenas o Partido Pantera Negra, mas os americanos negros. Somos internacionalistas porque fomos internacionalmente dispersados pela escravidão, e podemos facilmente nos identificar com outros povos em outras culturas. Por causa da escravidão, nunca nos sentimos realmente conectados a uma nação da mesma maneira que o camponês estava conectado com o solo da Rússia. Estamos sempre muito longe de casa.

E, por fim, a condição histórica dos americanos negros nos levou a sermos progressistas. Sempre falamos de igualdade, você vê, ao invés de acreditar que outras pessoas devem ser iguais a nós. O que queremos não é dominação, mas que o domínio seja abandonado. Queremos viver com outras pessoas. Não queremos dizer que somos melhores: na verdade, se temos um defeito é que tendemos a pensar que somos piores que as outras pessoas porque passamos por uma lavagem cerebral para pensar assim. Então, esses fatores subjetivos, baseados na existência material do povo negro na América contribuem para nossa posição de vanguarda.

Agora, no que diz respeito ao Partido, ele tem sido exclusivamente negro até aqui. Estamos pensando em como lidar com a situação racista na América e com a reação que as pessoas negras têm ao racismo. Temos que chegar ao povo negro primeiro, porque eles estavam carregando o peso primeiro, e fazemos todo o possível para que eles se liguem a nós.

 

Você estava falando a algum tempo atrás sobre o problema de simplificar a sua ideologia para as massas. Poderia falar um pouco mais sobre isso?

Sim, esse é nosso maior problema. Até aqui, não consegui fazer isso bem o suficiente para evitar ser vaiado, mas estamos aprendendo. Acho que uma maneira de mostrar como a dialética funciona é usar exemplos práticos e mais exemplos práticos. A razão pela qual as vezes tenho medo de fazer isso é que as pessoas podem pegar cada exemplo e pensar “Bem, se isso é verdade em um caso, então deve ser verdade em todos os outros casos”. Se elas fizerem isso, então elas se tornam materialistas históricos como a maior parte dos estudiosos marxistas e dos partidos marxistas. Esses estudiosos e partidos não tratam de dialética de modo algum, caso contrário iriam saber que nesse momento a bandeira revolucionária não será carregada pela classe proletária, mas pelo lumpemproletariado.

 

Falando de contradições, uma das contradições mais óbvias na comunidade negra é a diferença de perspectiva entre a burguesia negra e as classes populares negras. Como vocês elevam o nível de consciência na comunidade ao ponto de que a burguesia negra veja os seus próprios interesses como sendo os mesmos que os das classes populares?

Bem, estamos mais uma vez lidando com atitudes e valores que tem que ser mudados. Todo o conceito da burguesia – burguesia negra – é uma espécie de ilusão. É uma burguesia de faz de conta, e isso é verdade também para a maior parte da burguesia branca. Existem muito poucos controladores até mesmo na classe média branca. Eles mal conseguem manter as suas cabeças acima do nível da água, estão pagando todas as contas, vivendo da mão à boca, e ainda tem os custos adicionais de se recusarem a viver como as pessoas negras, veja só. Então, na verdade eles não controlam nada, são controlados.

Do mesmo modo, não reconheço a burguesia negra como diferente de outras pessoas exploradas. Ela está vivendo em um mundo de fantasia, e toda a questão é elevar a consciência ao ponto de mostrar os seus interesses reais, os seus interesses objetivos e verdadeiros, assim como nossos amigos progressistas e radicais brancos tem que fazer na comunidade branca.

 

Como vocês fazem para elevar o nível de consciência na comunidade negra? Educacionalmente, quero dizer. Vocês tem programas de educação formais?

 

Bem, vimos a necessidade de formalizar a educação porque não acreditávamos que um tipo de estudo aleatório traria necessariamente os melhores resultados. Também vimos as supostas casas do saber não fazer nada além de nos deseducar; elas ou nos expulsavam ou nos faziam sair. Fizeram as duas coisas comigo. Então o que estamos tentando fazer é estruturar uma instituição educacional nossa.

Nossa primeira tentativa nessa linha é o que chamamos nosso Instituto Ideológico. Até agora, temos mais ou menos cinquenta estudantes, e esses cinquenta estudantes estão muito bem, diria que são estudantes únicos, porque todos eles são irmãos e irmãs da vizinhança. O que quero dizer é que eles são lumpemproletários. A maior parte deles são pessoas expulsas e marginalizadas, a maior parte deles abandonou a escola no oitavo, nono ou décimo ano. E os poucos que ficaram até o fim não aprenderam a ler ou a escrever, assim como eu não sabia ler até os dezesseis. Mas agora eles estão aprendendo dialética, e estão aprendendo ciências – eles estudam física e matemática para que possam compreender o universo – e estão aprendendo porque pensam que isso é relevante para eles agora. Eles vão levar esse conhecimento de volta para a comunidade e a comunidade irá, por sua vez, ver a necessidade do nosso programa. Ele é muito prático e está ligado às necessidades do povo de uma maneira que faz com que sejam receptivos às nossas lições e ajuda a abrir os seus olhos para o fato de que o povo é o verdadeiro poder. São eles que irão provocar a mudança, não apenas nós. Uma vanguarda é como a ponta de uma lança, é aquilo que vai primeiro. Mas o que realmente fere é o fim da lança, porque ainda que a ponta faça a perfuração necessária, é o fim que penetra. Sem a sua parte final, uma lança não é nada além de um palito de dentes.

 

E a Universidade Malcolm X? Vocês diriam que ela tem o seu valor?

A questão toda é: quem está no controle? Nós, no Partido Pantera Negra, controlamos nosso Instituto Ideológico. Se o povo (e quando dizemos “o povo”, quero dizer o povo oprimido) controla a Universidade Malcolm X, se eles a controlam sem reservas ou sem ter que responder pelo que é feito ali ou por quem fala ali, então a Universidade Malcolm X é progressista. Se não é esse o caso, então a Universidade Malcolm X, ou qualquer universidade com qualquer outro nome, não é progressista. Eu gosto do seu nome, apesar disso. [Risos]

O que eu não compreendo é o seguinte: se a unidade de identidade vai existir no intercomunalismo revolucionário, então quais serão as contradições que irão produzir novas mudanças? Me parece que seria virtualmente impossível evitar algumas contradições.

Concordo com você. Não se pode evitar as contradições, e não se pode evitar a luta de tendências opostas na mesma totalidade. Mas eu não posso te dizer quais serão essas novas oposições porque elas não existem ainda. Entendo o que eu digo?

 

Acho que sim. Mas como tudo isso se encaixa com a sua ideia de uma identidade unificada?

Bem, em primeiro lugar, não lidamos como panaceias. O salto qualitativo do intercomunalismo reacionário para o intercomunalismo revolucionário não será o milênio. Ele não irá levar imediatamente a uma identidade universal ou a uma cultura que seja essencialmente humana. Ele irá apenas oferecer as bases materiais para o desenvolvimento dessas tendências.

Quando o povo tomar os meios de produção, quando tomarem os meios de comunicação de massas e daí em diante, ainda haverá racismo, ainda haverá etnocentrismo, ainda haverá contradições. Mas o fato de que o povo estará no controle de todas as unidades produtivas e institucionais da sociedade – não apenas as fábricas, mas também a mídia – irá permitir que ele comece a resolver essas contradições. Isso irá produzir novos valores, novas identidades; isso irá moldar uma cultura nova e essencialmente humana, na medida em que as pessoas resolvem velhos conflitos baseados em contradições econômicas e culturais. E em algum momento, haverá uma mudança qualitativa e o povo terá transformado o intercomunalismo revolucionário em comunismo.

Chamamos esse ponto de “comunismo” porque nesse momento da história o povo não apenas irá controlar as unidades produtivas e institucionais da sociedade, mas terão também tomado posse de suas próprias atitudes subconscientes em relação a essas coisas; e pela primeira vez na história, ele terá uma relação mais ou menos consciente com o mundo material – pessoas, plantas, livros, máquinas, mídia, tudo – em que ele vive. Ele terá poder, ou seja, o controle dos fenômenos em torno dele e fará com que eles ajam de uma maneira esperada, e então ele irá conhecer seus verdadeiros desejos. O primeiro passo nesse processo é a conquista, pelo povo, de suas próprias comunidades.

Me deixe dizer mais uma coisa antes de voltar à sua questão. Eu gostaria de ver o tipo de comunismo que acabei de descrever chegar a existir e penso que ele irá existir. Mas o conceito está tão além da minha compreensão que eu não poderia nomear as contradição que existirão nesse momento, ainda que eu tenha certeza de que a dialética irá continuar. Vou ser honesto com você. Não importa como eu tende compreender isso, eu ainda não compreendo.

 

Mas eu ainda não vejo de onde as contradições poderiam vir.

 

Eu também não consigo ver, porque elas ainda não existem. Apenas a base para elas existe, e não podemos falar sobre coisas que ignoramos, coisas que não conhecemos. Os filósofos já fizeram isso o suficiente.

 

Você está falando dessa ideologia do intercomunalismo como parte do programa do Partido Pantera Negra e nos dizendo que a ideia é lutar por uma unidade de identidade. Ainda assim, a uns minutos atrás vocês disse que o Partido só aceita membros negros. Isso parece uma contradição para mim.

Bem, acho que é mesmo. Mas para explicar isso, eu teria que voltar ao que disse antes. Somos a ponta de lança na maior parte do tempo, e tentamos não estar muito na frente das massas do povo, muito além do seu pensamento. Temos que compreender que a maior parte das pessoas não está pronta para as coisas de que nós estamos falando.

Agora, muitas das nossas relações com outros grupos, como os radicais brancos com os quais fizemos alianças, foram criticadas pelas próprias pessoas que estamos tentando ajudar. Por exemplo, oferecemos nossas tropas aos vietnamitas, e isso teve uma resposta negativa do povo. E me refiro ao povo realmente oprimido. Pessoas que recebem nossos programas de bem-estar nos escreveram cartas dizendo “Pensei que o Partido era para nós; por que você quer dar o nosso sangue por esses vietnamitas sujos?”. Eu concordaria com você e diria que isso é uma contradição. Mas é uma contradição que estamos tentando resolver. Veja, estamos tentando oferecer uma terapia, você poderia dizer, à nossa comunidade e elevar a sua consciência. Mas primeiro temos que ser aceitos. Se o terapeuta não é aceito, então ele não pode entregar a mensagem. Tentamos fazer o que for possível para encontrar o paciente no terreno no qual ele ou ela está, porque, no fim das contas, são eles que estão em questão. Então, diria que estamos sendo pragmáticos para fazer o serviço que tem que ser feito, e então, quanto ele estiver feito, o Partido Pantera Negra não será mais o Partido Pantera Negra.

 

Isso me traz uma questão relacionada a essa. Como você vê as lutas das mulheres e pessoas gays nesse momento? Quer dizer, você as vê como parte importante da revolução?

 

Pensamos que é muito importante se ligar a isso e compreender as causas da opressão das mulheres e pessoas gays. Podemos ver que existem contradições entre os sexos e entre homossexuais e heterossexuais, mas acreditamos que essas contradições deveriam ser resolvidas na comunidade. Frequentemente, as supostas vanguardas revolucionárias tentaram resolver essas contradições isolando mulheres e pessoas gays, e, claro, isso só quer dizer que os grupos revolucionários se isolaram de uma das mais poderosas e importantes forças no interior do povo. Não acreditamos que a opressão de mulheres e gays irá acabar com a criação de comunidades separadas para cada grupo. Vemos essa como uma ideia incorreta, assim como a ideia de uma nação separada. Se as pessoas querem fazer isso, têm todo direito de fazer, mas isso não vai resolver os seus problemas. Então, tentamos mostrar às pessoas a maneira correta de resolver esses problemas: a vanguarda tem que incluir todas as pessoas e compreender os seus limites.

 

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de The Huey P. Newton Reader. Nova York: Seven Stories Press. 2002.
Você pode contribuir enviando e-mails indicando erros de tradução ou sugestões de melhoria para autonomistablog@gmail.com
Este e outros textos de tradução do Coletivo Autonomista! estão disponíveis em: https://autonomistablog.wordpress.com/

Todo conhecimento deve ser livre. Por isso, não há restrições à cópia e distribuição desse material. Compartilhe!

Para o infinito e além!

Caros camaradas,

 

Por motivos de força maior e sinistra, estamos preparando nossas despedidas. Já estamos no ponto final do projeto de traduções que havíamos preparado (só nos falta publicar mais um texto) e depois entramos em um hiato sem data pra terminar. Tentamos, na medida de nossas pequenas forças, contribuir o pouco que fosse para a elaboração de uma nova perspectiva socialista desde baixo, coisa que, temos que admitir, não é fácil.

 

Em um país que vive em um sistema de Estado programado por uma ditadura militar fascista (e não podemos nos enganar com isso: mesmo que a forma de governo tenha mudado da ditadura aberta ao governo representativo, a ordem institucional ainda é uma que foi projetada pela reação de 64, das prisões à rede Globo, da polícia ao PMDB[1]) que tinha como um dos seus principais objetivos o combate da “ameaça comunista”[2], não poderia mesmo ser fácil. 1988 é o ano de uma constituição que enquanto mantém no fundo geral a ordem das coisas de antes, no detalhe aceitou certos compromissos com as esquerdas (alguns deles, derrotas mínimas que fizeram com que Sarney dissesse que a constituição de 88 era inviável), a maior parte deles ficando na letra morta ou sendo pervertida pela dinâmica capitalista, da reforma agrária ao SUS (é preciso lembrar que, nesse mesmo momento, o primeiro grande ato político da República de 88 foi o massacre da CSN, com a intervenção do exército para manter a classe operária no seu devido lugar[3]…).

 

O Estado brasileiro, na “transição para a democracia”, cria um dispositivo para tentar gerenciar os conflitos sociais sem que eles saiam do controle, mantendo a organização geral com uma “democracia de baixa intensidade” – ou, como nos disse um militante da velha guarda sobre a República de 88, em uma “democradura”. Esse dispositivo mágico, que funcionava quase sem travar e ranger até o ano 2013, tem um nome: “sistema partidário”[4]. Quando, sob a pressão da derrota eleitoral de 1989, das desilusões da queda da URSS (que, paradoxalmente, apesar de já ter virado o Cabo do Revisionismo havia muitas décadas e não passar de um capitalismo burocrático, continuava a ser uma referência imaginária quanto à possibilidade de um horizonte não-capitalista de vida) e do “fim da história”, da recomposição dos comportamentos da classe trabalhadora sob as contrarreformas neoliberais, e da presença de tendências reformistas no seu interior o bloco político PT/CUT fez a opção pela institucionalização, foi a esse dispositivo e a esse sistema de Estado que ele se integrou[5]. Não é estranho que daí em diante o movimento de massas e as organizações anticapitalistas no Brasil tenham passado por um radical processo de captura pelas instituições de Estado e de adaptação às regras do jogo do capitalismo subimperialista (ou semi-periférico) brasileiro. Enquanto nossos pais cantavam as belezas da “democracia” e das eleições diretas para presidente, os milicos entregavam a casa em ordem para o consórcio empresarial que controlava o projeto-Brasil (não sem deixar pra trás um caminho de migalhas de pão e dispositivos convenientes para fazer o caminho de volta, caso necessário).

 

De nossa perspectiva, não é possível avaliar de maneira justa a atual composição de classe sem compreender a decomposição da classe imposta pelo projeto militar e por seus aparelhos de Estado, de uma sistema público de ensino precário à hegemonia quase total da mídia (da casa) grande. Enquanto, por uma pequena janela de tempo, a produção de uma inteligência coletiva desde baixo e à esquerda era mobilizada pelas novas instituições independentes da classe, das oposições sindicais às escolas camponesas, passando pela rede de militantes e intelectuais à esquerda que se posicionavam abertamente (e em luta) nas instituições de ensino do Estado, com a integração do bloco político conduzido pelo Partido dos Trabalhadores ao sistema estatal da República de 88 essa produção passou a ser abafada, reduzida e controlada. O projeto-Brasil é, hoje, o país mais marcadamente anticomunista da América Latina, com direito à difusão de um discurso que vai de par com o Tea Party norte-americano. É quase como punição por esse compromisso histórico da esquerda dos anos 80 com o capitalismo nacional que volta a aparecer um monstro de duas cabeças no lugar de uma inteligência coletiva revolucionária: por um lado, os vários grupelhos sectários, cada um com uma orientação estratégica mais genial do que a anterior, que mal conseguem conter suas posições anticomunistas e atendendo aos gostos individuais mais variados, indo desde o verniz “libertário” aos coletivos de orientação “pós-moderna” – por outro, o retorno do dogmatismo burocrático e da caricatura do materialismo histórico na forma de um “socialismo de Estado” e de um programa nacional-chauvinista marcadamente economicista (curiosamente e seguindo sua tendência histórica à confusão, as tendências trotskistas parecem se limitar a oferecer uma versão particular de um e de outro ao mesmo tempo em que tentam se integrar como “ala de oposição” ao “sistema partidário”).

 

Mas se esse monstro consegue ganhar um pouco mais de fôlego e dobrar as mangas hoje (ainda que sempre afastado do movimento de massas real) é porque a crise do “sistema partidário” é, hoje, uma realidade. Não existe lado de fora na luta de classes, e a integração do movimento de massas e das lutas das e dos trabalhadores no Estado capitalista teve um custo para o “sistema partidário” na forma da concessão de algumas das exigências históricas dos de baixo, de modo que o sistema conseguisse manter sua legitimidade, gerenciar politicamente as pressões (e, como é a tradição dessa ordem autoritária e ultra-racista que é o projeto-Brasil, deixando para os moradores das periferias, indígenas e demais rebeldes a lei do chumbo e do sangue). Mas, como já se disse há mais de 40 anos, esse tipo de captura tem um limite bastante curto. A história é conhecida: o projeto-Brasil é, hoje como há 500 anos, baseado na aliança entre duas frações dos de cima – de um lado, uma burguesia-parasita, de tipo colonial e oligárquico, ligada ao agro e à dívida pública (e talvez, como se tem visto nas últimas, ao tráfico internacional de cocaína), por outra uma burguesia ligada ao setor industrial ou “produtivo” e ao processo de circulação de mercadorias interno (que, segundo as fábulas, é chamada de “burguesia nacional”). A todo momento em que tenta se aventurar pelas trilhas de um capitalismo nacional independente ou coisa do tipo, a “burguesia nacional” busca estender as mãos para os de baixo, na tentativa de consolidar sua força política e alterar as regras do jogo, oferendo concessões aqui e ali (é esse pacto que, entre nós, é chamado de “progressismo”). Mas, como burguesia industrial de um país dependente, ela não pode sustentar coletivamente o pacto que, individualmente, busca manter: para manter alguma competitividade no capitalismo global, é preciso superexplorar os trabalhadores na periferia, comprimir os salários e restringir o que é gasto com a reprodução da classe trabalhadora. Resultado: ameaçada pelo aumento do poder organizativo da classe que é consequência dos ganhos salariais e das conquistas no terreno da reprodução, vendo sua taxa de lucro diminuir e sua competitividade no capitalismo mundial cair, a burguesia nacional só pode roer a corda e romper o pacto que havia feito com os debaixo, voltando à aliança normal com a “lumpenburguesia”[6] e promovendo uma caçada geral aos ganhos concedidos (em um pouco além) no processo[7]. Quando o PT foi integrado ao “sistema partidário”, foi dado um passo na domesticação dos de baixo e pavimentado o caminho para o pacto “progressista”. Depois de 2013, quando os de baixo começaram abertamente a se aventurar por novos caminhos e a respirar de maneira autônoma, para além do controle do “sistema partidário”, estavam colocadas as primeiras pedras para a ruptura do pacto, e o que veio depois não foi muito mais do que a repetição (muito) farsesca da ruptura dos outros pactos “progressistas” anteriores. Com uma diferença, no entanto, que deixa as coisas um pouco mais trágicas: como o pacto foi operado e orquestrado dentro de uma ordenação institucional em que estava tudo dominado, ele rebaixou ainda mais o tom (muito mais), dando garantias de segurança ao setor financeiro, dividindo lençóis com uma parte do agro e dispensando a possibilidade de uma reação repressiva e aberta como em ’64, levando um palhaço à presidência do comitê de negócios da burguesia.

 

A missão que se impõe agora é retomar, em certo sentido, a lembrança e a lição dos camaradas da geração dos anos 60, da Ação Popular à Polop, passando por todos os rachas à esquerda do PCB – como diria Marighella, “é hora de trabalhar pela base, mais e mais pela base”, rompendo ao mesmo tempo com o “sistema partidário” e com a lógica das seitas socialistas e semissocialistas. Certamente, não para repetir as mesmas estratégias e impasses dos camaradas do ciclo de lutas dos anos 60, mas para retomar algumas linhas gerais, para conquistar um passado que nos foi arrancado pelos milicos, para retomar uma elaboração viva e criativa do materialismo histórico, capaz de contribuir como a rearticulação política de uma oposição antagônica e pela base, autônoma (das instituições que pretendem representa-la, do poder do capital, e em que cada um dos elementos “específicos”– mulheres, negros, LGBT’s enquanto mulheres, negros, LGBT’s – possam ter sua autonomia organizativa respeitada ao mesmo tempo em que se integram ao ciclo de lutas de massas), uma nova esquerda extraparlamentar radical e consequente. As lições dos companheiros do MPL, em 2013, das recentes ocupações das escolas secundaristas, em 2016, e a continuidade da luta dos povos indígenas – talvez o setor mais radicalizado nacionalmente – dão o tom a seguir. Resta aos militantes comunistas saber seguir o fio da meada e não recusar o novo.

Até breve!

 

 

 

[1] Sobre a diferença entre sistema de Estado e forma de governo, ver HARNECKER, Marta. Los conceptos elementales del materialismo historico, p. 120-122 e LÊNIN, V.I. “Sobre o Estado” em Obras escolhidas – vol. 3, p.176-190.

[2] Cf. GIANNOTTI, Vito. História das lutas dos trabalhadores no Brasil, p. 173-193.

[3] Nas palavras do líder sindical Juarez Antunes: “Foi a violência tremenda da Nova República”. Cf. o vídeo “VOLTA REDONDA – GREVES, CONFLITOS E MORTES EM 10 DE NOVEMBRO DE 1988”, em https://www.youtube.com/watch?v=4BH7KaVm0ts&t=316s.

[4] Ver o texto de Sergio Bologna, A tribo das toupeiras, em https://autonomistablog.wordpress.com/2017/06/17/sergio-bologna-a-tribo-das-toupeiras/.

[5] Quanto à CUT especificamente, vale lembrar que já desde esse período do fim dos anos 80 estava posto o debate sobre a “desideologização da CUT”, o “sindicalismo de resultados” e a filiação a centrais sindicais internacionais de orientação pelega. O “novo sindicalismo” já em meados dos anos 90 estava integrado ao aparelho sindical do Estado, um aparelho já bastante velho. Cf. GIANNOTTI, Vito. História das lutas dos trabalhadores no Brasil, p. 256-257, 279-280.

[6] Cf. GUNDER FRANK, André. Lumpenbourgeoisie and Lumpendevelopment: Dependency, Class and Politics in Latin America.

[7] A elaboração de todo esse processo cabe ao livro fundamental de Ruy Mauro Marini, Subdesenvolvimento e revolução. Cf. especialmente pp.57-66, 96-99 e 135-143.

O Estado brasileiro, na “transição para a democracia”, cria um dispositivo para tentar gerenciar os conflitos sociais sem que eles saiam do controle, mantendo a organização geral com uma “democracia de baixa intensidade” – ou, como nos disse um militante da velha guarda sobre a República de 88, em uma “democradura”. Esse dispositivo mágico, que funcionava quase sem travar e ranger até o ano 2013, tem um nome: “sistema partidário”. Quando, sob a pressão da derrota eleitoral de 1989, das desilusões da queda da URSS (que, paradoxalmente, apesar de já ter virado o Cabo do Revisionismo havia muitas décadas e não passar de um capitalismo burocrático, continuava a ser uma referência imaginária quanto à possibilidade de um horizonte não-capitalista de vida) e do “fim da história”, da recomposição dos comportamentos da classe trabalhadora sob as contrarreformas neoliberais, e da presença de tendências reformistas no seu interior o bloco político PT/CUT fez a opção pela institucionalização, foi a esse dispositivo e a esse sistema de Estado que ele se integrou

Silvia Federici & Mario Montano – Teses sobre o operário de massas e o capital social

1.

 

Os anos desde o início do século até a greve geral inglesa de 1926 comprovam um traço fundamental na luta de classes: enquanto grandes contradições entre zonas desenvolvidas e atrasadas caracterizam o capitalismo nesse momento e o confinam a níveis nacionais de organização, a autonomia política e a independência da classe operária atingem um nível internacional. Pela primeira vez, o capital é ultrapassado pelos operários em um nível internacional. O primeiro ciclo internacional, mais ou menos de 1904 a 1906, é um ciclo de greve de massas que ocasionalmente se desenvolve em ações violentas e insurreições. Na Rússia, ele começa com a greve de Putilov e se desenvolve na revolução de 1905. 1904 é a data da primeira greve geral italiana. Na Alemanha, a greve espontânea dos mineiros do Ruhr em 1905 em torno da questão das oitos horas e a greve geral de Hamburgo de 1906, levaram a uma onda de luta de classes que inundou uma grande rede de médias empresas. Nos EUA, as greves de mineiros de 1901 e 1904 e a fundação do IWW em 1905 parecem ser a premonição das lutas por vir.

 

2.

 

O segundo ciclo começa em 1911. Vemos as mesmas vanguardas de classe iniciarem a luta. Nos EUA as vanguardas são os mineiros de carvão da Virgínia do Oeste, os ferroviários de Harriman e os operários têxteis de Lawrence; na Rússia elas são os mineiros de ouro de 1912; na Alemanha são os operários da greve de massas de 1912 no Ruhr. A Primeira Guerra Mundial representa a ocasião para o desenvolvimento mais amplo da luta de classes nos EUA (1.204 greves em 1914; 1.593 em 1915; 3.789 em 1916 e 4.450 em 1917 – e o Ministério Nacional do Trabalho sanciona um grande número de vitórias: a negociação coletiva, salários iguais para mulheres, garantia do salário mínimo) e ao mesmo tempo estabelece os marcos para um terceiro ciclo internacional.

Uma vez que a Guerra produziu uma explosão na indústria de precisão, maquinaria elétrica, ótica e em outros campos, o peso de classe dos operários superqualificados desses setores aumentou enormemente na Alemanha e em outros lugares. Eles são os operários que formaram a espinha dorsal dos conselhos na Revolução Alemã, na República Soviética na Bavária, e na ocupação de fábricas italiana de 1919. Em 1919, o ano da greve geral de Seattle, 4.160.000 operários nos EUA (20.2% de toda a força de trabalho), foram mobilizados na luta. Na circulação internacional de lutas, a Rússia, o “elo mais fraco”, se rompe. O pesadelo capitalista se torna realidade: a iniciativa da classe operária estabelece um “Estado operário”. A classe que fez sua primeira aparição política na arena em 184,8 e que aprendeu a necessidade de organização política com a sua derrota na Comuna de Paris, agora está se mobilizando internacionalmente. A mercadoria particular, a força de trabalho, o receptor passivo e fragmentado da exploração na fábrica, agora está se comportando como um ator político internacional, a classe operária política.

 

3.

 

Os traços políticos específicos desses três ciclos de luta estão na dinâmica de sua circulação. A luta começa com as vanguardas de classes e apenas depois circula pela classe e se desenvolve em ações de massas. Ou seja, a circulação das lutas segue a estrutura da composição de classe que predomina nesses anos. Essa composição consiste em uma grande rede de setores com graus de desenvolvimento diversos, pesos variados na economia e diferentes níveis de qualificação e experiência. As grandes distinções que caracterizam uma composição de classe desse tipo (a dicotomia entre uma “aristocracia operária” qualificada e a massas de não-qualificados é um ótimo exemplo) tornam necessário o papel de vanguardas de classe como pivôs políticos e organizativos. É por meio de uma aliança entre as vanguardas e as massas proletárias que as distinções de classe são progressivamente superadas e os níveis das lutas de massas são alcançados. Ou seja, a “recomposição política da classe operária” é baseada em sua estrutura industrial, a “articulação material da força de trabalho”.

 

4.

 

Os experimentos organizativos da classe operária nesses anos são necessariamente conectados à essa composição de classe específica. É esse o caso com o modelo bolchevique, o partido de vanguarda. A sua política da consciência de classe “vinda de fora” deve recompor toda a classe operária em torno das exigências de seus setores avançados; a sua “política de alianças” deve superar a separação entre os operários avançados e as massas. Mas também é esse o caso com o modelo dos conselhos, cujo impulso na direção da autogestão da produção está materialmente ligado à figura do operário qualificado (isto é, do operária com uma relação subjetiva fixada e única com as ferramentas e a maquinaria, e com uma autoidentificação consequente como “produtor”). Na Alemanha em particular, onde a indústria de máquinas e ferramentas se desenvolveu exclusivamente com base na qualificação excepcional dos operários, os conselhos expressam a sua ideologia “administrativa” mais claramente. É um nível relativamente alto de profissionalização desse tipo – com uma relação operário/ferramenta caracterizada por habilidades precisas, controle sobre as técnicas de produção, envolvimento direto com o planejamento do trabalho e cooperação entre funções de execução e planejamento – que os operários podem identificar com seu “trabalho útil” em um programa de autogestão da fábrica. No calor da luta, esse programa ganha o apoio dos engenheiros de produção.

 

5.

 

Com os conselhos, a “consciência de classe” se expressa mais claramente como a consciência dos “produtores”. Os conselhos não organizam a classe operária com base em um programa político de lutas. A estrutura do conselho reproduz – por equipe, oficina e fábrica – a organização capitalista do trabalho, e “organiza” os operários em seu papel produtivo, como força de trabalho, como produtores. Uma vez que os conselhos assumem a organização atual para a produção de capital (uma certa combinação de capital constante e capital variável, operários e máquinas) como a base para o seu projeto socialista, a sua hipótese de uma autogestão democrática dos operários só pode prefigurar a administração operária da produção de capital, ou seja, a gestão operária da sua própria exploração.

 

6.

 

Ainda assim, o caráter revolucionário de todas as lutas operárias deve ser sempre medido nos termos de sua relação com o projeto capitalista. Desse ponto de vista, se torna claro que a organização dos conselhos, ao reproduzir a articulação material da força de trabalho da maneira como ela é, também congela o desenvolvimento em um certo nível da composição orgânica do capital (o nível da relação subjetiva e fixada entre operários e máquinas). Portanto, ela desafia o poder do capital de realizar qualquer salto tecnológico ou reorganização da força de trabalho de que ele possa ter necessidade. Nesse sentido, os conselhos permanecem uma experiência revolucionária. Quanto ao aspecto ideológico do projeto de autogestão, a hipótese da gestão operária da produção de capital, também se torna claro que a “prefiguração de um nível mais avançado de desenvolvimento capitalista foi a maneira específica pela qual os operários se recusaram a se curvar às necessidades capitalistas do momento, tentando provocar o fracasso do plano capitalista e expressando necessidade da classe operária autônoma de conquistar o poder” (De Caro). É nessa recusa operária a ser forçada a ser uma força de trabalho maleável sob o controle capitalista e em sua exigência por poder sobre o processo produtivo (seja na forma da “autogestão” dos conselhos e o congelamento do desenvolvimento, ou no plano bolchevique de um desenvolvimento sob “controle operário”) que está a novidade política fundamental desse ciclo de lutas: em um nível internacional, uma tentativa operária de desviar a direção do desenvolvimento econômico, expressar objetivos autônomos e assumir a responsabilidade política pela administração de toda máquina produtiva.

 

7.

 

Quando os capitalistas se mobilizam para contra-atacar, eles não estão preparados para compreender os dois maiores dados do ciclo de lutas: a dimensão internacional da luta de classes e a ascensão da força de trabalho como uma classe operária política. Assim, enquanto a unificação internacional da luta da classe operária coloca a necessidade de uma unificação internacional da resposta do capital, o sistema de reparações impostas à Alemanha pelo Tratado de Versalhes apenas sela a divisão intercapitalista. Enquanto são confrontados por uma classe operária internacional, os capitalistas só podem perceber suas forças de trabalho nacionais. O resultado é a separação estratégica entre suas respostas internacionais e domésticas. Internacionalmente, a revolução mundial aparece aos capitalistas como “vindo de fora”, da liderança exemplar da URSS: daí a política de isolamento militar da Revolução Russa. Domesticamente, tudo o que os capitalistas entendem são as ferramentas tradicionais da sua dominação: (1) aniquilação violenta das organizações políticas operárias (os assaltos de Palmer e a destruição do IWW, o fascismo na Itália, a supressão sangrenta do “Exército Vermelho” no Ruhr, e daí em diante) que abre o terreno para (2) a manipulação tecnológica da força de trabalho (taylorismo, a “organização científica do trabalho”) como um meio de controlar politicamente a composição de classe.

 

8.

 

O taylorismo, a “organização científica do trabalho”, o salto tecnológico dos anos vinte, só servem a um propósito: destruir a articulação específica da força de trabalho que serviu de base para a recomposição política da classe operária durante as duas primeiras décadas do século (tese 3). A introdução da linha de montagem incide diretamente nas distinções tradicionais na força de trabalho, produzindo assim uma verdadeira revolução na composição de toda classe operária. O surgimento do operário de massas, o apêndice humano da linha de montagem, está superando a dicotomia vanguarda/massa sobre a qual o partido bolchevique foi montado. A própria “aristocracia operária” que o capital criou depois de 1870 em sua tentativa de controlar a circulação internacional da Comuna de Paris (os próprios operários supostamente “subornados” pela jornada de oito horas, os sábados de folga e a alta do nível salarial) se tornaram um dos pivôs da circulação das lutas no início do século XX. Com a linha de montagem, o capital lança um ataque político direto, em forma de tecnologia, às habilidades e ao modelo fabril dos conselhos de operários profissionais. Esse ataque causa a destruição material daquele nível de composição orgânica que servia como base para o projeto de autogestão (a unidade política entre engenheiros e operários também está sob ataque; do taylorismo em diante, os engenheiros deverão aparecer para os operários não como produtores diretos, mas como meros funcionários da organização científica da exploração; e o projeto da autogestão, esvaziado de seu impacto de classe original, só irá reaparecer como caricatura, na “revolução administrativa” ainda por vir).

 

9.

 

Assim, a resposta do capital às lutas segue o “caminho de repressão tecnológica” do século XIX: ela implica a ruptura com qualquer unificação política que a classe operária tivesse atingido durando um ciclo de lutas determinado através de uma revolução tecnológica na composição de classe. A manipulação constante da composição de classe por meio de inovações tecnológicas contínuas oferece uma ferramenta para o controle da classe “de dentro” através de sua existência como mera “força de trabalho”. A reorganização do trabalho como um meio para o fim da “decomposição política” da classe operária. Uma vez que a classe operária exigiu liderar toda a sociedade, força-la novamente para dentro da fábrica aparece como um movimento político apropriado. Nessa estratégia, fábrica e sociedade devem permanecer divididas. A forma específica dos processos de trabalho na fábrica capitalista (ou seja, o plano) ainda tem que ser impostas à sociedade inteira. A anarquia social é contraposta ao plano de fábrica. A paz social e a crescente produção de massas dos anos vinte parecem provar que as armas tradicionais tiveram sucesso mais uma vez. Será preciso a Depressão para dissipar essa crença.

 

10.

 

Com 1929, todas as ferramentas do ataque tecnológico à classe operária se voltaram contra o capital. As medidas econômicas e tecnológicas para conter a classe operária nos anos vinte (reconversão da economia de guerra, mudança tecnológica contínua e alta produtividade do trabalho) forçaram a um aumento tremendo da oferta, enquanto a demanda ficava desesperadamente para trás. Há queda de investimentos em espiral rumo a um grande colapso. De uma maneira bastante real, 1929 é a vingança operária. A produção em massa e a linha de montagem, longe de assegurar a estabilidade, levaram as velhas contradições a um nível mais alto. O capital estava, então, pagando um preço por sua fé na lei de Say (“a oferta cria a sua própria demanda”), com a sua separação de escoamento e mercado, produtores e consumidores, fábrica e sociedade, força de trabalho e classe política. Assim, ele permanece preso em um impasse trágico, entre a inadequação das ferramentas econômicas e tecnológicas do passado e a falta de novas ferramentas políticas. Será preciso Roosevelt-Keynes para produzi-las.

 

11.

 

Enquanto Hoover retoma a velha busca por “causas internacionais”, a abordagem de Roosevelt é inteiramente doméstica: a redistribuição de renda para sustentar a demanda interna. A estratégia keynesiana já está surgindo – mantendo a demanda alta ao permitir que os salários cresçam e reduzindo o desemprego através do gasto público. O Ato de Recuperação da Indústria Nacional (NRA) de 1933 aumenta os níveis salariais, encoraja a sindicalização e daí em diante ao mesmo tempo em que autoriza tanto investimentos maciços em trabalho públicos por meio do PWA e grandes fundos de auxílio. A ruptura política com o passado é imensa. Na visão clássica, a flexibilidade dos salários é a principal pressuposição. As lutas operárias são vistas como uma interferência externa em uma economia autorregulada: as organizações trabalhistas estão junto de outros “fatores institucionais” que mantém os níveis salariais “artificialmente”, enquanto é o papel do Estado preservar a economia contra interferências artificiais desse topo. No modelo keynesiano, a queda rígida dos salários é a pressuposição principal: salários são tomados como variáveis independentes. O Estado se torna um sujeito econômico encarregado do planejamento de redistribuições apropriadas de renda para sustentar a “demanda real”.

 

12.

 

A suposição de Keynes da queda rígida dos salários é “a descoberta mais importante do marxismo ocidental” (Tronti). Quando os salários se tornam uma variável independente, a lei tradicional do “valor do trabalho” colapsa. Nenhuma “lei”, mas apenas as próprias lutas dos trabalhadores podem determinar o valor do trabalho. O antagonismo de classe é trazido ao coração da produção e é assumido como o material dado sobre o qual o capital deve reconstruir sua estratégia. A NRA [Administração Nacional de Recuperação] é precisamente uma manobra política para transformar o antagonismo de classe de um elemento imprevisível de risco e instabilidade em um fator dinâmico de desenvolvimento. Por meio de sua enfatização dos salários em oposição ao simples efeito de custo, o New Deal escolhe os salários como a principal fonte do crescimento, mas dentro de limites precisos: os salários deve crescem harmonicamente em relação aos lucros. E isso porque as lutas operárias no interior dos planos do capital significa a classe operária no interior do Estado do capital. Daí a necessidade do surgimento de duas novas figuras políticas dos anos trinta: o capital como o novo “Estado-como-planejador” e a classe operária enquanto “trabalho” organizado.

 

13.

 

A virada no sentido do Estado-como-planejador é uma ruptura radical com todas as políticas de intervenção estatal. A NRA regula a totalidade da produção industrial. A certeza de um futuro capitalista foi abalada até as bases pela crise, mas os “códigos” da NRA, envolvendo a totalidade da classe capitalista (95% dos empregadores industriais) garantem que esse futuro exista. Na medida em que a profundida de da crise torna a função estatal de “correção dos erros” obsoleta, o Estado deve assumir a responsabilidade do investimento direto, “contribuição líquida” para o poder de compra. O Estado deve expor o mito da “solidez financeira” e impor déficits de orçamento. Ele não é mais uma figura jurídica (o domínio da lei burguesa), ele é um agente econômico (o plano capitalista) (tudo isso representa um divisor de águas histórico, o início de um longo processo político que irá culminar em uma “política de renda”, os marcos de salário-preço do New Frontier [programa econômico da administração Kennedy]). Mais importante ainda, enquanto representante do capitalista coletivo, a principal função do Estado é o planejamento da própria luta de classes. O plano do capital para o desenvolvimento deve estabelecer um controle institucional da classe operária.

 

14.

 

Daí a necessidade do movimento trabalhista como representante da classe operária no Estado capitalista. Mas o salto tecnológico dos anos vinte minou completamente os sindicatos ao tornar sua estrutura profissional obsoleta: em 1929, a AFL [Federação Americana dos Trabalhadores] controla apenas 7% da força de trabalho industrial. Cortando através de toda a antiga composição de classe e produzindo a massificação da classe, o taylorismo apenas forneceu a base material para uma recomposição política em um nível superior. Enquanto o operário de massas continua desorganizado ele/ela é inteiramente imprevisível. Assim, com a “sessão 7.a.” da NRA e mais tarde com a Lei Wagner, o capitalista coletivo começa a aceitar o direito dos operários de se organizarem e negociar coletivamente. Será um processo lento, porque enquanto os capitalistas como classe apoiam a NRA, o capitalista individual irá resistir às suas consequências no nível de sua própria fábrica. O nascimento da CIO [Congresso de Organizações Industriais] irá marcar a vitória de uma luta de trinta anos pelo sindicalismo de massas.  O capital e o operário de massas agora deverão se confrontar como Estado-como-planejador e trabalho organizado.

 

15.

 

A luta de classes, antes mortal do capitalismo e com a qual se deveria lidar pela violência, agora se torna a principal fonte do desenvolvimento de uma economia planejada. O desenvolvimento histórico da força de trabalho como classe operária política é reconhecido pelo plano do capital nessa grande ruptura teórica. O que era concebido como um objeto passivo e fragmentado de exploração e manipulação tecnológica agora é aceito como um sujeito político ativo e unificado. As suas necessidades não podem mais ser reprimidas violentamente: elas devem ser satisfeitas para garantir um desenvolvimento econômico contínuo. Anteriormente, a classe operária era percebida como a negação imediata do capital e a única maneira de extrair lucros era diminuir os salários e aumentar a exploração. Agora, a interdependência estreita da classe operária e do capital é confirmada pela estratégia de aumentar os salários para aumentar o lucro. Enquanto a redução da classe operária a uma mera força de trabalho era refletida em uma divisão estratégica entre a fábrica (exploração) e a sociedade (repressão) (Tese 9), o reconhecimento político da classe operária pelo capital exige a unificação da sociedade e da fábrica. O plano do capital está crescendo para além da fábrica para incluir a sociedade por meio de um Estado centralizado. Isso envolve o desenvolvimento de processos históricos que levam ao estágio do capital social: a subordinação do capitalista individual ao capitalista coletivo, a subordinação de todas as relações sociais às relações de produção e a redução de todas as formas de trabalho ao trabalho assalariado.

 

16.

 

A assinatura da NRA pelo presidente (junho de 1933) marca o início de um novo cilo de lutas. A segunda metade de 1933 testemunha a mesma quantidade de greves que todo o ano de 1932, com três vezes e meio o seu número de operários. Em junho de 1934, com o desemprego fortemente reduzido e um crescimento total de 38% da folha de pagamento total na indústria, a onda de greves ganha força. Os setores cruciais estão sendo afetados – entre eles os operários da metalurgia e da indústria automobilística, os estivadores da costa oeste e quase todos os operários têxteis, unidos pelas exigências salariais, de tempo de trabalho e de reconhecimento sindical. 1935 é o ano tanto da CIO e da Lei Wagner. Entre o verão de 1935 e a primavera de 1937, o emprego ultrapassa o nível de 1929, de um índice de 89.2 para um de 112.3. Em um contexto de relativa estabilidade dos preços, a produção industrial se move de um índice de 85 a um de 118, e os salários vão de 69.1 a 110.1 A massificação da luta da classe operária e o desenvolvimento econômico da recuperação capitalista são dois lados do mesmo processo: a luta circula para as pequenas fábricas e as indústrias marginais em que as interrupções da produção começam na Fire Stone Goodyear e na Goodrich. 1937 é o ano de 4.740 greves, o ano mais alto da generalização da luta do operário de massas. Em fevereiro a GM é derrotada; em março, a US Steel reconhece o Comitê de Organização dos Metalúrgicos e aceita as suas exigências básicas: 10% de aumento salarial para uma semana de 40h.

 

17.

 

O aspecto crucial das lutas ao longo do New Deal é o ascensão geral dos salários (salários, tempo de trabalho, sindicalização), a parcela dos operários do valor produzido e mutuamente reconhecido tanto por capitalistas quanto por operários como o campo de batalha do novo estágio da luta de classes. Para o capital, os salários são um meio de sustentar o desenvolvimento, enquanto para os operários eles representam a arma que lança novamente a ofensiva de classe. É precisamente essa natureza política contraditória dos salários (os meios da “integração” dos operários, por um lado, e a base para a recomposição política da classe e um ataque aos lucros, de outro) que causa o fracasso de Roosevelt em garantir o crescimento estável ao mesmo tempo em que mantém o controle da classe operária. Contra a ameaçadora massificação das lutas, os grandes negócios respondem com uma recessão econômica, uma recusa de investir, uma “greve política do capital” (B. Rauch, The History of the New Deal)

 

18.

 

A recessão econômica de 1937-38 é o primeiro exemplo do uso capitalista da crise como um meio para retomar a iniciativa na luta de classes. Inflação, desemprego e cortes salariais são armas que rompem a ofensiva operária e são meios para uma nova decomposição política da classe operária. A necessidade política da crise econômica mostra dramaticamente que o modelo keynesiano não é o suficiente para garantir a estabilidade; apenas através de um ato de violência aberta o capital pode reestabelecer a sua dominação sobre os operários. Ainda assim, é apenas com a introdução das crises como um meio de controle da classe que o modelo keynesiano mostra o seu valor real. Enquanto em 1933 o uso da luta de classes como o motor do desenvolvimento capitalista foi a única alternativa à recessão econômica, cinco anos depois, com a “recessão Roosevelt”, a “crise” se apresenta como a face alternativa do “desenvolvimento”. Desenvolvimento e crise se tornaram dois polos de um ciclo. O “Estado-como-crise” é, assim, simplesmente um momento do “Estado-como-planejador” – planejador da crise como pré-condição de um novo desenvolvimento. De agora em diante, as crises do capital não serão mais acontecimentos “naturais” e incontroláveis, mas o resultado de uma decisão política, momentos essenciais dos “ciclos de negócios políticos” atuais (Kalecki).

 

19.

 

A figura política que domina a luta de classes dos anos 1930 é o operário de massas. O salto tecnológico nos anos vinte produziu tanto a recessão econômica de 1929 quanto o sujeito político da lura de classes nos anos trinta (Tese 8). A “organização científica” da produção de massas exige uma força de trabalho altamente substituível e maleável, facilmente deslocável de um setor produtivo a outro e facilmente ajustável ao cada novo nível da composição orgânica do capital. Em 1926, 43% dos operários na Ford precisam de apenas um dia para o seu treinamento, enquanto 36% precisam de menos de uma semana. A fragmentação e a simplificação do processo de trabalho minam a relação estática entre o operário e o emprego, desconectando inteiramente o trabalho assalariado do “trabalho útil”. Com o operário de massas, o “trabalho abstrato” atinge seu desenvolvimento histórico mais completo. A abstração intelectual do capital é revelada como a atividade sensível do operário.

 

20.

 

Da fábrica à universidade, a sociedade se torna uma imensa linha de montagem, em que a aparente variedade dos trabalhos esconde a generalização real do mesmo trabalho abstrato. Isso não é nem o surgimento de uma “nova classe operária”, nem a massificação de uma “classe média” sem classe, mas uma nova ampliação da articulação da própria classe operária (nesse processo, no entanto, estão os fundamentos de uma grande dose de ideologia. Uma vez que todas as formas de trabalho são subsumidas à produção do capital, a produção industrial parece ter cada vez menos um papel e a fábrica parece desaparecer. Assim, o que era, na verdade, um processo crescente de proletarização – a principal acumulação do capital sendo a acumulação da própria força de trabalho – é deformado como um processo de terciarização, em que a classe se dissolve em um “povo” abstrato. Por isso a inversão típica pela qual noções como “classe” e “proletariado” aparecem como “abstrações”, enquanto o “povo” se torna concreto).

 

21.

Do ponto de vista operário, a flexibilidade, a mobilidade e a massificação se transformam em pontos positivos. Eles minam as divisões por função e setor produtivos. Eles oferecem as bases materiais para a recomposição política de toda a classe operária. Destruindo o orgulho do operário individual por sua ou suas habilidades, eles liberam os operários como classe de uma identificação com seu papel como produtores. Com a exigência política de “mais dinheiro, menos trabalho”, a alienação crescente do trabalho se torna um desligamento progressivo das lutas políticas da classe operária em relação a sua existência econômica como mera força de trabalho. Do ponto de vista operário, os salários não podem ser uma recompensa pela produtividade e pelo trabalho, mas, pelo contrário, são os frutos de suas lutas. Eles não podem ser uma função da necessidade de desenvolvimento do capital, eles devem ser uma expressão das necessidades autônomas da classe. No coração da luta, a verdadeira separação entre a força de trabalho e a classe operária atinge o seu pico revolucionário mais ameaçador. “Se trata exatamente da separação da classe operária de si mesma, de si mesma como trabalho assalariado, e portanto sua separação do capital. É a separação de sua força política e de sua existência como uma categoria econômica”. (Tronti)»

 

 

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de Radical America, Vol. 6, No. 3, maio/junho de 1972
Você pode contribuir enviando e-mails indicando erros de tradução ou sugestões de melhoria para autonomistablog@gmail.com
Este e outros textos de tradução do Coletivo Autonomista! estão disponíveis em: https://autonomistablog.wordpress.com/

Todo conhecimento deve ser livre. Por isso, não há restrições à cópia e distribuição desse material. Compartilhe!

 

Sergio Bologna – A tribo das toupeiras

[Nota de Sergio Bologna sobre a terminologia: as categorias da análise de classe usadas pela sociologia do movimento tradicional da classe operária e pela sociologia burguesa (pequena burguesia, classe média, lumpen ou subproletariado, lumpen-burguesia, etc.) são usadas aqui apenas em seu uso histórico convencional. Consideramos o valor científico dessas classificações – nas atuais condições e dadas as suposições implícitas nelas – duvidoso, para dizer o mínimo. Elas tem apenas um valor convencional, na medida em que os conceitos de capital e de composição de classe são muito mais funcionais para definir a dinâmica das relações de classe hoje como relações de poder… Essas contradições de linguagem são a expressão de uma crise contemporânea do aparato conceitual do marxismo tradicional. Elas enfatizam a necessidade de uma reavaliação política e criativa das categorias analíticas, uma “redescoberta” do marxismo à luz da luta de classes contemporânea.]

Esse artigo é uma tentativa provisória de traças o desenvolvimento interno do movimento de classe autônomo na Itália, que levou à confrontação explosiva em torno das ocupações de universidades da primavera de 1977. Uma análise desse tipo só faz sentido se nos permite revelar a nova composição de classe implicada nessas lutas, e indicar os primeiros elementos de um programa para fazer avançar e generalizar o movimento.

Aqui, analisamos o movimento primeiramente em sua relação com o sistema político italiano e as mudanças pelas quais ele passou no período de crise desde 1968. Com a estratégia de compromisso histórico do Partido Comunista Italiano (PCI), desde 1974, a forma do Estado deu um novo salto adiante – na direção da organização de um “sistema partidário” que não tenta mais mediar ou representar os conflitos da sociedade civil, mas é cada vez mais compacto e oposto aos movimentos da sociedade civil e contrário ao programa político da nova composição de classe.

A resistência antifascista na Itália durante o período da guerra estabeleceu as bases para uma forma de Estado baseado no “sistema partidário”. O novo regime herdou do fascismo instrumentos bastante poderosos para uma “interferência” política independente no processo de reprodução das classes (normalmente deixado ao desenvolvimento das relações de produção e a subsunção real do trabalho ao capital). Esses instrumentos eram: o crédito; indústrias controladas pelo Estado; o gasto público.

O sistema partidário, assim, chegou a controlar os setores básicos da economia e importante setores de serviços. Através desse controle, e no interior dele o dos democratas cristãos (o partido hegemônico desde a crise do governo Parri, em novembro de 1945, às coalizões de centro-esquerda dos anos sessenta), ele conseguiu negociar com o imperialismo dos EUA e as multinacionais, tanto domésticas quanto estrangeiras, a respeito da divisão internacional do trabalho, o ritmo de crescimento da classe operária, o tipo de classe operária a ser construído – em outras palavras, conseguiu organizar a dinâmica das relações de classe de uma nova maneira que correspondia aos planos para a estabilidade política. Em algumas regiões do “triângulo industrial” do norte, a reprodução das classes sociais foi deixada aos mecanismo clássicos de concentração/massificação da força de trabalho na indústria de grande escala. Esse setor foi deixado ao capital produtivo – privado e público – para formar aquela “composição demográfica racional”, cuja falta (para a Itália, em contraste com os EUA) Gramsci tanto lamentava em seus Cadernos do Cárcere (ver o artigo sobre Americanismo e fordismo). Aqui, em outras palavras, a sociedade deveria se desenvolver composta inteiramente de produtores, consistindo apenas em trabalho assalariado e capital.

Devemos acrescentar que esse mecanismo do desenvolvimento capitalista avançado não produziu apenas operários fabris, mas também uma grande proporção de operários do setor terciário, de modo que regiões como a Ligúria, a Lombardia ou Veneto tem um porcentual maior de empregados trabalhando em atividades terciárias do que algumas regiões no sul. Nessas últimas regiões, no entanto, a intervenção do “sistema partidário” no mecanismo de reformulação e reprodução das classes parece acontecer com uma autonomia maior em relação aos movimentos do capital.

 

A forma do Estado – aberta ou latente

Os acordos políticos estabelecidos enquanto isso com a indústria de grande escala europeia permitiram que um grande número de proletários agrários fossem transferidos para outros lugares; a produção de uma classe operária fabril foi conduzida com muito cuidado, de acordo com o princípio de que o domínio do capital fixo deveria ser sempre muito mais poderoso. Ao mesmo tempo, foi dado apoio a todas as formas de produção agrícola que mantivessem relações demográficas irracionais; houve um fluxo de subsídio financeiro com o objetivo de “congelar” relações e camadas sociais não-produtivas, e um fluxo de renda – “dinheiro enquanto dinheiro” – adquirido através do emprego na administração pública. Tudo isso teve o efeito de reproduzir de maneira desproporcionalmente grande a pequena e média burguesia, baseada no ganho como renda, que representou a base social necessária para a estabilidade do regime democrata cristão.

No longo prazo, os efeitos dessa política de reprodução de classes mitigou os efeitos revolucionários da sujeição do trabalho ao capital, compensando o crescimento da classe operária com um crescimento desproporcional da pequena e média burguesia, baseada nos ganhos como renda, não hostil à classe operária, mas passiva, não anti-sindical, mas “autônoma”, não produtiva, mas poupadora, e portanto permitindo uma reciclagem social dos rendimentos que recebia. Mas essa primeira dinâmica de classe foi fragmentada e desviada, em primeiro lugar, pela ofensiva da classe operária no fim dos anos 60, e então, alguns anos mais tarde, pelo efeitos violentos da crise – que devemos examinar adiante.

A forma do Estado no “sistema partidário” do pós-guerra é uma forma latente: o que normalmente aparece na superfície é um método de mediação e representação de conflitos. Em um lado estão os partidos governantes que dominam o aparelho burocrático-repressivo do Estado, e do outro os partidos de oposição, que são os recipientes para mediar os impulsos e contradições da sociedade civil. A forma do Estado se revela em certos momentos históricos, quando a crise do regime precedente e o desenvolvimento de uma nova composição de classe arriscam fugir ao controle da dialética entre governo e oposição. Isso aconteceu em 1945-46, depois da luta armada contra o fascismo. Os partidos escolheram substituir suas relações com as classes, com as massas, por relações mútuas entre eles; o Partido Comunista escolheu priorizar as relações com outros partidos que apoiavam a constituição da República e não suas relações com a classe e o movimento armado. De maneira semelhante, em seu período mais recente e jogando com um “estado de emergência” parecido para superar a crise atual (assim como na “reconstrução” pós-guerra) desde que escolheu o caminho do compromisso histórico (e mais fortemente desde as eleições de junho de 1976), o Partido Comunista privilegiou o reforço de suas relações com outros partidos – e em particular com os democratas cristãos. Isso foi feito para “resolver a crise do Estado”, para redefinir o “sistema partidário” em termo de acordo mais do que de conflito. Agora, a unidade dos partidos em um nível político e programático está sendo concluída como uma estrutura de aço construída sobre as necessidades da classe operária. O “sistema partidário” não pretende mais representar conflitos, nem mediá-los ou organizá-los: ele os delega a “interesses econômicos” e se coloca como uma forma específica de Estado, separada dos e hostil aos movimentos da sociedade civil. O sistema político se torna mais rígido, mais francamente oposto à sociedade civil. O sistema partidário não “recebe” mais os impulsos da base; ele os controla e reprime.

 

A concretização da nova forma do Estado

Essa corrida entre os partidos (e acima de todos, o PCI) para alcançar vínculos cada vez mais estreitos, essa nova edição do pacto constitucional assinado durante a resistência e depois violado pelos democratas cristãos, está acontecendo hoje sob a bandeira da ideologia da crise e a imposição da austeridade. A cadeia de conexões que liga simultaneamente os partidos no novo pacto constitucional – e os contrapõe a todos como uma máquina hostil à sociedade civil, a uma sociedade que exprime novas necessidades, à composição de classe – é representada pela ideologia da crise. A forma do Estado está agora se tornando aberta e explícita através da consolidação do pacto no “sistema partidário”. Em outras palavras, ele não depende de um fortalecimento do aparelho repressivo/militar, já que este último está subordinado ao nível de homogeneidade do “sistema partidário”.

Esse processo é um processo complexo, e se deparou com mil e um obstáculos, mas no momento ele é claramente a única saída se o atual equilíbrio de poder tem que ser mantido. Desde as insurreições estudantis em 1977, o movimento no sentido de a uma coalização de todos os partidos para confrontar a crise se acelerou

Mas se a forma do Estado, que está se tornando explícita, não pode ser reduzida simplesmente ao fortalecimento do seu aparelho repressivo, então como ela é concretizada? Até aqui, pelo menos, ela foi concretizada por um sistema de valores, de normas políticas, regras não escritas governando todos os partidos na arena democrática, que decide de fato o que é legítimo, o que é legal ou ilegal, o que é produtivo ou improdutivo, etc. Uma vez que a sustentação para esse consenso é fornecida por uma ideologia da crise determinada, um certo tipo de intelectual assumiu uma grande importância como propagador ou expoente da “consciência coletiva” nesse período.

 

Traição dos intelectuais, liberalização do acesso à educação e o mundo da renda

A responsabilidade fundamental de oferecer os argumentos básicos por trás da ideologia da crise cabe à profissão dos economistas. Isso se aplica não apenas aos altos sacerdotes do regime. Estão incluídos os jovens economistas que assumiram cargos em universidades, apoiados por iniciativas de Cambridge ou de Harvard, e muito frequentemente se abrem para relações com sindicatos. Diante da alternativa entre um comprometimento com a classe operária ou uma ciência acadêmico-burguesa, eles invariavelmente escolheram, de maneira mais ou menos explícita, o segundo. Em certos casos, precisamente através de uma interpretação diferente da ideologia dominante da crise, eles contribuíram com ela, e ajudaram a “fechar o círculo”. Isso pode ser afirmado, para dar um exemplo, dos economistas da “nova esquerda” da faculdade de Modena: ele poderia ter se tornado um centro de contrainformação rigorosa e documentada para desmantelar os falsos argumentos por trás da ideologia da crise. Mas ao invés disso, eles preferiram se manter em silêncio, ou deram mais lições à classe operária sobre ter prudência, ser razoável ou como se render. Esse é apenas um exemplo da “traição dos intelectuais” mais gerais da geração de 1968, que foi vista como um dos principais fatores que deixou que a “restauração” dos últimos anos nas universidades acontecesse, e contribuiu para criar o radical abismo cultural entre o movimento de ’68 e o de ’77.

O sistema político italiano foi capaz de interferir de maneira autônoma no processo de reprodução de classes através de vários tipos de incentivos estatais, e um dos mais importantes desses foi claramente a liberação do acesso às universidades desde 1969. Alguns interpretam esse movimento como uma maneira de minar a hegemonia da classe operária que amadureceu na onda de lutas do fim dos anos sessenta, isolando a classe ao promover uma mobilidade de ascensão social. Se um projeto desse tipo chegou a ser formulado de maneira explícita em algum momento, não sabemos disso. Examinemos o mecanismo da coisa. A liberação do acesso às universidades, pelo menos no papel, favorece a ascensão social. Um jovem da classe operária pode escapar ao caminho da geração anterior, pode evitar a necessidade de trabalho fabril ou manual. Essa operação é financiada pela distribuição na forma de presalari (subvenções) – só a Universidade de Pádua contabiliza mais de $2.000.000 em um ano – e por um aumento do quadro de professores e funcionários suplementares em meia-jornada.

Nesse ponto, os altos sacerdotes da nossa economia começam a reclamar de que os critérios para o financiamento dessa mobilidade social determinam de antemão a classe que irá surgir do sistema universitário liberado: uma pequena-burguesia que é subsidiada e “vive o bem estar”, e não é produtiva nem disposta a trabalhar. Eles reclamam, em outras palavras, do fato de que a perspectiva de trabalhos que diferem do trabalho fabril não é um incentivo suficiente para o trabalho produtivo, mas, ao contrário, age como um sinal para o recebimento de renda na esfera da circulação, para o mundo da renda (dinheiro enquanto dinheiro, removido do circuito do capital produtivo). Nesse momento, todo o “sistema partidário” se une no grande debate da reprodução das classes na Itália, suas distorções, desequilíbrios, etc., e a conclusão geral é a de que não é suficiente reproduzir uma pequena-burguesia em um papel antioperário se ela, então, se torna uma classe improdutiva que recebe renda.

Então, a mitologia bode expiatório de “caçar os parasitas” – a palavra de ordem da ideologia da crise – assume a dianteira. Sustentada pelas revelações “científicas” de Sylos Babini, Gorreri, etc., esse novo jogo começa bastante sério. Um ripo de igualitarismo vago surge para esquadrinhar a renda do trabalhador administrativo, do estudante e do operário do setor terciário, e não fala nada, por exemplo, sobre a transformação do capital-que-é-produtivo no capital-que-é-produtivo-de-juros; em sua forma mais vergonhosa, esse igualitarismo assume tons de chauvinismo operário. Parece que não é mais o capital que explora o trabalhador, mas o carteiro, o leiteiro e o estudante. Essas são apenas as primeiras investidas dessa “análise de classes” que mais tarde vai se tornar a ideologia oficial e argumento preferido dos escritores extremamente bem pagos dos editoriais de imprensa do regime. É uma ideologia bruta, mas efetiva. Se faz com que a liberação do acesso à universidade coincida com a crise, com o desemprego dos jovens, com a redução da base produtiva, com o aumento dos subsídios estatais. Mas, mais do que tudo, com ela se esboça uma fase radicalmente nova do comportamento político das massas. O círculo se fecha: o que era antes definido como “desespero da juventude”, como “marginalidade” – em outras palavras, como um efeito perverso, criado pela crise, de um mecanismo que foi criado e concebido como meio de estabilização de um sistema – passa a agir (ainda que isso seja silenciosamente esquecido) como uma função anti-operária!

 

Bloqueando a autonomia da classe operária e ocupando os espaços políticos

Não é fácil separar a massa de mentiras e meias-verdades que estão contidas nessa dinâmica distorcida da dinâmica de classe. A melhor resposta é retornar às raízes em que tudo começou – o ciclo de lutas de 1968-69. O problema para o “sistema partidário” naquele momento não era apenas bloquear e marginalizar uma hegemonia social da classe operária que havia se mostrado na Itália pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial. Era, antes, o problema de extirpar as formas políticas em que essa hegemonia havia se manifestado – a forma política da autonomia.

Uma resposta estava nos investimentos de tipo tecnológico que foram introduzido para romper o núcleo central da classe (a mudança na composição orgânica, etc.). Mas foi menos óbvio o processo pelo qual o “sistema partidário” começou a conquista do terreno da autonomia da classe operária, se apresentando pela primeira vez como uma forma explícita de poder de Estado.

Isso aconteceu na própria fábrica, com a remoção gradual do poder efetivo dos delegados (administradores industriais) nos conselhos de fábrica, e acima de tudo com a manipulação das assembleias operárias, a sua destruição gradual como órgãos independentes de iniciativa e escolha da classe operária. As fábricas, que tinham permanecido livres da política partidária tradicional por mais de uma década e nas quais a organização da autonomia em relação à “política” no sentido tradicional foi conquistada no ciclo de lutas de massas do final dos anos sessenta em diante, agora se tornavam novamente um terreno político de manipulação para o “sistema partidário”. Todas as formas e instâncias da autonomia de classe, através da qual um espaço real para uma política classista independente foi conquistada (mesmo aquelas relacionadas à mediação sindical, como a organização pelos administradores industriais), foram confiscadas e deixadas para atrofiar – e enquanto isso a reestruturação expulsava e fragmentava os grupos mais militantes e homogêneos nas usinas. O “sistema partidário” assumiu o controle das formas organizativas que restaram, como os conselhos operários, os transformando em clubes parlamentares.

Ao mesmo tempo, os grupos extraparlamentares começaram sua retirada suicida das fábricas, e em geral deixaram de prestar muita atenção aos problemas da composição de classe. Isso levou a uma situação em que, hoje, a fábrica e a classe operária se tornaram entidades praticamente desconhecidas

Quanto maior o espaço político conquistado pelos movimentos extra-institucionais, o terreno cultural e os sistemas de valor e comportamento que levam a setores decisivos da classe, mais a forma do Estado como “sistema partidário” se torna aberta e agressiva.

Mas a forma do Estado não pode viver apenas como um poder que é hostil aos movimentos extra-institucionais: ela precisa de uma legitimação básica – a saber, a legitimação da sua coincidência com as leis de acumulação capitalista.  Se tornando a intérprete da ideologia da crise, organizando uma nova política de coerção para o trabalho e uma política de austeridade e sacrifício, a forma-Estado do “sistema partidário” chega ao ponto mais alto de integração no interior do sistema do capital pelo abandono gradual de sua autonomia. Mas então o que devemos pensar da afirmação feita por certos herdeiros de Togliatti de que existe uma “autonomia do político”? Onde está essa autonomia? Mesmo onde essa autonomia teve a maior substância – no processo de reprodução de classes – a violência da crise levou todas as coisas para baixo das leis de ferro do capital.

 

Níveis e distribuição de renda e composição de classe

Apesar de tudo o que se fala sobre os efeitos da intervenção pública pelo aumento do gasto público, todas as pesquisas mais recentes (por exemplo, a do Boletim do Banco da Itália, de out-dez de 1976) mostra que na Itália não houve mudança na distribuição de renda, nem nenhuma alteração substancial na sua composição.

Os níveis de renda não diminuíram, apesar da crise. Mesmo o nível de consumo dos bens de consumo duráveis não caiu (na verdade, as formas de pagamento a crédito caíram). Descobrir como o proletariado, e em particular a classe operária, não se permitiu ser pressionado ao limite da pobreza pela crise, mas conseguiu aumentar suas necessidades e seus meios de satisfazê-las, já nos diria muito sobre a nova composição de classe.

Se o consumo não caiu, o nível das popanças também não, e esse ponto é significativo para a análise da “pequena burguesia” e (como somos levados a pensar) o crescimento vegetativo do “setor terciário”. As famílias italianas têm um dos maiores níveis de poupança do mundo; isso pareceria confirmar a hipótese de que a predisposição a poupar na forma de liquidez bancária é um sintoma da desproporção “terciária” da sociedade italiana e da sua base produtiva insuficiente.

E ainda assim, não apenas o Boletim mostra que as popanças dos grupos de renda mais baixos e medianos aumento (1973-76, i.e. em um período de inflação selvagem e de desvalorização da lira) na forma de depósitos bancários, contas correntes e poupanças postais, mas também mostra que isso é um fator de equilíbrio, reciclando a renda através das instituições de crédito, investido na forma de capital financeiro em empresas públicas e privadas, em Títulos do Tesouro, no financiamento de gastos públicos, serviços, etc. O mito da hipertrofia do setor terciário – o tema comum da ideologia da crise, da direita até a “nova” esquerda – não tem fundamento. Os dados da OECD mostram que o emprego no setor terciário na Itália está entre os menores nos países avançados: Itália 45%, EUA 64%, Canadá 62%, Reino Unido 54% – apenas a Alemanha ocidental tem uma porcentagem menor. Além disso, as estatísticas do ISTAT mostram que o emprego terciário está concentrado principalmente no norte industrializado.

De acordo com o esquema apresentando pela propaganda dominante sobre a crise, deveríamos esperar um fluxo de crédito para promover uma camada da sociedade improdutiva baseada na renda – a pequena e média burguesia, como um apoio para a estabilidade política – e um fluxo desproporcional de recursos para o setor terciário. Mas não é assim! As instituições de crédito especial (impulsionadas pelo Estado), de acordo com o Boletim, mandam mais financiamento para a indústria (em uma proporção três vezes maior) ou para o transporte e as comunicações (uma vez e meia maiores) do que para o comércio, os serviços e a administração públicas. Só a habitação – um fato notável – tem o dobro dos investimentos de todo o setor terciário em conjunto!

A crise monetária, o mercado imobiliário e o seu efeito na estratificação de classe

 

Há uma relação específica entre o mercado imobiliário e a crise monetária. O imóvel é o primeiro refúgio para assegurar os ganhos da “pequena-burguesia” – mas também para o investimento de dólares do petróleo, a base do império dos trusts de investimento em imóveis, companhias de seguro, fundos de pensão, etc., incluindo os tipos mais aventureiros de atividade especulativa. De acordo com a Reserva Federal dos EUA, no fim de 1975, mais ou menos um quarto dos créditos dos bancos dos EUA estavam no mercado imobiliário. Enquanto entre 1971-74, “empréstimos para a terra e o desenvolvimento da terra” (acima de tudo para o desenvolvimento de subúrbios) triplicou, os créditos bancários de comércio para trusts imobiliários e companhias de hipoteca mais do que duplicaram[1].

Dessa maneira, os preços de áreas suburbanas aumentaram, tornando mais produtivo para o capital desenvolver a moradia nos subúrbios e distanciando as camadas sociais com maiores salários dos centros urbanos, enquanto ao mesmo tempo retirava desses centros taxas, impostos, etc., e colocando em movimento o mecanismo da “crise fiscal” do gasto público, que agora é um fato bastante conhecido. No entanto, estamos apenas no início desse processo, porque a aquisição de áreas suburbanas não foi seguida por um movimento igualmente amplo de construção, enquanto a corrida foi para capturar terras, a construção de habitações de fato teve uma queda dramática. Se somamos as habitações de uma só família e de mais de uma família, vemos um grande aumento no período de 1971-72 e então uma queda súbita em janeiro de 1973 até dezembro de 1974. Quando a construção continuou a se levantar, foi no setor de apenas uma família e foi bastante fraco no setor de mais de uma família[2]

Consequentemente, grandes porções de terreno suburbano estão a espera de construções, para tornar produtivo o capital que foi “fixado” ali. Nos centros metropolitanos, que se tornaram zonas privilegiadas para a petrificação do capital, o mecanismo é diferente: para conseguir que esse capital se mobilize, para dar a ele mais uma vez a forma de uma mercadoria e valor de troca, uma estrutura específica foi criada – uma série de instituições especulativas especiais, inventadas ao longo da crise, que aumentaram o ritmo de transferência de títulos de propriedade e deram um impulso considerável à velocidade de criação do dinheiro sem que ele passe pelo processo de produção. Também nos Estados Unidos – e provavelmente mais ainda do que na Itália – o “lucro empreiteiro” usou a crise para subtrair recursos do capital produtivo. Assim, não houve uma “escassez de capital”, como algumas pessoas sustentaram: o capital de risco das empresas foi fornecido em grande parte por fundos de pensão privados, que, de acordo com Peter Drucker, hoje controlam um terço de todo o capital nos EUA[3]. Assim, parece que o capital produtivo foi financiado pelas contribuições dos operários, enquanto os investidores institucionais – especialmente os bancos que os controlam – preferiram entrar pelo caminho da especulação na propriedade e na troca de valores.

A imensa transferência de recursos financeiros da parte do capital do mercado imobiliário nos leva novamente à questão do “sistema partidário”. Os poderes conferidos às administrações locais são ainda incertos, mas não há dúvidas de que na Itália o “sistema partidário” representa o fator condicionante mais importante no mercado imobiliário. Grandes controladores de território (o DC e o PCI) podem, através dos controles de planejamento, forçar um processo de negociação ao “lucro empreiteiro”, podem força-lo a fazer concessões (que, no entanto, são insignificantes quando comparadas aos poderes que o “lucro empreiteiro” atribui ao “sistema partidário”, no que diz respeito à direção e ao controle das dinâmicas de classe). Como algumas análises mais inteligentes mostraram, o ciclo de construção na Itália funcionou como uma bomba de drenagem de renda dos trabalhadores para redistribuí-la para as classes médias por um lado e para o “lucro empreiteiro” por outro[4].

O ataque aos salários através do custo da habitação teve um efeito direto nas estratificações de classe, e é um violento fator de proletarização; a mudança forçada na direção de áreas urbanas periféricas com serviços ruins é poderoso fator de marginalização. As classes, reelaboradas nesse processo, assumem as típicas características mistas de um período de crise. O trabalhador assalariado que, com as garantias do sindicalismo, consegue manter seus níveis de renda, mas que, por razão dos problemas de habitação, vive em uma zona marginalizada, produz padrões de comportamento econômicos, sociais e políticos que estão a meio caminho entre a classe operária “garantida” e o subproletariado mesmo que o estado atual de seu emprego possa colocá-lo entre a pequena e média burguesia.

Uma parte considerável do comportamento político do jovem proletariado durante as lutas recentes deve ser compreendido a partir da cidade como um espaço de intervenção na dinâmica de classe. A mítica “reconquista dos centros urbanos” é uma reação à ameaça de marginalização que a aliança profana do “lobby empreiteiro” e do “sistema partidário” está apresentando. Nessa “reconquista dos centros urbanos” há um desejo de contar como um sujeito político, de romper com os equilíbrios institucionais, de interferir uma vez mais nas relações internas do “sistema partidário”, uma recusa a ser classificado como “zona de cultura”, e isso é tudo.

 

A total subordinação do sistema partidário à política da crise

Para concluir: inflação e mecanismos de crise diminuíram consideravelmente o poder do “sistema partidário” de intervir de maneira autônoma no processo de reprodução de classes na Itália. A autonomia relativa da distribuição política de renda foi imensamente estreitada. A possibilidade de criar diferenças de status através de diferenças de renda, distribuindo dinheiro através de transferências de renda, suplementando os salários nos serviços públicos, etc., foi diminuída. A questão da “composição demográfica racional” (à qual Gramsci se referia nos anos 1930) está se tornando em primeiro lugar dependente exclusivamente do desenvolvimento capitalista, da composição orgânica do capital agregado. Até o processo de crescimento terciário ou a criação de setores improdutivos agora depende mais do desenvolvimento do capital fixo do que de qualquer intervenção autônoma da parte das elites políticas.

Ninguém poderia negar que o “sistema partidário” teve, nos últimos anos, o poder interferir com alguma independência nesse processo – através dos controles econômicos sobre o crédito e a distribuição de dinheiro como renda, ou através da exportação do proletariado. Mas ao mesmo tempo, o “efeito de distorção” dessas escolhas é deliberadamente exagerado pelo PCI e o movimento operário tradicional. O seu resultado global não parece especialmente diferente (por exemplo, no caso do crescimento da atividade terciária) do desenvolvimento de outros países industriais. Nem resultou, pelo menos até recentemente, em nenhuma mudança significativa na distribuição de renda.

Se ele fez alguma coisa, foi criar uma estrutura social e industrial altamente sensível ao problema das poupanças – permitindo a centralização de lucros improdutivos e a sua reciclagem na forma de capital financeiro e gasto público. Os poderes que o “sistema partidário” ainda parece ter, não mais sobre a reprodução das classes, mas sobre uma nova agregação de classe que foi formada pela crise, estão localizados em um nível diferente (i.e. em formas externas de controle no nível sócio-territorial, para desagregar e desintegrar a unidade da classe, e nas relações perversas com setores específicos do capital especulativo, tais como o mercado imobiliário).

É do interior desses limites estreitos que a nova forma do Estado sai. Isso não é visto como a fase de conclusão da supervalorizada “autonomia do político” diante do desenvolvimento “econômico”, mas, antes, como um processo totalmente contrário: o da subordinação total do “sistema partidário” à política da crise.

A reprodução de classes se tornou um problema de legitimação política mais do que de intervenção material: uma questão de identidade social e cultural, de aceitação ou recusa das normas de comportamento social exigidas e estabelecidas pela forma do Estado. As classes tenderam a perder as suas características “objetivas” e se tornaram definidas em termos de subjetividade política. Mas nesse processo, a força maior de redefinição veio de baixo: na reprodução e invenção contínuas de sistemas de contracultura e nas lutas na esfera da vida cotidiana, que se tornaram cada vez mais “ilegais”. A liberação dessa área de autonomia por fora e contra as instituições sociais oficiais é mais forte do que o sistema de valores que o “sistema partidário” busca impor.

É por isso que a nova forma do Estado, ou, antes, a sua revelação, já se encontra em uma condição criticamente fraca. A volta ao aparelho burocrático/repressivo, ao “poder de Estado” puro e simples, significaria o fim do “sistema partidário”, como estabelecido por mais de trinta anos.

O que testemunhamos nessa crise é a sujeição do sistema político pelo capital, a destruição de sua “autonomia”. Isso não pode ser compreendido de maneira apropriada a não ser que o vejamos em relação à centralização do domínio capitalista que define a política da crise para todos os partidos (i.e. a própria esfera da “política”). Essa centralização é formalmente representada em instituições monetárias, dos bancos centrais ao FMI.

Pelos últimos três anos, nós na Primo Maggio, estivemos apontando para um fato que agora é geralmente aceito: as escolhas de política econômica – e, com isso, também os critérios com os quais as relações de classe em Estados nacionais são condicionadas – não são mais resultado de uma negociação ou de uma barganha entre partidos, sindicatos e tudo mais (em outras palavras, mediadas por relações de forças entre classes e interesses), mas são impostas por necessidades econômicas determinadas (em última instância) pelo Fundo Monetário Internacional.

É essa nova realidade institucional do poder em escala internacional que estabelece os marcos básicos para a lógica da atual ideologia da crise e da escassez, e portanto também a propaganda para as medidas de austeridade. A administração Carter desenvolveu esse aspecto específico do dinheiro como domínio capitalista com base da política global dos EUA. O relançamento da hegemonia dos EUA depende especialmente dos resultados já conquistados, que permitem que os EUA controlem a escassez, principalmente nos setores chave de energia e alimentação, internacionalmente (“os EUA se colocam como a principal fonte global da estabilidade alimentar” – secretário Brzezinski, em Foreign Policy, nº 23). Cada escolha “nacional” na área de energia básica e alimentação deve se contrapor a uma divisão internacional do trabalho que os EUA pretendem que seja respeitada. A tecnologia de processamento alimentar será defendida de maneira tão intensa quanto o petróleo ou o urânio. Hoje, é esse domínio sobre as mercadorias básicas que regula as relações entre os EUA e o resto do mundo. Desde a vitória do PCI nas eleições de 1976 e a sua aceitação da Itália como membro da OTAN, seguida pela recente ressurreição eleitoral do DC, a administração Carter, ainda que de maneira cautelosa, assumiu inteiramente o reconhecimento realista de que a única solução para a administração da crise na Itália é o reforço do pacto que une o “sistema partidário” e um “governo de partidos majoritários”, incluindo o PCI, como a única condição, em outras palavras, para a implementação da “austeridade consentida”.

 

Recomposição da classe operária no período desde o fim dos anos 1960

Até aqui nos concentramos na recomposição do domínio capitalista na crise e no desenvolvimento da forma do Estado através do enrijecimento do “sistema partidário”. Devemos agora nos voltar para o outro lado – a recomposição da classe. Tomar a fábrica ou a universidade como ponto de partida não é um problema, já que ambos são núcleos de resistência e recuperação de uma política de classe alternativa – ambos os pontos de partida poderiam servir para nós.

Se tomamos o desenvolvimento subjetivo do movimento através do período desde o ciclo de ofensiva de classe no fim dos anos sessenta, podemos distinguir duas fases principais da luta. Na primeira, de 1969 até a crise do petróleo de 1973-74, o ataque ao núcleo central militante da classe operária através da reestruturação, reorganização da produção, etc., foi combinado com a “estratégia de tensão” (uso terrorista de serviços secretos, atividade proto-fascista clandestina apoiada pelo Estado, com uso notável de pessoal fascista). A geração mais recente de militantes formados em torno do movimento de 1968-69 foi consumida na resposta a esse ataque: logo depois dos “parênteses” da ofensiva operária, eles voltaram aos esquemas clássicos de forma-partido – a relação estreita entre programa e organização e uma perspectiva sobre a luta pelo poder articulada com a tática de um movimento antifascista militante, combinado com a conquista do nível formal, eleitoral, da política. Durante essa primeira fase, o “sistema partidário” ainda não havia “cristalizado” na forma do Estado: ele era dividido em uma oposição aguda entre um Executivo, que mobilizava os níveis clandestinos do Estado (dos serviços secretos à magistratura), e uma oposição que revivia os valores democráticos e as tradições da resistência antifascista. Essa era, em outras palavras, a fase de reabsorção parcial das formas precedentes de autonomia de classe pelo “sistema partidário”, uma recuperação das tradições ideológicas e organizativas do movimento operário oficial: uma certa “introjeção” do “sistema partidário” no próprio movimento revolucionário.

No que diz respeito à relação entre subjetividade e modelos de organização na esquerda revolucionária, esse primeiro período, da provocação do Estado-fascista com as bombas de Piazza Fontana (Milão, dezembro de 1969) à eventual derrota da “estratégia de tensão” (mesmo que suas ramificações tenham continuado até a eleição de junho de 1976), foi marcado por uma rejeição geral das hipóteses criativas do movimento de 1968-69. Isso era acompanhado pelo renascimento de modelos ultrabolcheviques de organização no movimento ou – no caso de grupos como o MLS (Movimento Socialista dos Trabalhadores, baseado no movimento estudantil de Milão), Manifesto, Avanguardia Operaia e PDUP – de modelos togliattianos, no máximo embelezados com maoísmo. Em outras palavras, havia um certo retorno da época histórica e organizativa do Partido Comunista Italiano e de seu movimento, de Gramsci até a resistência.

Esse retorno marginalizou drasticamente a área de autonomia clássica do “operaismo”, herdada do movimento de operários e estudantes de 1968-69, assim como dos anarquistas, situacionistas e grupos marxistas-leninistas mais intransigentes.

O núcleo central da tendência da “autonomia operária”, representado pelo Potere Operaio e pelo Collettivo Politico Metropolitano, tendo confrontado os limites políticos e institucionais de uma estratégia baseada nas lutas salarias nas fábricas e tendo feito uma escolha dramática em favor da luta pela militarização do movimento. De maneira semelhante, isso envolvia palavras de ordem como “superar a espontaneidade do movimento de massas autônomo” e “construir o partido armado”. Envolvia investir tudo nos níveis da militância organizada, quadros profissionais, etc. Essa estava destinada a ser uma batalha perdida. Mas o problema principal agora é compreender como e porque as margens do “movimento” foram tão drasticamente limitadas, privadas de espaço político, enquanto apenas hipóteses de organização partidária sobreviveram nesse período.

 

Os problemas políticos do movimento e as concepções “partidistas” em desenvolvimento

Em geral, podemos dizer que os modelos históricos foram tomados de maneira acrítica e assumidos como uma validade normativa e importância a priori. Depois da onda de novas hipóteses políticas que foi bastante além da tradição histórica comunista, em 1968-69, vimos então uma recuperação e retomada total dos modelos e perspectivas da Terceira Internacional. O problema central era o terrorismo de Estado; o problema do poder, visto como a destruição da maquinaria do Estado, acentuava mais ainda os traços leninistas clássicos da organização. Isso é especialmente verdade da luta para derrubar o governo de direita Andreotti-Malagodi até 1972, o que levou ao grau máximo de convergência entre a estratégia organizativa dos grupos de esquerda revolucionários e as forças institucionais antifascismo. Os grupos que estavam nesse processo foram absorvidos pelo “sistema partidário”, ao ponto de “cruzar o limite parlamentar/eleitoral”, levando à criação de organizações como a DP (Democrazia Proletaria), ou táticas de apoio eleitoral do PCI, como a do Lotta Continua. Mas isso já nos leva à segunda fase, pós-1973, que deveremos examinar adiante.

Uma espécie de sistema togliattiano imperfeito estava em operação nesse primeiro período: por um lado, uma forte presença nas ruas, antifascismo militante, campanhas e manifestações de massas promovidas pelas organizações; por outro lado, pressão parlamentar, mas acima de tudo através das instituições e da imprensa, pelo PCI e o PSI, para derrubar a chantagem terrorista do governo DC e seus aliados. Mesmo as iniciativas das Brigadas Vermelhas (BR) nesse período mantém uma ambivalência objetiva entre formas extremas de antifascismo militante (encarado com tolerância considerável por certos setores de ex-guerrilheiros, veteranos da resistência armada da resistência dos anos 1940) e a construção de um partido armado, surgido do interior das perspectivas “pós-operaista” e insurrecionalista da corrente da “autonomia operária” à qual já nos referimos.

Podemos, portanto, distinguir as características do tipo médio do militante formado nessa fase da luta: um quadro de partido, com habilidade organizativa considerável, ativismo e presença em todos os níveis necessários, que se desenvolveu certamente desde a sua situação de luta, mas que recebeu uma formação política geral da “escola do partido” e dos mitos da organização. Seria injusto dizer simplesmente que isso implica a formação de militantes alienados, expropriados de sua própria subjetividade. Os traços positivos desse período, o ritmo incessante de campanhas e mobilizações, às vezes cego, mas não menos efetivo a longo prazo, o novo e calculado uso da “ação direta” nas manifestações e confrontos de rua, a resposta imediata às provocações da direita – todas essas atividades estabeleceram e impuseram um terreno de prática política de massas, eu se tornou uma estrutura social, uma composição de classe, mesmo se os sinais da sua fragilidade se tornaram aparentes no segundo período.

A transição a esse segundo período da luta deve ser primeiro compreendida nos termos da relação transformada entre a esquerda revolucionária e a fábrica. Isso não se devia apenas ao aumento da ênfase no ativismo territorial e comunitário (basta ver “Tomar a cidade” e outras palavras de ordem e projetos dessa fase). Era, antes, o caso de que a restauração dos modelos da Terceira Internacional significava que os conceitos científicos marxistas da fábrica e da classe operária haviam sido abandonados. A relação entre a política revolucionária e a realidade da classe trabalhadora era mediada por um tema superado – o da reestruturação. Em outras palavras, um terreno defensivo, que não apenas aceitava como dada a fragmentação do “operário de massas” – a força motriz da classe na ofensiva operária anterior – mas tornava essa fragmentação o ponto de partida central da organização. Esse foi um período confuso. Os grupos de esquerda não tinham estratégia fabril, os seus militantes eram expulsos das usinas, ou demitidos (normalmente por recusar o trabalho), ou se demitindo por sua própria vontade, ou se abrigando nos sindicatos. Em algumas das grandes concentrações operárias do norte, apenas uma fração clandestina era deixada para manter uma frágil rede organizativa.

Não que o período de 1969-73 tenha sido um período de impasse no que diz respeito às demandas operárias – longe disso. Ele foi marcado por uma atividade intensa de barganhas coletivas – provavelmente a mais intensa desde a guerra. Poucos estavam atentos para a reconquista, da parte do “sistema partidário”, das fábricas, precisamente porque esse processo foi encoberto pela pressão das negociações sindicais. Em alguns setores, os custos de trabalho subiram em 25% anuais, para não falar da pressão sindical pelo inquadramento unico (unificação dos sistemas de graduação para operários e pessoal de colarinho branco) e sobre as condições e o ambiente de trabalho. Mas essa atividade de negociação contínua tendeu a ter um efeito de fragmentação politicamente: ele tendeu a dissolver a identidade política da classe, a reduzindo a seu menor denominador comum como simples força de trabalho. Seria bastante errado dizer que a presença dos problemas políticos operários “diminui” nesse período em todos os níveis. A realidade da situação era antes a de que as propriedades da classe que a unificam e definem como um sujeito político foram agora transferidas às organizações. A classe permanecia como um elemento subalterno, como “material” para o partido, em outras palavras como força de trabalho. O espectro da velha separação entre a luta “política” e a “econômica” retornou à cena. Isso significou um sério atraso para a autonomia da classe operária: uma derrota da ciência da classe operária, da teoria revolucionária.

 

Um novo ciclo político de lutas: a generalização do comportamento político do operário de massas

Mas a identidade do operário de massas como sujeito político já estava morta – vida longa ao operário de massas! Um ciclo político de lutas enraizado de maneira tão profunda e poderosa como aquele que levou da confrontação de massas na Piazza Statuto (Turim, 1961) à ofensiva generalizada do Outono Quente (1969) – através da qual o operário de massas da indústria de grande escala agiu como a força motriz central – dificilmente poderia se esperar que ele diminuísse sem nenhum vestígio! Ele estava destinado a colocar em movimento toda uma série de efeitos secundários e mecanismos irreversíveis, impondo a sua hegemonia específica à composição de toda a classe.

De fato, haviam muitos sinais disso. Além da rede de fábricas menores que começaram a estourar uma atrás da outra, o resto da força de trabalho em todos os níveis pegou a deixa e começou a organizar e lutar nas mesmas linhas que os operários nas grandes fábricas. A parte da afirmação de um modelo semelhantes de atividade política sindical, encontramos formas paralelas de comportamento e práticas de luta coletivas. A hegemonia dos operários em relação aos funcionários assalariados pode ser vista nos piquetes de massas dos funcionários de bancos, incluindo confrontações violentas com a polícia e seus restos (a polícia a essa altura já estava sendo usada regularmente contra os piquetes), ou nas “marchas internas” (forma de mobilização característica na FIAT) dos funcionários do governo nos ministérios. Para não falar de certos efeitos mais específicos, como o uso operário dos tribunais do trabalho. Isso começou a dar a alguns níveis da magistratura uma plataforma para romper o impasse de uma batalha de forma puramente jurídica a respeito das garantias e leis trabalhistas contra as práticas ilegais do judiciário – daí a emergência de uma nova prática operária na jurisprudência.

Além disso, a luta em torno da saúde e da segurança no trabalho forneceu uma plataforma para que os médicos rompessem com os interesses corporativistas da profissão médica: daí se deu o início de uma crítica de massas à profissão médica e ao bloco de poder médico-farmacêutico que foi uma das maiores conquistas da hegemonia da classe operária no nível institucional. A resistência de classe à reestruturação e à inovação tecnológica nas fábricas levou os engenheiros e os técnicos a também criticar a organização da maquinaria e das usinas de uma perspectiva operária. Finalmente, houve uma unificação do sistema de graduações para o pessoal e os operários, junto com a conquista das “150 horas” (licença de estudo paga para os operários) concedida no contrato dos operários de engenharia de 1972 e generalizado depois disso. Autônoma e distinta tanto dos esquemas profissionais de retreinamento para o trabalho e cursos de treinamento sindicais, essa vitória posterior impôs novamente uma presença operária nas escolas e universidades estatais.

A chegada dos operários de “150 horas” com licença estudantil nas fábricas significou uma mudança radical. Os efeitos do livre acesso às universidades se tornaram macroscópicos. Dois novos elementos colocaram as antigas formas elitistas e acadêmicas em crise: estudantes de origem proletária/estudantes que havia sido proletarizados e estudantes operários. Houve também um fator geracional – a juventude entrando nas universidades tinha atrás dela um movimento secundarista, ao mesmo tempo compacto e testado no ativismo de massas nas ruas. Aqueles que chegavam de escolas técnicas ou comerciais vinham de uma origem de lutas em torno da relação entre educação e emprego. As reuniões de massas (assembleias) permaneceram as bases da formação política, mas a estrutura política dos militantes veio do servizio d’ordine (a organização de camareiros, as “tropas de choque” nas manifestações) e das organizações políticas comunitárias.

 

O novo papel definido da universidade e a ascensão do movimento de mulheres

Essa nova geração de ingressantes na universidade não encontrou nada novo ou superior em termos de cultura ou meios de expressão política em relação ao que já havia sido conquistado no ensino secundário ou pela atividade de grupos políticos. Em comparação, a universidade se mostrava como uma estrutura esquálida, burocrática e sem vida que oferecia muito pouco. A velha elite acadêmica, apesar da revolta estudantil de 1968, havia tido sucesso em cooptar a nova geração de jovens professores oportunistas. A arrogância pitoresca dos acadêmicos mais velhos estava sendo substituída por uma nova geração de indivíduos vivos e gastos. Os intelectuais da “nova esquerda” da safra de 1968 e os formados nos assim chamados grupos de minorias dos anos sessenta, se não abertamente vendidos, estavam ou a serviço da esquerda sindicalista ou estavam exercendo um papel duplo de militância organizativa combinada com academicismo “científico”. Qualquer possibilidade de uma nova cultura, uma reavaliação ou o relançamento de uma teoria revolucionária e a criação de novas armas teóricas que a universidade poderia oferecer, eram abertamente desencorajadas tanto pelos grupos quanto pelo jornalismo e publicações de esquerda. Daí que a universidade tenha sido tomada como o que ela era: um filtro burocrático de mobilidade social e nada mais. Os conteúdos da cultura acadêmica não eram desafiados: ao invés disso, havia uma completa deserção das aulas e seminários. A luta contra a seleção de admissão, como foi em 1968, não fazia mais sentido, uma vez que o próprio Estado havia imposto uma massificação e o livre acesso. A seleção agora acontecia em outros níveis – no nível da renda e das necessidades, não mais pelo voto de funcionários acadêmicos, mas pela inadequação estrutural dos serviços. O impacto da crise e o aumento no custo de vida tiveram um papel decisivo aqui.

Essa história nos leva para o fim de 1973 e a crise do petróleo, que tomamos como a data convencional para a abertura da segunda fase. Mas antes que continuemos, devemos nos voltar para o acontecimento decisivo que começou a transformar as condições do movimento de 1970-71, ainda em uma fase anterior: o nascimento do movimento feminista. Isso colocava imediatamente uma questão de hegemonia por todo o tecido social que era análoga, em sua dimensão e suas exigências, à hegemonia do operário de massas. Os interesses específicos e autônomos das mulheres, organizados por mulheres, não apenas desafiavam diretamente as relações familiares de produção. Elas, ao assumir uma forma política autônoma como um movimento feminista independente, também envolviam uma separação radical das mediações do “sistema partidário”, da representação sindical, mas também, acima de tudo, dos próprios grupos revolucionários de esquerda. Com a autodescoberta das mulheres e suas exigências para controlar seus corpos, suas próprias necessidades e desejos, a sua subjetividade, vemos o início de uma nova crítica da militância alienada – um dos temas centrais do movimento em sua segunda fase – mas também, e mais fundamentalmente, o ponto de partida de uma temática geral das necessidades no interior do movimento.

Tudo isso permaneceu uma tendência latente, no entanto, até o início da fase aguda da crise em 1974-75. No nível institucional, isso coincidiu com a derrota de uma “estratégia de tensão”. Exatamente no ponto em que a violência da crise contra a composição de classe atingia seu auge, a esquerda italiana – incluindo uma grande parte dos grupos extraparlamentares – estava celebrando essa vitória no nível institucional, considerando a sua missão praticamente realizada!

 

O erro de confundir a aparência e a substância do poder de Estado

Daí em diante vemos na forma das greves a precipitação de todas as contradições, acima de todas a distância entre a “política” e a realidade de classe, que marcava a situação “togliattiana imperfeita” descrita acima. A atenção da esquerda estava focada na forma do Estado, mas não na forma do Estado como medida e nivelada contra a autonomia da classe operária. Pelo contrário, a forma do Estado era vista em si mesma, em sua própria autonomia, exclusivamente no nível formal-político. A crise da estratégia direitista de tensão foi vista pela esquerda, de maneira equivocada, como a crise da forma do Estado. O abandono forçado do governo DC e seu uso velado de agentes e provocações fascistas foi confundido com a crise do regime. A virulência temporária das batalhas internas entre os DC e os “corpos destacados” do Estado (serviços secretos, segurança, etc.) foi confundida com uma crise do comando do Estado. Isso era confundir a aparência e a substância do poder de Estado. Enquanto isso, a verdadeira reconstrução do “sistema partidário” acontecia desde baixo; a forma do Estado já havia penetrado o terreno da fábrica e, já nesse momento, precisava da ideologia da crise para se assumir abertamente, como uma máquina diretamente polarizada contra os interesses da classe operária.

Consequentemente, houve uma crise temporária no nível governamental, mas combinada com uma “estabilização” gradual nas fábricas. A aplicação de medidas duras em postos altos, revelação de escândalos, intimidação em estilo máfia nos altos níveis exibida em público, corrupção da elite e da burocracia cruelmente exposta pela primeira vez – mas tudo de tal modo que se pudesse demonstrar provocativamente o privilégio de impunidade do “sistema partidário”. Ministro, promotores gerais, banqueiros, chefes de polícia cujas práticas clandestinas e ilegais foram amplamente provadas e discutidas, nunca sofreram nenhuma penalidade em termos de perda de liberdade ou renda pessoal. Assim, os escândalos do regime apenas serviram de fato como um elemento de intimidação e, com isso, de reforço da forma do Estado baseada no sistema de partidos.

Enquanto isso, “medidas duras” estavam sendo adotadas na fábrica! De 1974 em diante, o andamento de fechamentos de fábrica, dispensas e demissões se acelerou, facilitado pelo recurso sistemático aos cassa integrazione (fundo estatal/empresarial para compensar por períodos de demissão em indústrias e setores atingidos pela crise). O sistema de garantias legais nos contratos de trabalho estabelecido graças à ofensiva dos trabalhadores de 1969 não foi destruído e permaneceu intacto. Em outras palavras, se permitiu que ele sobrevivesse como uma armação jurídico-contratual. Mas a realidade do “garantismo” – que não depende de estatutos escritos e contratos de trabalho, mas da homogeneidade e consistência da organização de classe e da rede política da autonomia de classe construída nas fábricas nos anos anteriores – isso sim foi atacada com todos os meios disponíveis.

No que diz respeito à subjetividade de classe, que é nosso foco principal nesse artigo, um período de silêncio se coloca agora (além da bem conhecida piora das condições de trabalho) – um silêncio em que ainda nos encontramos hoje. Isso aconteceu, na ausência de estruturas políticas alternativas, com o declínio de instituições sindicais democráticas. Nas reuniões de massas nas fábricas, que se tornaram cada vez mais incomuns, os trabalhadores não falavam mais. Eles sofrem em silêncio o martelar contínuo da linha sindical oficial (“as coisas podem piorar”, “temos que aceitar a realidade da situação, “devemos apertar nossos cintos, aceitar alguns sacrifícios”, etc.). Eles se fecham em uma atitude de não-expressão das suas próprias necessidades e ficam olhando enquanto militantes de vanguarda são intimidados, removidos ou expulsos da fábrica com a cumplicidade aberta – de fato, com uma conivência ativa – de quadros sindicais e partidários. Enquanto o purgo dos militantes havia anteriormente sido um processo silencioso e rasteiro, com a transição para a segunda fase ele se torna aberto e demonstrativo: a confrontação política com os operários se torna um ataque frontal, determinado pelo esforço do “sistema partidário” de normalizar o comportamento dos operários e suas formas de luta. Visto nesse contexto, os avanços feitos na esfera dos “direitos civis” nessa nova fase devem ser vistos como uma isca – ainda que não devamos subestimar os seus efeitos na legitimação do movimento das mulheres (e, assim, permitindo que ele avançasse em uma frente política mais amplas) e na precipitação da crise das instituições militares. Apesar desses aspectos positivos, no entanto, não há dúvida de que o elemento macroscópico do período de 1974-76 permanece a incapacidade das lutas operárias em romper o equilíbrio do “sistema partidário” e desestabilizar suas relações internas.

Nesse embotamento temporário do impacto político da luta da classe operária, um papel considerável foi assumido pela estrutura político-administrativa descentralizada dos governos regionais e das autoridades locais. Eles interviram de maneira crescente como mediadores e árbitros das confrontações de fábrica.

 

Uma composição de classe em desenvolvimento: o papel da pequena fábrica e do operário disseminado

As firmas e fábricas menores em uma importância especial, pela a subjetividade de classe e o tipo de luta que geram. Nesse nível de golpes e contragolpes fragmentados, fechamentos e ocupações, é precisamente essa guerra de posição que faz surgir os processos de recomposição da classe operária. Ele ainda é difícil de delimitar, mas provavelmente a pequena fábrica forneceu o melhor terreno, o “buraco de entrada” pelo qual a toupeira começou a cavar mais uma vez. Obviamente, as pequenas fábricas não são homogêneas entre si, e realmente exibem grandes diferenças e contrastes. Por exemplo: diferenças entre baixos níveis tecnológicos, níveis antiquados de organização e grandes tendências inovadoras; entre situações de total paralisia do mercado e situações que ofereciam possibilidade de um novo mercado; firmas que são totalmente dependentes do estrangulamento do crédito e firmas como as cooperativas que estão livres da usura dos banqueiros; de firmas sindicalizadas a outras (em número muito maior) com nenhuma organização sindical; de firmas com uma força de trabalho que é marginal e mal paga àquelas em que ela tem altos salários e é qualificada; e, finalmente, fábricas de tamanhos variados em que todos esses elementos são combinados debaixo de um mesmo teto. Precisamente, esse nível de heterogeneidade significa que o operário das pequenas e médias fábricas não expressa um ponto de referência majoritário para a classe, cujas demandas e formas de luta podem ser assumidas no nível geral dos objetivos políticos; além disso, não podemos esperar ver o tipo de relação (como nas fábricas de grande escala) das vanguardas de massas, capazes de trazer atrás delas a totalidade do movimento.

Em outras palavras, nesse caso há a ausência dos mecanismos políticos que marcaram o ciclo de lutas do operário de massas. Mas isso não quer dizer que um potencial político geral não exista: aqui encontramos, por outro lado, um conjunto de mecanismos de recomposição que começam, precisamente, na base da heterogeneidade.

Comecemos com a idade: exatamente porque as pequenas fábricas tendem a usar força de trabalho marginal, a presença de menores e pessoas muito jovens, se não típica, é no entanto muito frequente, e é da pequenas fábricas que talvez a ala mais sólida do movimento da juventude proletária tenha sido recrutada. Ao mesmo tempo, uma vez que as pequenas fábricas empregam um número considerável de operárias mulheres, elas também forneceram uma base de recrutamento para uma ala considerável do movimento de mulheres, com uma atenção particular ao problema das necessidades materiais. Além disso, há a questão da força de trabalho envolvida em trabalho precário (lavoro precário), trabalho doméstico, trabalho ilegal (lavoro nero), etc. A crise destruiu as partições que dividiam as várias “formações industriais” e criou o fenômeno do “operário disseminado” (operaio disseminato) (que também pode ser encontrar em outros momentos específicos da história do proletariado italiano). Em outras palavras, a dispersão consciente da força de trabalho em uma dimensão territorial, em uma condição intermediária entre a subsunção forma e real ao capital. Esse é um plano preciso, colocado em marcha contra a agregação política da classe. Mas, deixando de lado esses aspectos estruturais, as grandes mudanças ainda serão vistas na subjetividade dos operários nas pequenas fábricas, na medida em que é difícil para eles aplicar modelos e formas organizativos de luta que realmente se aplicam apenas à indústria de grande escala. Aqui, vemos a crise no estilo sindicalista de operar que caracterizou as lutas dos trabalhadores nas grandes fábricas. A transição em que a fora de trabalho se torna classe operária (um processo que é garantido nas grandes fábricas pelo próprio fato da massificação) é uma transição que o operários da pequena fábrica deve conquista através de processos políticos que não estão de modo algum “dados”. A prática da violência deve compensar a falta de números e o baixo nível de massificação. Se as raízes da ação direta dos grupos operários armados deve ser encontradas, historicamente, nas antigas “Stalingrados” da classe operária, em termos políticos elas são baseadas nos padrões da pequena fábrica.

Em suma: a pequena fábrica teve um papel crucial. Ela forneceu o terreno material da recomposição da juventude proletária, para o movimento de mulheres e para a luta com o sobretrabalho e o trabalho ilegal – e ela forneceu um canal de mediação entre o comportamento do operário disseminado e o comportamento dos operários baseados nas grandes concentrações industriais.

No entanto, essas posições a respeito da pequena fábrica não devem ser tomadas em um sentido “institucional”. Em outras palavras, a nova composição de classe que emerge da segunda fase não tem nenhuma instituição para simbolizá-la, nem é representada por uma figura social majoritária. Isso se torna ainda mais evidente se examinamos outro grande setor de recrutamento – as indústrias de serviços. Aqui, vemos padrões familiares se repetindo. Em todas as sociedades capitalistas nos últimos 30 anos, o emprego estagnou de maneira uniforme no setor industrial e aumentou no de serviços. No entanto, o que não é uniforme é o nível de salários nos respectivos setores de serviços, e as imensas diferenças nos níveis de organização e eficiência. Aqui, no entanto, o problema é um problema de uma conjuntura política específica. A saber: a demarcação obscura entre a zona dos receptores de renda e a área dos serviços, o lançamento do programa de reforma dos sindicatos depois do Outono Quente com a intenção de desviar a pressão operária sobre o salário de fábrica para o salário indireto, a descentralização das funções da administração estatal – tudo isso contribui para fazer do setor de serviços um ponto de foco para um conjunto específico de tensões políticas. Isso se torna explosivo quando a ideia de o direito a um salário se torna generalizada, junto com o crescimento da realidade política das “novas necessidades”.

 

A mudança na posição da autoridade local e os operários para-estatais

O fato dominante nessa situação é a pressão política crescente no setor de serviços, nas firmas e agências nesse setor e nas instituições políticas e administrativas. Isso se consolidou por toda uma série de pressões subjetivas e estruturais, todas exigindo uma análise microscópica. O fato dessa pressão é o único elemento de homogeneidade na situação, porque uma vez que encaramos os níveis de organização ou os níveis de composição orgânica do capital, encontramos diferenças radicais. Por um lado, há os exemplos de empresas como a SIP e a ENEL (petroquímicas e eletricidade). Aqui, nos encontramos em uma zona de inovação tecnológica em larga escala, envolvendo gastos enormes sustentados por bancos e instituições financeiras (a SIP é de longe a mais endividada de todas as preocupações italianas), acompanhadas pelo fenômeno de uma reestruturação violenta. Também nos encontramos em um dos corações da classe operária (Sit-Siemens, Face Standard, Ansaldo Meccanica, Breda, ex-Pellizzari) e ao mesmo tempo em uma área em que a subcontratação criou uma grande reserva de trabalho temporário (forza-lavoro precário) (por exemplo, a força de trabalho nômade da SIP). As lutas e formas de organização operárias nessas áreas seguiram os ciclos de luta de classes mais amplos, mas o fato de que essas empresas estão no centro de decisões fundamentais a respeito do chamado “modelo de desenvolvimento” (i.e. a questão da política energética) quer dizer que as exigências operárias tendem a sair dos canais tradicionais de negociação coletiva e chegar ao debate político em geral.

A situação é semelhante no que diz respeito às instituições de crédito. O fato de que estamos lidando aqui com operários que são normalmente encarados como um setor privilegiado da força de trabalho por seus salários relativamente altos não evitou que sua luta se espalhasse ao ponto em que ela encontrou pontos de contato precisos com a forma política da autonomia do operário de massas. Nessas zonas, o entrelaçamento com a composição de classe geral também foi facilitado pelos grandes números de operários das instituições de crédito e do setor de serviços em geral que ingressaram nas universidades. O fato de que eles são empregados por setores de capital que produz juros permitiu aos trabalhadores bancários compreender o modo pelo qual o capital está administrando a crise, a função do dinheiro na crise. No entanto, aqui ainda nos encontramos em um quadro geral de controle sindical da força de trabalho.

A situação se altera radicalmente quando nos voltamos para os operários hospitalares, operários das autoridades locais e operários de serviço social. Aqui o controle da força de trabalho é exercido diretamente pelo “sistema partidário”. Aqui, o “sistema partidário” não pode delegar as escolhas políticas básicas aos “interesses econômicos”. Ele tem que tomar iniciativas diretamente no nível da organização das hierarquias e da organização do trabalho, no nível dos cortes nos empregos e nos custos do trabalho, mas acima de tudo, ao lidar com a exigência crescente de renda e serviços – i.e. ao lidar com a nova composição de classe o sistema de “necessidades” que surge. Esse é o primeiro teste que o Partido Comunista tem que enfrentar em seu novo papel como partido governante nas autoridades locais. Certas instituições – especialmente os hospitais – estão quebrando pela primeira vez, expondo condições de trabalho e salários que desapareceram da indústria anos atrás, assim como hierarquias estruturais que são inconcebíveis nessa “era do igualitarismo”. Para os operários hospitalares em especial, o líder da CGIL, Lama, guardou palavras ainda mais pesadas do que as que ele usou para os estudantes. O “sistema partidário” mobilizou o exército para acabar com a sua luta. A sequência lógica do clientelismo – o setor terciário –, a subversão foi invocada para fornecer uma base em que o bloco institucional pode se opor aos novos tipos de lutas travados pelos operários nos serviços sociais.

 

Operários do transporte, pequenas firmas e aspectos da descentralização

A situação é semelhante no caso dos operários dos transportes, o terceiro grande setor que alimenta a nova composição de classe. Mais uma vez o “sistema partidário” e os sindicatos funcionam como um controle sobre a força de trabalho. As lutas dos operários das ferrovias foram tratadas da mesma maneira brutal que as dos operários hospitalares, mas o fato de que o sindicato em questão tem uma longa (e alguns diria gloriosa) tradição histórica deu um impulso maior às greves quando o esse sindicato foi rejeitado ao tentar controlar a força de trabalho e impor políticas de austeridade. Por bem ou por mal, nos hospitais a luta autônoma também disparou um processo de sindicalização. Nas ferrovias, por outro lado, houve uma rejeição consciente e de massas da adesão ao sindicato da CGIL. Mas aqui, estamos lidando com coisas que já são bem conhecidas…

Menos conhecidas, mas infinitamente mais explosiva, é a situação no transporte rodoviário. Aqui nos deparamos com uma massa de operários assalariados e operadores independentes que equivale a vinte Mirafioris aglutinadas em uma só. O peso “objetivo” dessa força de trabalho é assustador, e esse é talvez o único setor da classe hoje cujo movimentos poderia paralisar todo o ciclo capitalista. A greve dos motoristas de caminhões-tanque no noroeste deu uma prova disso: o Partido Comunista, por meio da estrutura das cooperativas, controla uma fatia considerável desse setor. A greve desses motoristas deu uma indicação dos níveis possíveis de violência: 7-8 mil pneus cortados, de acordo com as fontes sindicais, em pouquíssimos dias.

Aqui o “sistema partidário” (que, aliás, se apressou para concluir negociações contratuais apesar do desejo óbvio da FIAT e das companhias de petróleo em provocar um impasse) fez um uso generalizado do fantasma do Chile, e mais uma vez repetiu a operação de marginalização política das exigências dos motoristas, etc., da mesma maneira que eles haviam feito com os operários ferroviários, os operários hospitalares, o serviço social e os operários das autoridades locais.

Nosso relato deixou de fora até aqui o grande número de operários em cada um dos setores citados que estão empregados por contratados ou subcontratados. Seus números aumentam consideravelmente o número da força de trabalho que é controlada seja direta, seja indiretamente pelo “sistema partidário” (ou, mais precisamente, pelos Democratas Cristãos e pelo Partido Comunista). Essa rede de trabalho contratado nos leva exatamente para o coração do lavoro nero – em outras palavras, aquela zona muito grande de trabalho assalariado em que o sistema de garantias sindicais ou é frágil ou inexistente. Mas essa rede é característica apenas do Estado, das autoridades locais e dos setores de serviço? Longe disso. É a própria estrutura da empresa que agora está sendo dissolvida, como um meio de produção de mercadorias: a empresa se mantém apenas como o contador central, como uma mera administração de trabalho descentralizado; na verdade, a empresa se dissolve como um sujeito ou protagonista do conflito, como uma instituição da luta de classes. A empresa é o ponto de sustentação do processo de terceirização. Como podemos falar da rigidez do mercado de trabalho fora dessa ruptura institucional? A cadeia infinita de descentralização da produção rompe a rigidez da idade e do sexo, da localização geográfica, da bagagem social, etc., e tudo isso é um fator de peso não fusão da nova composição de classe.

A cadeia de descentralização infinita é um dos elementos mais “progressistas” do capitalismo hoje, ela é uma arma muito mais poderosa de massificação do que a linha de montagem. A fábrica, como uma instituição que está cada vez mais “garantida” e “protegida”, está se tornando social e politicamente isolada. Ela não permitia o ingresso de pessoas jovens, mulheres, estudantes. Ela impunha suas hierarquias e sua compartimentação a toda a sociedade. Ela assumia um papel normativo, como uma forma social completa e perfeita. Se tornou necessário cercar e envolver a fábrica, e essa cadeia de descentralização infinita nos dá os fundamentos materiais para fazê-lo. O processo de descentralização criou um grande número de aberturas por meio das quais as mulheres, os jovens, os estudantes, os operários demitidos e operários redundantes entraram, assumindo o aspecto de operários assalariados. E enquanto isso milhares de operários assalariados estão saindo das fábricas e entrando nas universidades, assumindo a posição de estudantes. Esses são ambos movimentos no campo da demografia política, porque a posição do operário assalariado e a posição do estudantes tem uma legitimação precisa no sistema de conflitos institucionais em nosso país. Todo o mecanismo da reprodução de classes tinha a instituição da fábrica como sua sustentação (com o desenvolvimento de um sistema de garantias sindicais, uma “aristocracia operária” deveria ser reproduzida na fábrica) e a universidade como instituição de promoção social (onde uma classe média antioperária deveria ser criada) – mas esse mecanismo ruiu.

 

A descentralização do sistema de lutas. A política da “vida pessoal”

Até aqui, mostramos que o sistema de descentralização permitiu que uma força de trabalho “mista” fosse absorvida no interior da relação de salarial de trabalho, e que os processos de terceirização da empresa, por outro lado, fizeram com que milhares de operários assalariados se tornassem estudantes. Tendo mostrado que esses impulsos deram uma nova legitimação política a todos aqueles que estavam envolvidos, não precisamos listar as mil e uma posições que os estudantes assumiram ou podem assumir nas oportunidades de trabalho assalariado que o sistema de descentralização oferece. Esses milhares de estudantes operários deram uma nova dimensão política à condição do trabalho assalariado em que eles se encontraram, e mostrou que era possível criar um fortalecimento mútuo de lutas isoladas, mesmo em situações em que o sindicalismo é fraco e que existem poucas situações de luta. A universidade tem sido usada como um ponto focal. Mesmo essa “antecâmara esquálida e burocrática” se mostrou capaz de se tornar alguma coisa diferente – um ponto de encontro, um ponto de agregação para o sistema de lutas que ele mesmo também é infinitamente descentralizado. Enquanto isso, depois de anos de espera, a velha toupeira da luta estudantil também começou a cavar mais uma vez, a respeito de questões como refeitórios, habitação, transporte, e, enfim, sobre o conteúdo dos cursos, as provas e direitos de votação. Os setores estudantis proletários (ou proletarizados) conseguiram se fundir com a totalidade do campo de lutas que a crise estava colocando em movimento.

Mas nossa análise desses fatores estruturais não seria efetiva se não conseguíssemos combiná-la com uma análise da grande transformação acontecendo na esfera da “vida pessoal”. Isso obviamente começa com o colapso das relações sexuais trazido pelo feminismo. E então se amplifica para envolver os problemas do controle sobre o próprio corpo e suas estruturas de percepção, emoção e desejos. Esse não é apenas um problema da “cultura de juventude”. Ele tem antecedentes operários no ciclo de lutas de 1968-69. A defesa da própria integridade física contra o massacre em linhas rápidas e no maquinários, contra se envenenado pelo ambiente, etc., por um lado é uma maneira de resistir à depreciação do valor de troca da própria força de trabalho e a deterioração de seu valor de uso, mas ao mesmo tempo é uma maneira de se reapropriar do próprio corpo, de gozar livremente das necessidades corporais. Aqui também há uma homogeneidade, não uma separação, entre o comportamento dos jovens, das mulheres e dos operários.

Agora se coloca a questão das drogas. O controle do uso de drogas está sendo reapropriado pelas instituições do ciclo político. Logo depois que os jovens experimentaram as drogas leves, dando a eles uma prova em primeira mão do quanto a sociedade roubou deles em termos do seu potencial perceptivo, as multinacionais da heroína decidiram entrar e impor as drogas pesadas. Um espaço de confrontação política se abre, entre o valor de uso (autogerido, em certos limites) e de trocar das drogas, e isso envolve a organização e as instâncias da autodefesa armada. O mecanismo de produção de novas necessidades não é uma prerrogativa exclusiva dos “movimentos de libertação”: ele encontra suas raízes no “Queremos tudo!” dos operários de Mirafiori no verão de 1969. A “utopia italiana” tem uma forte marca da classe operária, que nenhum teórico do “movimento” de estilo americano – guetificado e autossuficiente – conseguirá apagar.

 

A crise das formas políticas. O sentido da área da autonomia.

Como vimos, a reconquista da “vida pessoal” também deu um golpe de morte às organizações da esquerda revolucionária. Mas as raízes de seu colapso organizativo não estão apenas nas questões das relações sexuais, das hierarquias alienantes, da negação da subjetividade, etc. Elas estão em erros de escolha política precisos e documentáveis, teorias da organização erradas. Por exemplo, o atual conceito de poder, que estava baseado no antigo ciclo político (luta/partido/transição/guerra civil/pode de Estado). Em outras palavras, uma projeção no futuro, mais do que uma experiência real nos espaços liberados do presente. Esse erro se transforma em uma paródia quando os grupos todos se amontoam na arena eleitoral. A forma institucional apodrecida da política, carcomida desde seu interpor e abandonada pelos elementos mais atentos, se tornou uma forma de opressão.

No entanto, seria errado teorizar, por um lado, uma sociedade irracional constituída de puros comportamentos opostos e, por outro, uma sociedade estruturada por esquemas lógicos. O que temos são circuitos ocultos envolvendo grupos específicos, que por sua vez evoluem em conjuntos específicos de resultados. Há, na verdade, uma prática consciente do irracional, como uma destruição dos elementos unificadores da linguagem, da comunicação e da mediação. Em suma, qualquer separação entre o clico “pós-político” (a zona do instinto, do irracional, do pessoal e do privado) e o político é inaceitável. Não é possível confinar a nova subjetividade no interior dos termos da contracultura de juventude, ou considera-la como uma prerrogativa exclusiva das mulheres. As tentativas atuais de criar uma oposição entre o movimento de libertação e o ciclo político são falsas – tão falsas quanto a teoria que define a nova composição de classe como sendo constituída de setores desempregados e marginalizados. A realidade é que a política como uma forma passou por uma crítica, na base de uma batalha entre linhas políticas, e isso, por sua vez, permitiu o surgimento de novas organizações que tem sido legitimadas politicamente por sua presença nos núcleos de classe apontados anteriormente.

A explosão de 1977, com a ocupação das instalações universitárias, foi um confronto violento entre a forma do Estado e a nova composição política da classe. Por um tempo, essa nova composição política se encontrou e se baseou na universidade, tomando-a como uma base material em que diferentes necessidades, diferentes segmentos de classe, grupos sociais e grupos políticos e grupos disseminados poderiam se agrupar. A universidade como uma instituição se tornou uma base de luta, capaz de representar todos os vários programas parciais da nova composição de classe.

A nova ascensão do movimento de mulheres e do movimento de juventude aprofunda a ruptura com as organizações que compõe o Democrazia Proletaria, mas as origens reais dessa ruptura devem ser encontradas nos desacordos políticos apresentados pelas novas forças da área da autonomia organizada (autonomia organizzata), em especial os grupos representando Roma, o Vale do Pó e o eixo Milão-Sesto-Bergamo. Então, se alguma coisa os legitimava como uma “minoria de liderança” na primeira fase da ocupação das faculdades, era a sua relação com a nova composição de classe, com o proletariado do setor de serviços de uma grande cidade terciária como Roma, com a rede de vanguardas fabris na zona industrial entre Milão e Bergamo e com as necessidades dos estudantes proletários e os operários geograficamente disseminados do Vale do Pó. O fato de que eles compreendiam e tinham subjetivamente antecipado os comportamentos de massas que não eram localizáveis nem nos esquemas da onda de contestações de 1968, nem nos do Outono Quente – esse fato permitiu às pessoas da “autonomia organizada” – ainda que por um breve período – apresentar um programa que estava de acordo com a composição de classe em desenvolvimento. A relação entre essas frações autonomistas e o movimento geral estar de par com a relação entre os grupos anarquistas e as massas na Sorbonne em maio de 68. A habilidade de adequar a composição de classe e o programa político significa a habilidade de praticar a arte da política (ou, mais normalmente, o simples bom senso) para reunir a vanguarda e a média, a organização e o movimento.

Mas, ao invés disso, com uma velocidade incrível, questões muito antigas começaram a surgir: a organização, com seu programa e seus planos, deveria superar o corpo do movimento? O programa deveria ser externo e se contrapor à composição de classe? Os ecos dos confrontos em Bologna mal haviam sumido quando todos tiraram suas máscaras de Lênin de trás das costas – em especial a tendência Autonomia Operária (Autonomia Operaia) no Norte.

Enquanto isso, na luta real, coisas importantes estavam acontecendo. As interpretações correntes delas (tanto as da tendência da DP quanto as da tendência da autonomia) estavam ou erradas ou só meio certas. Em especial no que diz respeito à dinâmica dos acontecimentos de Bologna.

O problema principal que gerou essa separação entre a composição de classe e o programa é a questão do “partido de combate” (partito combatente). Quando algumas frações da “autonomia organizada” decidiram forçar o passo nessa frente (com diferenças internas consideráveis entre aqueles em que se baseavam na necessidade de autodefesa e aquele que defendiam um avanço qualitativo na organização), não apenas a frente da DP se reconstruiu (Milão é um bom exemplo disso), mas também encontramos uma resistência difundida e crescente da parte dos elementos “libertários” que não aceitam uma reintrodução de práticas voluntaristas.

Não é acidente que tenha ficado na conta das frações da autonomia organizada liderar a primeira fase da luta. A sua hegemonia inicial sobre o movimento foi derivada de sua compreensão e antecipação das formas de comportamento político que eram características da nova composição de classe, da habilidade de ler partes do programa entre as próprias massas, em outras palavras, saber como se apresentar não como uma coisa “privada”, mas como uma expressão “social”, uma tendência de um movimento crescente, mais do que uma escolha completamente confinada no interior da lógica de auto-reprodução de um grupo político. O desenvolvimento da crítica das formas tradicionais de política (em especial da “forma partido”) afinou as sensibilidade de camaradas em uma habilidade quase neurótica de intuir quando escolhas e ações específicas funcionavam “para todos” e quando elas eram apenas privadas e pessoais. Forçar o ritmo na questão do “partido de combate” colocou em movimento todos esses mecanismos, e abriu mais contradições no interior do movimento do que no aparelho de Estado! Mas então é esse precisamente o ponto: com esse ciclo de lutas, a forma do Estado passou por uma evolução. Está perfeitamente claro que ela tem trilhado com muita força o caminho de unificação do “sistema partidário” e que a lei e a ordem foram os trilhos principais em que esse processo de unificação aconteceu. No entanto, no interior do “sistema partidário” houveram diferentes abordagens (ou, antes, uma divisão de papeis?) sobre como continuar com o fortalecimento da forma do Estado.

 

Experimentos práticos de uma nova forma de Estado

Os democratas cristãos assumiram a linha tosca de melhorar os privilégios existentes das forças da lei e da ordem (leis policiais de prisão, etc.), assim como introduziram novas regras e regulações. O efeito disso é entregar toda a operação de dissuasão ao aparato repressivo, com a intenção de que, tendo lidado com os “autonomistas” eles então poderiam se mobilizar contra o movimento amplo de oposição. Certamente, o DC fez isso depois de uma devida consulta aos outros partidos (i.e. respeitando as regras de seu projeto conjunto e aceitando os atrasos inevitáveis e as discussões que surgem neles), mas ainda assim o DC ainda se apoia no Estado como um aparelho: uma máquina separada, um “corpo especial”, para ser usado como um meio de repressão em dadas situações emergenciais, e enquanto isso deixa a “repressão diária” para a forma capitalista de controle sobre a fábrica e sobre o trabalho disseminado.

O Partido Comunista em Bologna, por outro lado, desenvolveu e experimentou praticamente com uma forma de Estado mais madura, uma forma que está mais alinhada com uma socialdemocracia de massas em um período de transição. Uma forma-Estado em que são as próprias massas que agem como o juiz e o júri, julgando quem é desviante e quem não é. Agora, devem ser as próprias reuniões de massas nas fábricas que expulsam os extremistas, as reuniões de massas de inquilinos que decidem expulsar o jovem perturbador, e a assembleia universitária que expulsa o estudante “indesejável” com uma pistola e uma barra de ferro. É claro, as instâncias em que estou pensando são casos extremos – mas o fato de que essa forma-Estado está sendo experimentada nos “autonomistas” como cobaias não diminui o potencial de marginalização de uma forma-Estado desse tipo em uma conjuntura de desenvolvimento da austeridade, de “política do sacrifício” e de dinheiro sendo passado diretamente para as empresas capitalistas. Uma vez que você tem a atuação coletiva como juiz e júri, as formas institucionais da lei (perucas e togas, etc.) só tem uma função de ratificação: elas se livram do refém, o tumor que foi expulso de um corpo saudável se não fosse por ele. A forma-Estado aparece como um tipo de processo de imunização da sociedade civil. Esse é um grande passo adiante – é um momento de “socialização do Estado”, que seria inovador se não estivesse acontecendo em uma conjuntura de congelamento do equilíbrio do poder de classe, com uma restauração do controle capitalista em todos os níveis e com uma anistia geral para os criminosos do passado e do presente que pertencem ao aparelho do clientelismo, da corrupção e da repressão. No nível das instituições de poder não se pode duvidar de que um elemento a mais está contribuindo para a insistência da situação, mas ao mesmo tempo devemos compreender deu caráter “progressista”. Ele transcende dois aspectos da atual forma-Estado: seu aspecto como um “sistema partidário”, e seu aspecto como um aparelho burocrático/repressivo, ambos sendo hostis e separados da sociedade civil. É uma forma infinitamente mais avançada, uma forma que, entre outras coisas, não tem necessidade de romper o atual aparato institucional ou purifica-lo ao substituir seus quadros por quadros mais democráticos. Essa forma-Estado faz mais do que isso. Ela subverte a relação entre a sociedade civil de o aparelho. Ela se apropria da função qualitativa do judiciário e deixa o aparelho com uma alteração quantitativa em termos das penalidades a serem impostas. Daí em diante, é a sociedade civil, a coletividade, que ajeita a norma e formula a sentença, enquanto o aparelho fica com a função técnica da punição.

Tudo isso apresenta problemas enormes para a legitimação de ações políticas, na medida em que a organização é obrigada a se medir diariamente contra a nova composição de classe, e deve encontrar seu programa político exclusivamente no comportamento da classe, e não em algum conjunto de estatutos; e isso não deve levar à clandestinidade política, mas ao seu oposto. Aqueles que praticam a clandestinidade técnica geralmente nem mesmo enxergam essa nova forma-Estado. Eles continuam a se relacionar com os aparelho de Estado e a focar sua atenção neles, e então eles se descobrem separados do movimento de massas. Por outro lado, aqueles que escolhem a clandestinidade política – i.e. a recusa de buscar criar uma base para a crítica e a legitimação de suas ações – não apenas passam pela mesma segregação do movimento de massas como também são esmagados pelo aparelho, porque eles não tem as defesas e as armas que tem aqueles na clandestinidade técnica.

Agora, enquanto é verdade que o PCI propôs (e, em algumas instâncias, colocou em prática) essa forma de Estado nova e mais avançada, como um experimento, na realidade, ele oscilou entre esse tipo de “prevenção política” do comportamento subversivo e uma delegação completa da repressão ao aparelho de Estado. Em minha opinião, a primeira opção tinha muito mais peso, e nesse sentido penso ser cansativas e também incorretas as referências que estão sendo feitas nesse momento à “nova Praga” ou a “novo Chile”. Mas o que devemos esclarecer é a medida em que essa proposição de uma forma-Estado “social” encontrou e encontrará resistências e recusas em vários níveis da atual composição de classe.

Deixando de lado a resistência que ela encontrou até mesmo entre setores em particular do próprio judiciário (i.e. em uma fração do próprio aparelho), ela não foi aprovada no nível médio da composição de classe (enfatizo médio). Não apenas porque ela tem como objetivo transferir para a sociedade civil apenas algumas (não por acaso, as mais odiosas) prerrogativas do Estado, e não outras mais atraentes (como o controle dos recursos, por exemplo). Mas também porque ela se ilude ao imaginar que ela pode injetar nas pessoas um sentimento abstrato do Estado, enquanto, na verdade, o Estado que as pessoas compreendem é esse Estado – i.e. um Estado em dadas relações de poder e sistemas de valor que a classe operária começou a desfazer em 1969, e que o “sistema partidário”, com a crise, não apenas conseguiu colocar de pé mais uma vez, mas também assumiu como o seu próprio. A forma-Estado não é um princípio jurídico, nem uma norma abstrata, mas uma formação que é historicamente determinada.

Ruma a uma mobilização de toda a massa do trabalho disseminado

A teoria de que a universidade funcionou como um ponto de agregação para o movimento existe conjuntamente com uma teoria sobre o futuro do desempregado intelectual (ou, antes, do intelectual desempregado), que foi assumida, de maneira acrítica, como a figura mais representativa do movimento. A teoria é de que a exclusão de intelectual desempregado do mercado de trabalho o coloca junto dos outros setores marginalizados, para quem o intelectual desempregado, então, age como uma voz. Eu já apresentei meu completo desacordo como esse tipo de interpretação. A universidade foi assumida pela atual composição de classe como um ponto de agregação mais por causa das formas políticas da luta (i.e. por alguns níveis de violência e poder) do que pelo fato de que ela é uma fábrica de produção de intelectuais desempregados. Ela foi assumida porque ela coloca um fim nesse processo de marginalização das exigências, comportamentos subjetivos e organização. Mas uma vez mais devemos ir além da universidade, tanto como base para o movimento quanto como ponto de agregação para identificar os canais que podem levar à mobilização de toda a massa do trabalho disseminado – i.e. para fornecer um caminho direto para a fábrica que produz mais valor relativo. Por essa razão, passei me dei o trabalho de enfatizar a questão do trabalho precário, junto com o sistema de produção decentralizada, e que a zona social em que o sistema protegido de “garantias” sindicais dos salários e condições de trabalho entrou em crise. Para fazer essa transição é de importância vital que primeiro tenhamos que rejeitar a “retórica da pobreza” – protestos morais em favor dos pobres. Pelo contrário, devemos mais uma vez nos perguntar se é possível pensar nos termos de “objetivos de massas” do tipo que caracterizou o antiautoritarismo de 1968 (a exigência dos operários da FIAT de “grau 2 para todos”, que levou ao igualitarismo das exigências feitas no Outono Quente de 1969).

Uma proposta dessas não pode simplesmente ser descartada como um passo atrás na negociação coletiva, que prepararia o terreno para um novo contrato social entre o governo e os sindicatos. Seria absurdo rejeitá-la, pelo simples motivo de que novos objetivos desse tipo levariam com eles o peso representativo do infinito potencial de criatividade que surgiu nesses últimos anos. Mais do que isso, o problema maior é como vamos encontrar o ponto em que um projeto desse tipo pode ser aplicado – em suma, para escolher as “novas Mirafioris” entre todos os “setores estratégicos” do chamado setor terciário. Mais especificamente, entre todos aqueles que funcionam como elo de ligação entre a produção de mais-valor absoluto e a produção de mais-valor relativo – como, por exemplo, o ciclo de transportes. Além disso, até mesmo na simples extensão da rigidez do trabalho (mesmo em sua forma como um sistema de garantismo sindical) ao lavoro nero, trabalho subcontratado, etc., isso teria o efeito de forçar a luta de fábrica a dar um salto adiante. Em suma, estamos procurando os canais sociais em que poderíamos romper o cercamento que já está acontecendo e evitar que o movimento se dispersasse em mil momentos de luta descentralizados – um novo e longo purgatório de lutas endêmicas. Temos que encontrar alguma coisa que possa funcionar da mesma maneira que funcionaram as greves pelas pensões e as lutas em torno das áreas de trabalho funcionaram, em relação ao ciclo de lutas operárias de 1968-69.

Essa abordagem será taxada de “economicismo” e “acordismo coletivo” por todos e cada um. Ela será acusada de falta de imaginação, mobilizando práticas que estão mortas e enterradas. Mas vamos com calma. A forma-Estado que se apresenta hoje tem suas origens na ideologia da crise e no programa de austeridade que ela trouxe consigo. A ideologia ofereceu os fundamentos para estabelecer novas relações, mais estreitas, entre os partidos. É esse o fundamento para o “compromisso histórico”. É essa a justificativa dos poderes de marginalização dos partidos. Conseguir derrubar tudo isso não seria coisa pequena. Não significaria um retorno para a antiga forma conflitual de mediações do sistema partidário, mas a restauração do conflito entre as bases e a nova relação entre uma forma-Estado socializada e a produção de capital. E, mais ainda, uma vez que o imperialismo de Jimmy Carter – diferentemente dos contadores obtusos do FMI – compreendeu que na Itália o sistema de valores e comportamentos ao qual a combinação de medidas de austeridade, lei e ordem tem que ser aplicada é mais forte do que parece. E, portanto, é um bom investimento liberar grandes somas de “dinheiro de controle” (essa é a tendência atual de Carter) através de um grande sistema de bancos privados internacionais. Que comecemos a transformar esse domínio em dinheiro-enquanto-dinheiro – transformar essa medida de poder-sobre-o-trabalho-alheio em poder-sobre-nossas-próprias-necessidades, poder sobre nossos próprios espaços de organização e cultura, uma força motriz para o novo desenvolvimento de uma nova composição de classe. É tempo de que tomemos de volta do “sistema partidário” os seus poderes residuais sobre a reprodução das classes, para que possamos começar a determinar essa reprodução desde a base, de modo que possamos garantir os sistemas de valor e os comportamentos políticos que a nova composição de classe legitimou nas lutas desses últimos meses.

 

 

[1] Ver H. Brand, “The Myth of the Capital Shortage”, em Dissent, verão de 1976.

[2] Federal Reserve Bank of New York Monthly Review, outubro de 1976.

[3]Peter Drucker, The Unseen Revolution: How Pension Fund Socialism Came to America, Londres, 1976.

[4] Ver B. Secchi, Il Problema delle Abitazioni, dalla Casa al Territorio, Faculdade Politécnica de Arquitetura, Milão, 1976.

 

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de Autonomia: post-political politics.  Semiotext(e), 2007.
Você pode contribuir enviando e-mails indicando erros de tradução ou sugestões de melhoria para autonomistablog@gmail.com
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Silvia Federici – Mulheres, globalização e o movimento feminista internacional

Imagens de mulheres segurando suas crianças em meio a escombros do que foram suas casas, ou lutando para recriar uma vida sob as barracas dos campos de refugiados, ou trabalhando em sweatshops, bordéis, ou como trabalhadoras domésticas em países estrangeiros, há anos têm aparecido nos noticiários. As estatísticas corroboram essa narrativa de vitimização de tal maneira que “feminização da pobreza” virou categoria sociológica. Ainda assim, mesmo em círculos feministas, os fatores que motivam tal deterioração na condição de vida das mulheres[1]  – ironicamente coincidindo com a campanha da ONU para a melhora da posição feminina – não são compreendidos adequadamente nos Estados Unidos. Sociólogas feministas concordam que, globalmente, as mulheres estão sofrendo com o “custo desproporcional” pela “integração à economia global” de seus países. Mas a razão disso não é discutida ou é atribuída ao viés patriarcal das agências internacionais que promovem a globalização. Assim, algumas organizações feministas passaram a defender uma nova “marcha nas instituições” para influenciar o desenvolvimento global e fazer as agências financeiras, como o Banco Mundial, “mais sensíveis ao gênero”[2]. Outras começaram a pressionar os governos pela implementação das recomendações da ONU, convencidas de que a melhor estratégia é a “participação”.

 

No entanto, a globalização é especialmente catastrófica para as mulheres não porque é gerida por agências dominadas por homens ignorantes das necessidades das mulheres, mas por causa de seus objetivos.

 

A globalização pretende dar ao capital corporativo total controle do trabalho e dos recursos naturais. Para tanto, precisa expropriar os trabalhadores de qualquer meio de subsistência que possa permiti-los resistir à intensa exploração. Portanto, só pode ter sucesso por meio de um ataque sistemático às condições materiais de reprodução social e nos principais sujeitos desse trabalho, que na maioria dos países são as mulheres.

 

As mulheres são vitimadas também porque são culpadas dos dois maiores crimes que a globalização se propôs a combater. Por meio da luta, foram elas que mais contribuíram à “valorização” do trabalho de suas crianças e comunidades, desafiando as hierarquias sexuais sob as quais o capitalismo se baseia e forçando o Estado-nação a expandir o investimento na reprodução da força de trabalho[3]. Elas também foram as principais proponentes de um uso não-capitalista dos recursos naturais (terras, águas, florestas) e agricultura orientada à subsistência. Portanto, resistiram à total comercialização da “natureza” e à destruição dos últimos resquícios do comum[4].

 

É por isso que a globalização em todas as suas formas capitalistas – ajustes estruturais, liberalização do comércio, guerras de baixa intensidade – é, em essência, uma guerra contra as mulheres, e especialmente devastadora para as mulheres no “terceiro mundo”, mas que compromete a subsistência e a autonomia das mulheres proletárias em todo o mundo, incluindo os países capitalistas “avançados”. A partir disso, conclui-se que as condições econômicas e sociais das mulheres não podem ser melhoradas sem uma luta contra a globalização capitalista e pela deslegitimação das agências e programas que mantêm a expansão global do capital, começando pelo FMI e pelo Banco Mundial, e pela OMC. Em contraste, qualquer tentativa de “empoderar” as mulheres “generizando” [gendering] essas agências não só está condenada ao fracasso, mas pode ter um efeito mistificador, permitindo a cooptação das lutas das mulheres contra a agenda neoliberal e por uma alternativa não-capitalista[5].

 

Globalização: Um Ataque à Reprodução

 

Para entendermos porque a globalização é uma guerra contra as mulheres devemos compreender esse processo “politicamente”, como uma estratégia que visa derrotar a “recusa do trabalho” operária por meio da expansão global do mercado de trabalho. É uma resposta ao ciclo de lutas iniciados com os movimentos anti-coloniais e continuando até os movimentos Black Power, Blue Collar e Feminista dos anos 60 e 70, que desafiaram a divisão internacional e sexual do trabalho, causando não só uma crise de lucratividade histórica, mas também uma verdadeira revolução cultural e social. As lutas das mulheres – contra a dependência aos maridos, pelo reconhecimento do trabalho doméstico como trabalho, contra as hierarquias raciais e sexuais – têm sido um aspecto chave dessa crise. Portanto, não é de se espantar que os programas associados à globalização tenham tomado as mulheres como alvos principais.

 

Programas de ajuste estrutural, por exemplo, apesar de promovidos como meios para recuperação econômica, destruíram as condições de vida das mulheres, impossibilitando a reprodução de si e de suas famílias. Um dos principais objetivos desses programas é a “modernização” da agricultura, isto é, sua reorganização sob uma base comercial e voltada à exportação. Isso significa que mais terra é convertida para o cultivo de safras rentáveis e mais mulheres, mundialmente predominantes na agricultura doméstica, são removidas. Mulheres também foram removidas pela retração do setor público, que resultou na esfacelação dos serviços sociais e do emprego. De novo, as mulheres pagaram o maior preço, pois não só foram as primeiras a ser demitidas, mas também porque o acesso à assistência de saúde e infantil significa vida ou morte[6].

 

A criação de “linhas de montagem globais”, que disseminam sweatshops pelo mundo e alimentam-se do trabalho de mulheres jovens, é parte dessa guerra contra as mulheres e a reprodução. É certo que ser uma trabalhadora industrial para o mercado global pode representar uma maior autonomia para certas mulheres[7]. Mas mesmo quando isso é verdade, em contrapartida, perde-se a saúde e a possibilidade de ter uma família, dadas as longas horas de trabalho e as perigosas condições de trabalho em Zonas de Livre Comércio. É uma ilusão pensar que o trabalho nessas zonas seja uma solução temporária a mulheres antes do casamento. A maioria delas acaba perdendo a vida em fábricas que mais parecem prisões, e mesmo aquelas que se demitem descobrem que seus corpos já foram feridos. Considere o caso das jovens mulheres trabalhando na indústria de flores na Colômbia ou no Quênia, as quais depois de anos ou até meses de trabalho ficam cegas ou desenvolvem doenças mortais por causa da constante exposição a fumigação e pesticidas[8].

 

Evidências da guerra de agências internacionais contra as mulheres, especialmente as do Sul, é o fato de tantas terem sido forçadas a migrar para o Norte, onde desempenham, na maior parte dos casos, trabalho doméstico.  São mulheres do Sul que tomam conta das crianças e dos idosos em muitos países da Europa e nos Estados Unidos, um fenômeno que alguns têm chamado de “maternidade global” e “cuidado global”[9].

 

Para se consolidar, a nova economia mundial se apoia no desinvestimento estatal no processo de reprodução social.  O corte do custo do trabalho em favor da lucratividade da nova economia global é tão crucial que, onde dívida e ajustes não foram suficientes, a guerra completou o serviço. Em outro lugar eu mostrei que muitas guerras travadas em anos recentes no continente africano têm origem nas políticas de ajuste estrutural, que exacerba os conflitos locais e compele as elites locais a acumularem apenas através de saques e pilhagem. Quero enfatizar que a maioria das guerras contemporâneas tem a intenção de destruir a agricultura de subsistência e, portanto, direcionam-se, principalmente, às mulheres. Isso é verdade tanto para a “guerra às drogas”, que serve para destruir as colheitas de pequenas fazendas, quanto para as guerras de baixa intensidade e “intervenções humanitárias”.

 

Outros fenômenos decorrentes da globalização têm consequências destrutivas às mulheres e à reprodução: contaminação do meio ambiente, privatização da água – a última missão do Banco Mundial que cavalheirescamente vê as guerras do século XXI motivadas por água – corte e exportação de florestas inteiras[10]. Há uma lógica que traz de volta regimes de trabalho típicos das plantations coloniais, onde trabalhadores trabalhavam para o mercado mundial e mal se reproduziam. As principais estatísticas dos países “ajustados” são eloquentes nesse ponto. Tipicamente, indicam:

 

  • Aumento da taxa de mortalidade e redução da expectativa de vida (cinco anos ao nascer, para crianças africanas)[11].
  • O colapso de famílias e comunidades, levando crianças a viver nas ruas e a trabalhar como escravas[12].
  • Número crescente de refugiados, em sua maioria mulheres, removidas pela guerra ou por medidas econômicas[13].
  • O crescimento de mega-favelas alimentadas pela expulsão de fazendeiros de suas terras.
  • O crescimento da violência contra as mulheres sob as mãos dos parentes homens, de autoridades governamentais e exércitos beligerantes[14].

 

No “Norte”, também, a globalização devastou a economia que sustenta as vidas das mulheres. Nos Estados unidos, provavelmente o exemplo de maior sucesso do neoliberalismo, o sistema de bem-estar foi totalmente desmantelado  – especialmente o AFDC [Aid to Families with Dependent Children], que afetou as mulheres com crianças dependentes[15]. Assim, famílias cujos chefes são mulheres foram totalmente pauperizadas, e mulheres trabalhadoras se veem obrigadas a ter mais de um emprego para sobreviver. Enquanto o número de mulheres na cadeia continuou a crescer, e uma política de encarceramento em massa prevaleceu, sendo consistente com o retorno a economias de análogas ao plantation no coração do industrialismo.

 

 

A Luta das Mulheres e o Movimento Feminista Internacional

 

Quais as implicações para o movimento feminista internacional? A resposta imediata é: as feministas não deveriam apenas apoiar o cancelamento da “dívida do terceiro mundo”, mas engajar-se numa campanha de reparações, devolvendo os recursos naturais roubados às comunidades devastadas pelo “ajuste”. A longo prazo, as feministas devem reconhecer que não podemos esperar qualquer melhora em nossas vidas dentro da sociedade capitalista. Pois, assim que movimentos anti-coloniais, de direitos civis e feministas forçaram o sistema a fazer concessões, reagiu-se com o equivalente a uma guerra nuclear.

 

Se a destruição dos nossos meios de subsistência é indispensável para a sobrevivência de relações capitalistas, esse deve ser nosso terreno de luta. Devemos nos juntar às lutas das mulheres no “sul”, que mostraram a capacidade das mulheres em balançar até os regimes mais repressivos[16]. Um exemplo são as Madres de la Plaza de Mayo na Argentina, que por anos têm desafiado um dos regimes mais repressivos do planeta, num tempo em que ninguém no país ousava mexer um dedo[17]. Um caso similar é o das mulheres proletárias/indígenas do Chile que, após o golpe militar de 1973, juntaram-se para assegurar a suas famílias alguma comida – por meio da organização de cozinhas comunitárias, tornando-se conscientes, no processo, de suas necessidades e força enquanto mulheres[18].

 

Esses exemplos mostram que o poder das mulheres não vem de cima, entregue por instituições globais como as Nações Unidas, mas que deve ser construído por baixo, pois apenas por meio da auto-organização as mulheres podem revolucionar suas vidas. Certamente, feministas fariam bem em reconhecer a coincidência de iniciativas das Nações Unidas em nome dos direitos das mulheres com o mais devastador ataque às mulheres em todo o planeta, e que a responsabilidade é exclusivamente de agências membras do sistema das Nações Unidas: o Banco Mundial, FMI, OMC, e, acima de tudo, o Conselho de Segurança da ONU. Em contraste com o “feminismo” da ONU, com suas ONGs, seus projetos de geração de renda e sua relação paternalista com movimentos locais, emergem as organizações de base de mulheres na África, Ásia e América Latina, lutando por serviços básicos (como estradas, escolas, clínicas), resistindo aos ataques governamentais a vendedores ambulantes, uma das principais formas de subsistência feminina, e defendendo a si mesmas contra os abusos de seus maridos[19].

 

Como toda forma de auto-determinação, a libertação das mulheres demanda condições materiais específicas, começando pelo controle de meios básicos de subsistência e de produção. Como Maria Mies e Veronika Bernholdt-Thomsen argumentaram em The Subsistence Perspective (2000), esse princípio é válido não só para mulheres no “terceiro mundo”, que têm sido grandes protagonistas na luta pela reconquista da terra roubada por grandes latifundiários, mas também para mulheres em países industrializados. Em Nova Iorque, mulheres combatem escavadeiras para defender seus jardins urbanos, os frutos de muito trabalho coletivo que uniu comunidade inteiras e revitalizou bairros previamente considerados zonas de desastre[20].

 

Mas a repressão a tais projetos indica que precisamos de uma mobilização feminista contra  intervenção do Estado na nossa vida cotidiana, assim como em assuntos internacionais. As feministas também devem se organizar contra a brutalidade policial, a militarização, e, em primeiro lugar, a guerra. Nosso primeiro e mais importante passo deve ser combater o alistamento de mulheres nos exércitos, que foi infelizmente introduzido com o apoio de algumas feministas em nome da igualdade e emancipação femininas. Há muito que podemos aprender com essa política mal orientada. A imagem da mulher de uniforme, conquistando a igualdade com os homens por meio do direito de matar, é a imagem do que a globalização pode nos oferecer: o direito de sobreviver às custas de outras mulheres e crianças, cujos países e recursos o capital corporativo precisa explorar.

[1] Refiro-me às ações promovidas pela ONU em nome da emancipação feminina, incluindo as Cinco Conferências Globais sobre as Mulheres, e a Década da Mulher (1976-1985). Conferir os seguintes textos: From Nairobi to Beijing (Nova Iorque: United Nations, 1995); The World’s Women 1995: Trends and Statistics (Nova Iorque: United Nations, 1995); The United Nations and the Advancement of Women: 1945-1996 (Nova Iorque: United Nations, 1996); e Mary K. Meyer e Elizabeth Prugl (orgs), Gender Politics in Global Governance (Boulder: Rowman and Littlefield Publishers Inc, 1999).

 

[2]Christia Wichterich, The Globalized Woman: Reports from a Future Inequality (Londres: Zed Books, 2000); Marilyn Porter e Ellen Judd (orgs), Feminists Doing Development: A Practical Critique (Londres: Zed Books, 1999).

 

 

[3] Veja, por exemplo, a luta de mãos sob o welfare nos Estados Unidos nos anos 60, que foi o primeiro caso da negociação entre mulheres e Estado no plano da reprodução. Com essa luta, mulheres sob o Aid to Families with Dependent Children, conseguiram transformar o welfare no primeiro “salários para o trabalho doméstico”. Conferir Milwaukee County Welfare Rights Organization, Welfare Mothers Speak Out.

[4] Sobre a luta dos mulheres contra a deflorestamento e contra a comercialização da natureza, conferir, entre outros, Filomina Chioma Steady, Women and Children First: Environment, Poverty, and Sustainable Development (Rochester, VT :Schenkman Books, 1993.); Vandana Shiva, Close to Home: Women Reconnect Ecology, Health and Development Worldwide (Filadélfia: New Society Publishers, 1994); Radha Kumar, The History of Doing: An Illustrated Account of Movements for Women’s Rights and Feminism in India 1800–1990. (Londres:Verso, 1997); Yayori Matsui, Women in the New Asia: From Pain to Power  (Londres: Zed Books, 1999).

 

[5] Para uma história de como o Banco Mundial aumentou sua “preocupação com o gênero” como resultado da crítica de ONGs, conferir Josette L. Murphy, Gender Issues in World Bank Lending (Washington, DC: The World Bank, 1995).

[6] Meredith Thurshen, (org), Women and Health in Africa (Trenton, NJ: Africa World Press, 1991); Folasode Iyun, “The Impact of Structural Adjustmenton Maternal and Child Health in Nigeria”, in Women Pay the Price: Structural Adjustment in Africa and the Caribbean, (org). Gloria T. Emeagwali (Trenton :Africa World Press, 1995).

[7] Susan Joekes, Trade Related Employment for Women in Industry and Services in Developing Countries (Genebra: UNRISD, 1995).

[8] Wichterich, Globalized Woman, 1-35.

[9] Arlie Hochschild, “Global Care Chains and Emotional Surplus Value”, in Global Capitalism. Will Hutton e Anthony Giddens (Nova Iorque: The New Press, 2000).

[10] Shiva, Close to Home

[11] Nações Unidas, The World’s Women 1995, 77.

[12] Bernard Schlemmer (org), The Exploited Child (Londres: Zed Books, 2000).

[13] Entre 1986 e 1995, dobrou-se o número de pessoas internamente despejadas (de 20 para 10 milhões). Cf. Roberta Cohen e Francis M. Deng Masses in Flight: The Internal Crisis of Internal Displacement (Washington, DC: Brookings Institution Press, 1998, 32. Sobre esse assunto, conferir também Macrae e Zwi, War and Hunger.

[14] Naomi Neft e D. Levine, Where Women Stand: An International Report on the Status of Women in 140 countries, 1997-1998 (Nova Iorque: Random House, 1997), 151-63.

[15] Mimi Abramovitz, Regulating the Lives of Women: Social Welfare Policy from Colonial Times to the Present (Boston: South End Press, 1996).

[16] Sob a mais brutal pauperização, são as mulheres que cuidam das crianças e dos idosos, enquanto é mais provável que seus parceiros homens abandonem a família, bebam seus salários ou descontem seus males em suas companheiras. De acordo com as Nações Unidas, em muitos países, como Quênia, Gana, Filipinas, Brasil e Guatemala, apesar da renda das mulheres ser muito menor que a dos homens, em lares mantidos por mulheres há menos crianças severamente mal-nutridas. (Nações Unidas, The World’s Women, 129).

[17] Jo Fisher, Out of the Shadows: Women, Resistance and Politics in South America (Londres, LAtin America Bureau, 1993): 103-115.

[18] Ibid., 17-44, 177-200.

[19] Elizabeth Jelin, Women and Social Change in Latin America (Londres: Zed Books, 1990); Carol Andreas, Why Women Rebel: The Rise of Popular Feminism in Peru (Westport CT: Lawrence Hill Company, 1985).

[20] Elvia Alvarado, Don’t Be Afraid, Gringo: A Honduran Woman Speaks from the Heart (Nova Iorque: Harper and Row, 1987); Bernadette Cozart, “The Greening of Harlem,” in Avant Gardening: Ecological Struggle in the City and the World, (orgs). Peter Lamborn Wilson and Bill Weinberg (Nova Iorque: Autonomedia, 1999); Sarah Ferguson, “A Brief History of Grassroots Greening in the Lower East Side,” in Avant Gardening.

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de Revolution at Point Zero: Housework, Reproduction, and Feminist Struggle. PM Press, 2012.
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Raniero Panzieri – Nem economicismo, nem trotskismo

Publicado no Avanti!, Roma, 9 de setembro de 1958¸e assinado com Lucio Libertini

No debate aberto nas colunas do Mondo Operaio, do Avanti! e do l’Unità sobre a questão do controle operário e da democracia direta há pelo menos um lado positivo bastante importante: o lado positivo está no próprio fato de que esse debate surgiu, de desenvolve amplamente, sem excomunhões recíprocas e não é a ocasião de uma polêmica entre partidos. A questão do controle operário, na verdade, é realmente colocada sob a luz e enfrentada com serenidade, não é o pretexto de uma polêmica anticomunista renovada, mas é o modo efetivo de se lidar com os problemas da renovação e da unidade do movimento de classe. Quem esperava do desenvolvimento do debate uma justificativa ideológica a posteriori para concessões à socialdemocracia, para a fuga do leninismo, já ficou desiludido; e as suas desilusões estão naturalmente destinadas a aumentarem.

Menos positivo, por outro lado, é o método que aparece na resposta do camarada Spriano (ver seu artigo publicado no l’Unitá em 12 de agosto[1]), e torna bastante incerta a lógica do seu discurso: o método de colar no interlocutor qualquer rótulo cômodo e polemizar com esse rótulo e não com a substância do seu discurso.

Os rótulos que, nesse caso, foram colados são diversos e até contraditórios entre si: economicista, anarco-sindicalista, trotskista, liquidacionista, “puramente democrático” (que defende uma abstrata “democracia por si”).

Economicistas? É uma definição que se aplica a todos aqueles que colocam em segundo plano ou fazem até mesmo se dissipar no nada o elemento político, subordinando-o de modo mecânico ao elemento econômico. Os economicistas, sustentando o desenvolvimento automático, mecânico, da sociedade, desvalorizando o elemento subjetivo, ativo, consciente, partem da liquidação do partido de classe para chegar à liquidação da luta de classes (ou vice-versa). Mas o que nós temos a ver com eles, com essa tendência? Somos nós que enfatizamos de maneira particularmente vigorosa, contra as ilusões da “via parlamentar” e do desenvolvimento automático do capitalismo, o próprio elemento político, subjetivo. Não liquidamos, de modo algum, o partido, apenas queremos estender o elemento político para o interior das estruturas produtivas, em suma, politizar a luta do ponto de vista de classe.

Anarco-sindicalistas? Além do fato de que essa é a acusação mobilizada periodicamente contra a ala esquerda (contra Lênin, contra Rosa Luxemburgo) pelos centristas, pelos kautskianos, resta o fato de que pelo menos dois pontos de enorme importância separam nossas teses da dos anarco-sindicalistas. Diferente dos anarco-sindicalistas, nós não queremos liquidar o partido, não subestimamos a importância do elemento estatal, não acreditamos no “milagre” do colapso do capitalismo através da greve revolucionária, mas acreditamos fortemente na continuidade do desenvolvimento histórico ainda que através do salto revolucionário.

Trotskistas ou simpatizantes do trotskismo? Mas temos que lembrar a Spriano o que foi o trotskismo? A menos que por trotskista se entenda “crítico do stalinismo e da degeneração burocrática”, caso em que o primeiro trotskista é o camarada Kruschev e contra ele se voltam todos os dardos da polêmica do camarada Spriano.

Liquidadores do patrimônio recente do movimento operário? Mas em que consiste esse patrimônio? Talvez na busca da “via parlamentar”? Nesse caso, se trataria de uma coisa justa, mas óbvia (o parlamento como um instrumento importante que o movimento operário deve utilizar) ou ilusória (o parlamento como via mestra para o socialismo). Não, o verdadeiro patrimônio recente do movimento de classe é a política unitária como superação das experiências da Segunda e da Terceira Internacionais; é aquilo que, no pensamento de Gramsci, é uma fonte essencial de inspiração e que no PSI é deixado à experiência realizada do camarada Morandi.

“Puramente democráticos”? Defensores da “democracia por si”? Isso seria verdade se nós fizéssemos a mesma confusão que o camarada Spriano entre a democracia direta e a democracia política. “Puramente democrático” seria aquém, por um equívoco monstruoso, visse no controle operário uma garantia democrática geral contra “o perigo embutido no socialismo”; mas, para nós, o controle operário é parte integrante do socialismo, não uma contraponto ao socialismo ou uma instância democrática em abstrato, mas a democracia socialista, sua forma e substância. A reivindicação do controle operário nasce propriamente entre o cascalho das ilusões sobre a “democracia em si”, a democracia formal, a democracia fora do socialismo. A respeito de Lênin, é preciso recordar que esse é o ABC de O Estado e a Revolução.

Caem os rótulos, mas permanece o problema de substância: a da velha e da nova via do movimento operário. É um problema que não se contorna nem com referências fugidias e contraditórias à experiência soviética (que sentido existe em remeter o controle operário a um futuro nebuloso e depois dizer, de maneira ainda mais arbitrária, que isso já foi realizado, ad abundantiam, até mesmo com a autogestão, na URSS?), nem criando um novo mito, um novo fetiche, o do VIII Congresso do PCI. Nós levamos esse Congresso muito a sério, por aquilo de novo e de positivo que ele realmente teve (juízo sobre a URSS, policentrismo, política agrária, via nacional, política unitária, etc.), como também levamos a sério seu contexto internacional (XX Congresso do PCUS). Mas pedimos aos comunistas – e, nesse caso, em especial a Spriano – que façam o mesmo; e leva-lo a sério não quer dizer recorrer a citações rituais de circunstância, mas se referir à substância viva desse acontecimento.

De que maneira, em suma, a nova via se distingue do velha, em que a direção essa mudança foi indicada no XX Congresso do PCUS e, ainda que seja em menor medida, no VIII Congresso do PCI? Talvez a mudança resida em uma mudança de juízo moral sobre as ações de Stalin? Seria uma coisa importante, mas certamente insuficiente, caracterizar, especialmente entre marxistas, a nova via. Talvez essa nova mudança resida em uma distinção que antes não se fazia, e agora se faz, entre leninismo e stalinismo? Essa distinção é importante e essencial, mas existe leninista pior do que aquele que conceba a contribuição dos militantes marxistas como um retorno mecânico ao passado.

Ou talvez – e se fosse assim, a montanha teria realmente dado a luz a um rato – a nova via se esgote no reconhecimento de certos valores contidos na democracia burguesa? Mas se com essa expressão se quer enfatizar que a história dos homens não é uma oposição mitológica entre bem e mal, em absoluto, mas um processo contínuo no qual se afirmam a cada dia novos valores; se com isso se quer dizer que a democracia burguesa é um momento, um período desse processo histórico, isso é verdade, mas uma obviedade, uma vez que uma concepção histórica desse tipo está na base do pensamento marxista, e não se pode falar, em relação a isso, de um “novo” rumo.

A nova via não pode, em todo caso, ser reduzida a uma defesa rígida da democracia burguesa contra uma ameaça fascista, ao ponto de que, em um certo momento, assumindo a ameaça fascista como constante e iminente, a luta pelo socialismo paradoxalmente chega a coincidir com a luta pela democracia burguesa, e a constituição italiana se torna – ao invés de um documento importante a ser implementado – a via mestra para o socialismo. Em suma, seria verdadeiramente absurdo se a nova via devesse ser reduzida a uma apologia da democracia formal (propriamente a “democracia por si”, caro Spriano!), atrás da qual, do ponto de vista socialista, está a famosa “falsidade”, o vazio, a ausência de qualquer perspectiva revolucionária.

E, além disso, o que é a nova via, em que ele se define em relação à velha? Em nossa opinião (mas não apenas em nossa opinião, se os documentos do congresso e os debates desse ano valem alguma coisa) o que marca a nova via são as questões, indissociáveis, da superação da “revolução gerida do alto” e a da “via nacional”: duas questões cujo germe essencial está no pensamento de Marx e no de Lênin, mas que, também por razões objetivas, permaneceram obscuras, deixadas no porão durante a “velha” via.

A superação da revolução “gerida do alto” representa uma adesão maior e plena aos valores dos quais o movimento operário e a revolução socialista são os portadores orgânicos: o primeiro desses valores, pedra de fundação do socialismo, é a emancipação completa dos trabalhadores, o fim de sua alienação. A alienação dos trabalhadores caracteriza um modo determinante na sociedade capitalista dividida em classes; e uma sociedade na qual a coletivização dos meios de produção e de troca tenha sido realizada mas a propriedade coletiva seja gerida do alto está exposta aos perigos do burocratismo e ainda reproduz a hereditariedade negativa do passado, e nela sobrevivem certas formas de alienação, como obstáculo à atualização total do socialismo. Se é verdade que o elemento estatal é indispensável na construção socialista, é igualmente verdadeiro que o progresso rumo ao socialismo, do ponto de vista marxista, é o progresso ruma à autogestão e à extinção do Estado.

O princípio da via nacional está estreitamente ligado à superação da revolução gerida do alto, porque comporta o fim da teoria e da prática do Estado-guia e, em seguida, de toda revolução gerida do exterior. Com a afirmação da via nacional, os partidos operários se libertam da tarefa de uma defesa rígida da URSS e retornam às tarefas revolucionárias no país em que atuam, e isto é particularmente verdadeiro para os partidos dos países ocidentais.

Qualquer um vê que o controle operário – e, nos países em que ele tenha sido conquistado pelo movimento de classes, a gestão direta – é a base desses dois princípios e da nova via; isso qualifica o socialismo como a forma mais plena, verdadeira, de democracia, e deixa nua a hipocrisia da defesa da democracia em abstrato feita pela socialdemocracia.

Se esse é o sentido da nova via, parece hoje que em lugar nenhum se tenda a admitir a sua validade, mas a declarar a sua inatualidade. É clara a contradição (quando não se trata de hipocrisia) que se encontra em um discurso similar: essa realidade que se declara não ser atual é qualificada também como inválida de um ponto de vista político e é mandada para o porão das bobagens ideológicas, ainda que seja para depois fazer a ela uma bela reverência formal.

Estamos convencidos de que a nova via e a sua característica determinante, a partir do controle operário, são, pelo contrário, válidas e bastante atuais. Em primeiro lugar, é preciso confirmar (já o havíamos dito, mas Spriano fica por aí) que tudo o que é estranho à luta pelo socialismo tende a ser estranho à construção socialista: sem as lutas de hoje, pelo controle operário, não haverá amanhã uma sociedade socialista baseada na gestão dos meios de produção. O movimento operário não dá garantias efetivas de democracia, contra o burocratismo, na mistura na qual proclama a sua fidelidade às regras da democracia burguesa, mas, antes, as dá se desde hoje prepara sem falsidade a forma de uma genuína democracia socialista.

Em segundo lugar, a atualidade do controle operário (e da nova via) resulta de uma análise da política da burguesia italiana e de todos os países. Não se deve esquecer que nos últimos anos, enquanto o movimento de classe concentrava a sua luta na arena mais propriamente político-institucional (e não estaria errado se tivesse feito também isso), a burguesia concentrava, pelo contrário, a sua ofensiva na área econômica, particularmente através da política dos monopólios e a ruptura da resistência e da unidade nas fábricas. E parece bastante equivocado pensar que se pode reparar isso apenas redimensionando, justamente como se vem fazendo, a política sindical.

[1] Paolo Spriano, Il controllo operaio, l’Unitá, Roma, 12 de agosto de 1958.

 

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de Scritti 1956-1960. Lampugnani Nigri, 1973.
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Raniero Panzieri – Sete teses sobre a questão do controle operário

[Publicado no Mondo Operaio de 2 de fevereiro de 1958. Assinado por Lucio Libertini e Raniero Panzieri. As teses são apresentadas com a seguinte manchete: “A reivindicação do controle”.]

A reivindicação do controle dos trabalhadores está no centro da “via democrática e pacífica” para o socialismo. As teses seguintes gostariam de fornecer uma indicação primária e provisória para um amplo debate que recolha não apenas as contribuições dos políticos e especialistas, mas também e sobretudo a experiência do movimento operário, que é a única verificação conclusiva da elaboração do pensamento socialista.

  1. Sobre a questão da passagem do capitalismo ao socialismo

 

No movimento operário a questão do modo e do tempo de passagem ao socialismo tem sido discutida há muito tempo e em sucessivos momentos. Uma tendência, que se apresentou sob várias formas, acreditou que poderia esquematizar o tempo desse processo, como se a construção do socialismo devesse ser precedida, sempre e em todos os casos, por uma “fase” de construção da democracia burguesa. Assim, caberia ao proletariado, onde a burguesia não tivesse ainda realizado a sua revolução, a tarefa de conduzir sua luta visando a um fim delimitado: precisamente o de construir ou favorecer a construção dos modos de produção e das formas políticas de uma sociedade burguesa completa. Essa concessão pode ser definida como esquemática porque pretende aplicar abstratamente um modelo pré-fabricado. Se de fato é verdade que a realidade das instituições políticas corresponde, em cada época, à realidade econômica, no entanto é um erro acreditar que a realidade econômica (forças produtivas e modo de produção) se desenvolve segundo uma linha sempre gradual, regular, perfeitamente previsível já que dividida em fases sucessivas, uma distinta da outra. É suficiente, para compreender a natureza desse erro, refletir sobre alguns exemplos históricos. Quando, no início do século passado, o progresso técnico (invenção da tecelagem mecânica e da máquina a vapor) determinou um salto de qualidade na produção (revolução industrial), continuaram em vigor, no entanto, juntamente com as novas, as antigas formas de produção; nos países economicamente mais evoluídos, a luta política tinha um caráter ainda mais complexo. Por um lado, havia a resistência das sobrevivências feudais, do outro a afirmação da burguesia industrial; e, enfim, ao mesmo tempo, a aparição de uma nova classe, o proletariado industrial. Na Rússia, ao fim da primeira onda revolucionária (fevereiro de 1917), depois do colapso da autocracia czarista e do monstruoso sistema capitalista-feudal, uma parte do movimento operário marxista, caindo no de que falamos, sustentou que o proletariado russo deveria se aliar à burguesia para realizar a “segunda etapa” (democracia burguesa) necessária para a revolução. Como se sabe, essa tese foi derrotara por Lênin e pela maioria do movimento operário russo; no colapso total do velho sistema, o único protagonista efetivo continuava sendo o proletariado, e o seu problema não era, portanto, o de criar as instituições típicas da burguesia, mas o de construir as instituições da sua democracia, da democracia socialista. Na China, entre 1924 e 1928, dominavam o partido comunista aqueles que erroneamente queriam comprometer o movimento de classe a apoiar incondicionalmente o Kuomintang de Chiang Kai-Shek, o ajudando a realizar, depois do colapso da dinastia Manchú e do sistema feudal, a “segunda etapa” (democracia burguesa): eles não levaram em conta a inexistência de uma burguesia chinesa capaz de se colocar como classe “nacional” e o fato de que as imensas massas camponesas do país só podiam lutar pela causa de sua própria emancipação, e não para buscar esquemas abstratos e incompreensíveis.

Essas considerações não conduzem absolutamente a exaltar um voluntarismo revolucionário intelectualista (o que é afirmar que a revolução possa ser o fruto de um ato da vontade ou de um grupo de vanguarda), mas apenas a colocar em foco como, antes de tudo, cada força política, ao invés de seguir um modelo pré-fabricado, deve ter consciência da realidade, sempre complexa e específica, no âmbito da qual ela se move. É a socialdemocracia, em todas as suas formas, que para acobertar seu oportunismo e justifica-lo ideologicamente, confunde sistematicamente as cartas na mesa e reduz todas as posições consequentes da esquerda revolucionária a um intelectualismo voluntarista. A substância histórica da experiência socialdemocrata consiste, de resto, propriamente nisso: atribuir, como o pretexto de uma luta contra o maximalismo, ao proletariado a tarefa de apoiar a burguesia ou mesmo a de substituí-la nessa construção da democracia burguesa; e isso feito, ela nega as tarefas e a autonomia revolucionária do proletariado e acaba por atribuir a ele um papel de força subalterna.

Na sociedade italiana moderna, o dado fundamental é constituído pelo fato de que a burguesia não tem sido, não é, não pode ser uma classe “nacional”; uma classe capaz, ela mesma (como aconteceu na Inglaterra e na França), de assegurar, ainda que por um certo período de tempo, o desenvolvimento da sociedade nacional em seu conjunto. A burguesia italiana nasceu baseada no corporativismo e no parasitismo, isto é: 1) através da formação de setores industriais isolados que não construíram para si mesmos um mercado nacional, mas viveram do aproveitamento de um mercado de tipo quase colonial; 2) mediante o recurso permanente à proteção e ao apoio ativo do Estado; 3) com alianças com os restos do feudalismo (bloco agrário do sul). O fascismo foi a expressão desesperada desse equilíbrio contraditório e do domínio, nessa forma, da burguesia; e isso ainda que através de intervenções massivas do Estado totalitário em favor das indústrias privadas em falência (IRI), favoreceu ao máximo a transformação de determinados setores industriais em potências de estrutura monopolista (FIAT, Montecatini, Edison, etc.). Depois do colapso do fascismo os monopólios encontraram, na intensificação das relações com a grande indústria americana e na subordinação a ela, a continuação de sua velha política antinacional (as grandes indústrias italianas são todas, de uma maneira ou de outra, cartelizadas com os grandes monopólios internacionais; um dos casos em que estes laços com maior evidência foi quando FIAT, Edison e Montecatini apoiaram na Itália a campanha do carte internacional do petróleo; e, em geral, o atlantismo dos partidos de centro-direita é a expressão das relações de subordinação que indicamos. Antes que pelos partidos políticos, o plano Marshall, expressão do imperialismo americano, foi aceito pelos monopólios italianos). Assim, foi determinada uma situação na qual ao lado das áreas monopolistas coexistiam grandes áreas de profunda depressão e atraso (muitas zonas de montanha e de colinas, o delta de Pádua, e, mais geralmente, a região central e as ilhas); cresceram enormemente as distância entre as classes sociais e entre as regiões; aumentaram os desequilíbrios tradicionais da produção industrial; cresceram os estrangulamentos monopolistas (as limitações e distorções, isto é, o poder e a política dos monopólios de opunham a um desenvolvimento das forças produtivas pleno e equilibrado); foi registrado um desemprego em massa que se tornou um elemento permanente da nossa economia; se reproduziram e agravaram as termos tradicionais do maior problema de nossa estrutura econômico-social (questão meridional).

E, no entanto, seria um erro grave reconhecer a existência desses dados de fato para esconder, como tem sido nesse ano, os elementos novos. Não há dúvidas de que, a partir sobretudo de 1951-52, em setor nenhum o capitalismo italiano pôde aproveitar a conjuntura internacional favorável e o progresso tecnológico considerável: houve, assim, uma fase de expansão (rápido aumento da produção, aumento do crédito, rápida acumulação do capital e incremento intenso do capital fixo) que, no entanto, ocorrendo sob o controle dos monopólios, permaneceu restrita às suas regiões, e inclusive provocou o agravamento dos desequilíbrios fundamentais da economia italiana.

A situação contraditória, dominante nas grandes regiões de depressão e crise que descrevemos, está destinada a não melhorar e se agravar, seja por uma inversão da conjuntura internacional, seja por um provável aumento do desemprego tecnológico, seja pelos efeitos negativos do MEC, seja, enfim, porque as características do mercado interno italiano (a sua restrição e a sua pobreza) não fornecerão uma zona de escoamento adequada para a capacidade produtiva e tecnológica consolidada, e que vai cada vez mais se consolidando nas regiões monopolísticas.

Uma análise desse tipo não visa a e não serve para, naturalmente, validar a perspectiva de uma crise “catastrófica” do capitalismo; e, de resto, uma polêmica no terreno da profecia, nesses termos, só serviria para paralisar e esterilizar a ação do movimento de classe. Apenas com essa análise se chega à conclusão da existência de certas condições reais e ao reconhecimento da tendência do desenvolvimento implicada nelas, e à conclusão de que é no âmbito dessas condições de dessa tendência que o movimento operário deve agir.

À luz dessas considerações, se mostra, portanto, como completamente abstrata e irreal (especificamente hoje na Itália) a tese segundo a qual: a) o movimento de classe deveria, substancialmente, se limitar a dar seu apoio à classe capitalista (ou a grupos burgueses determinados) na construção de um regime de democracia burguesa completa; b) o movimento de classe deveria, substancialmente, substituir a classe capitalista e assumir por sua própria conta a construção de um regime de democracia burguesa completa.

Inversamente, as contradições que atravessam hoje a sociedade italiana, o peso que os monopólios tem assumido e tendem cada vez mais a assumir, a contradição entre o desenvolvimento tecnológico e as relações capitalistas de produção, a fraqueza da burguesia como classe nacional, conduziram o movimento operário a confrontar juntas tarefas de natureza distinta; a lutar ao mesmo tempo por reformas que tem um conteúdo burguês e por reformas que tem um conteúdo socialista. No plano político, isso significa que a força dirigente do desenvolvimento democrático na Itália é a classe operária e sob a sua direção é possível realizar o único sistema de alianças eficientes com os intelectuais, os camponeses e com os grupos da pequena e média produção burguesa. É esse o sistema de alianças e o tipo de direção que correspondem às perspectivas reais.

  1. A via democrática para o socialismo é a via da democracia socialista

Afirmar que a via italiana para o socialismo, democrática e pacífica, coincida como uma via “parlamentar” para o socialismo é uma dedução falsa, que decorre de uma análise errada da situação italiana e de uma interpretação simplista da reviravolta registrada com a tese proclamada pelo XX Congresso do PCUS. Na verdade, a afirmação do caráter democrático da via ao socialismo é justa, no sentido de que devem ser recusadas todas as velhas concepções segundo as quais a passagem ao socialismo é um ato de violência revolucionária, obra de uma minoria isolada, sem que as condições políticas e econômicas estejam maduras; assim como deve ser rejeitada a concessão que entrega a passagem ao socialismo a uma realização automática da “catástrofe” do capitalismo. Mas não se pode reduzir a via democrática a uma via sempre e necessariamente pacífica, desde o momento em que quando em um país determinado as condições para o socialismo estiverem maduras e a sua força tiver conquistado o apoio da maioria mas, no entanto, a resistência da classe capitalista e seu recurso à violência possam conduzir ao conflito armado e à necessidade da violência proletária.

Há hoje na Itália, porém, uma perspectiva democrática e pacífica para o socialismo. Mas que identifica o instrumento exclusivo (ou ainda o único substancial ou essencial) da passagem pacífica para o socialismo no parlamento, e esvazia a própria indicação da via democrática e pacífica de qualquer consistência real. São ressuscitadas, assim, as antigas mistificações burguesas, que apresentam o Estado representativo burguês não, tal qual ele é, como um Estado de classe, mas como um Estado acima das classes, onde o parlamento é o centro em que se ratificam e se registram as relações de forças entre as classes, que se determinam e se desenvolvem no exterior dele, enquanto a economia permanece na esfera na qual se produzem as relações reais e o centro real da fonte do poder.

Justamente, ao invés de afirmar que a utilização também das instituições parlamentares é uma das tarefas mais importantes que se colocam ao movimento de classe e que essas mesmas instituições poderão ser transformadas (pela pressão exercida desde baixo do movimento operário e suas novas instituições) de centro representativo de direitos meramente políticos, formais, em expressão de direitos substanciais, políticos e econômicos ao mesmo tempo.

  1. O proletariado educa a si mesmo construindo as suas instituições

 

Quando se define, em geral, como democrática a via para o socialismo, e se quer garantir ao máximo a perspectiva da passagem pacífica, se afirma consequente e substancialmente o seguinte conceito: que há continuidade entre o método da luta política principal durante e depois do salto revolucionário, e que consequentemente as instituições do poder operário não devem ser formadas depois do salto revolucionário, mas no próprio processo de toda a luta do movimento operário pelo poder. Essas instituições devem surgir na esfera econômica, ali onde está a fonte real do poder, e representar, portanto, o homem não apenas como cidadão, mas também como produtor, e os direitos que forem determinados nessas instituições devem ser direitos simultaneamente políticos e econômicos. A força real do movimento de classe se mede pela quantidade de poder e pela capacidade de exercer uma força dirigente no interior da estrutura produtiva. A distância que separa as instituições da democracia burguesa das instituições da democracia operária é qualitativamente a mesma que separa a sociedade burguesa dividida em classes da sociedade socialista sem classes. Deve ser rejeitada, portanto, a concessão de uma derivação iluminista ingênua, que quer “adestrar” genericamente o proletariado para o poder prescindindo da construção concreta de suas instituições. Se fala também da “preparação subjetiva” do proletariado, da “educação” do proletariado (e a quem caberia o papel de “educador”?); mas todos sabem que só se aprende a nadar quando se entra na água (e, portanto, especialmente, é sugerível que o próprio “educador” iluminado comece por se jogar na água).

Certamente, essas coisas não são novas. São a experiência histórica do movimento operário e do marxismo, dos sovietes de 1917, do movimento dos conselhos de fábrica em Turim, dos conselhos operários polacos e iugoslavos, aos progressos necessários nas teses do XX Congresso, que vão tomando corpo diante dos nossos olhos. Deveria ser ainda mais supérfluo recordar que no Partido Socialista que o próprio forneceu sobre este tema, nos últimos anos, muitas contribuições originais a todo o movimento operário italiano.

  1. Sobre as condições atuais do controle operário

 

Hoje, a reivindicação do controle dos trabalhadores (operários e técnicos) não se coloca unicamente em relação com os motivos que foram expostos, mas se liga a uma série de novas condições que tornam essa reivindicação especialmente atual e a colocam no centro no movimento de classe:

  1. a primeira dessas condições consiste no desenvolvimento da fábrica moderna. Nesse terreno, nascem a prática e a ideologia do monopólio contemporâneo (relações humanas, organização científica do trabalho, etc.) que visam sujeitar de modo integral – corpo e alma – o trabalhador a um padrão, reduzindo-o a uma pequena roda das engrenagens de uma grande máquina que, no seu complexo total, permanece desconhecida. O único modo de romper esse processo de assujeitamento total da personalidade do trabalhador é, da parte do próprio trabalhador, tomar consciência de qual é a situação em seus temos corporativos-produtivos; e contrapor à “democracia corporativa” a reivindicação de um papel consciente do trabalhador no complexo corporativo, a reivindicação da democracia operária;
  2. se os órgãos do poder político no Estado burguês sempre foram “comitês de negócios” da classe capitalista, hoje assistimos, contudo, a uma compenetração ainda maior do que no passado entre o Estado e os monopólios: seja porque o monopólio, seguindo sua lógica interna, é levado a assumir cada vez mais um controle direto, seja porque as operações econômicas do monopólio (e agora já caíram todas as ilusões liberais sobre isso) exigem de maneira crescente a ajuda e a intervenção amigável do Estado. Simplesmente porque, então, a potência da economia aumenta as suas funções políticas imediatas (e por trás da ficção do Estado de direito, aumentaram as funções reais e diretas do Estado de classe), o movimento operário, tomando as lições do adversário, deve deslocar cada vez mais o centro da luta para o terreno do poder real e fundamental. E, por esse mesmo motivo, a luta do movimento de classe pelo controle não pode se esgotar apenas no âmbito de uma companhia, mas deve ser ligada e estendida a todos os setores, em todas as frentes produtivas. Conceber o controle dos trabalhadores como algo que é restrito a uma única companhia não quer dizer apenas “limitar” a reivindicação do controle, mas esvaziá-la de seu sentido real e fazer com que ela degenere em um plano corporativo;
  3. há finalmente uma última condição nova que está na raiz da reivindicação do controle dos trabalhadores. O desenvolvimento do capitalismo moderno, de um lado, e, de outro, o desenvolvimento das forças socialistas no mundo e a importante problemática do poder, que se impôs fortemente aos países nos quais o movimento de classe já fez a sua revolução, indicam a importância que hoje assume a defesa e a garantia da autonomia revolucionária do proletariado, seja contra as novas formas do reformismo, seja contra a burocratização do poder, isto é, contra a subordinação reformista e contra as concessões do “guia” (partido-guia, Estado-guia).

Nessa situação, a defesa da autonomia revolucionária do proletariado se concretiza na criação desde baixo, antes de depois da conquista do poder, de instituições da democracia socialista, e na restituição do partido a sua função de instrumento da formação política do movimento de classe (instrumento, ou seja, não uma orientação paternalista do alto, mas de solicitação e apoio das organizações nas quais se articula a unidade de classe). O próprio valor da autonomia do partido socialista na Itália está essencialmente nisso: não, com certeza, no quanto ele antecipa ou prenuncia a divisão do movimento de classe, não por opor um “guia” a outro “guia”, mas na garantia de todo o movimento operário contra qualquer direção externa, burocrática e paternalista.

Afirmar isso certamente não quer dizer que se esquece a questão do poder, condição essencial para a construção do socialismo: mas a natureza socialista do poder é precisamente determinada pelas bases da democracia operária sobre as quais ele se sustenta, e que não podem ser improvisadas no dia seguinte ao “salto” revolucionário nas relações de produção. Esse é o único modo sério, não reformista, de recusar a perspectiva do socialismo burocrático (stalinismo).

  1. O sentido da unidade da classe e a questão da ligação entre a luta parlamentar e os fins gerais

A reivindicação do controle dos trabalhadores, os problemas que ela levanta, a formulação teórica para essa conexão, implicam necessariamente a unidade das massas e a recusa de toda concepção partidária rígida que reduziria a tese do controle a uma paródia mesquinha. Não há controle dos trabalhadores sem a unidade na ação de todos os trabalhadores de uma mesma companhia, de um mesmo setor, de toda a frente produtiva: uma unidade não mitológica, ou um simples enfeite na propaganda de um partido, mas que seja uma realidade que se implemente desde baixo, uma tomada de consciência das suas funções no processo produtivo de parte dos trabalhadores, a criação conjunta de instituições unitárias de um novo poder. Deve, portanto, ser recusada, nesses limites, a redução da luta dos trabalhadores a um puro instrumento de reforço de um partido ou da sua estratégia mais ou menos clandestina. A questão, longamente discutida, de como se vinculam e se harmonizam as reivindicações parciais, imediatas, com fins gerais, é resolvida precisamente afirmando a continuidade das lutas e de sua natureza. Com efeito, essa vinculação e essa harmonização são impossíveis e são uma confusão ideológica enquanto permanecer a ideia de que há um reino do socialismo, mistério que não pode ser conhecido no momento, mas que aparecerá um dia como um amanhecer milagroso para coroar o sonho do homem. O ideal do socialismo é, isso sim, um ideal que contrasta profundamente e sem possibilidade de conciliação com a sociedade capitalista, mas é um ideal que é preciso fazer viver dia após dia, conquistar hora por hora na luta; que nasce e se desenvolve na mistura na qual cada luta serve para fazer amadurecer e avançar as instituições nascidas desde baixo, cuja natureza seja imediatamente já a afirmação do socialismo.

  1. O movimento de classe e o desenvolvimento econômico

 

Uma concepção que seja fundada no controle operária e na unidade na luta das massas leva consigo a recusa de toda atitude ou tendência que assuma uma perspectiva catastrófica (colapso automático do capitalismo) e a adesão plena e incondicionada ao uma política de desenvolvimento econômico. Mas essa política de desenvolvimento econômico não é uma adaptação ou uma retificação da via capitalista, nem consiste em uma programação abstrata que venha elaborada do Estado burguês; ela se realiza na luta de massas e se concretiza na medida em que rompe as estruturas capitalistas, e com isso assume logo um novo impulso. Quando afirmamos, nesse sentido, que a luta do proletariado serve para conquistar dia após dia graus de poder, não queremos dizer, certamente, que o proletariado conquista dia após dia uma porção poder burguês (ou da coparticipação no poder burguês), mas que de dia a dia ele contrapõe ao poder burguês a exigência, a afirmação e a forma de um novo poder que venha diretamente, e sem delegação, desde baixo.

A classe operária, através da luta pelo controle, como que se torna o sujeito ativo de uma nova política econômica, assume com ele a responsabilidade de um desenvolvimento econômico equilibrado, de modo a deter o poder dos monopólios e as suas consequências: o desequilíbrio entre regiões, entre classes e entre setores. Por isso, do mesmo mofo, derrubando as atuais funções da empresa pública, a transforma de um elemento de sustentação e proteção dos monopólios em instrumento direto da industrialização da região central e das regiões empobrecidas. Na prática, isso faz da política de desenvolvimento econômico um elemento de confronto duro com os monopólios; confronto que se apresentará antes de tudo como conflito entre o setor público (aliado com as pequenas e médias empresas) e o setor da grande empresa privada. Vale também enfatizar que o movimento de classe, levando adiante um processo adequado e equilibrado de industrialização, não se “substitui” ao capitalismo, não “cumpre as suas tarefas”, mas une o desenvolvimento econômico a uma transformação paralela das relações de produção; porque, hoje na Itália, são exatamente essas velhas relações capitalistas de produção que são o obstáculo inconciliável de uma política de desenvolvimento econômico. Quem confunde industrialização (aumento da acumulação) com expansão do capitalismo (economia do lucro) não apenas comete um erro teórico, mas não chega a compreender a realidade italiana nos seus termos mais evidentes.

Uma política de desenvolvimento econômico confiada ao controle dos trabalhadores garante plenamente o desenvolvimento técnico, não apenas elimina a separação prática entre ele e os trabalhadores, mas faz dos trabalhadores os seus defensores e portadores mais diretos, realizando, finalmente, a convergência, no plano da luta, entre operários e técnicos.

  1. A forma do controle dos trabalhadores

A reivindicação do controle por parte dos trabalhadores é naturalmente unitária, e nasce e se desenvolve no plano da luta. Na situação concreta da luta de classes no nosso país, o controle não se coloca como uma reivindicação genérica, programática, e menos ainda como uma exigência de formulação legislativa da parte do parlamento: posições e fórmulas desse tipo só poderão desnaturar por si sós o problema do controle, reduzindo-o essencialmente a uma forma tácita ou aberta de colaboracionismo, ou remetendo-o à forma de uma paternalismo parlamentar deletério. Com isso, não queremos certamente dizer que deva ser excluída uma formulação legislativa em relação ao controle operário, mas que essa não pode ser construída paternalisticamente de cima, nem conquistada apenas mediante a uma luta genérica de tipo parlamentar; nesse campo, o parlamento pode apenas registrar, refletir, o resultado de uma luta que se desenrola na esfera econômica (que é essencialmente feita pela classe operária). A questão do controle avança na composição na qual os trabalhadores, no interior da estrutura produtiva, tomam consciência de sua necessidade e da realidade produtiva lutando por isso. É claro, também, pelo que já foi dito que não há diferença nessa questão entre companhias estatais e companhias privadas: a reivindicação do controle se coloca em ambos os setores no próprio plano da luta.

Por outro lado, a reivindicação do controle não é uma retomada romântica do passado, que não se repete nunca da mesma maneira, nem pode se confundir com as funções reivindicativas de determinados órgãos sindicais (que não podem se confundir com uma ampliação do poder nas comissões internas); e esse último ponto é verdadeiro ainda que os operários, em muitos lugares, deem essa forma à exigência do controle, porque as comissões internas permaneceram o símbolo da luta operária real nos locais de trabalho.

Deve ser recusada qualquer antecipação utopista, ao mesmo tempo em que deve ser enfatizado que as formas do controle não devem ser determinadas por um comitê de “especialistas”, mas surge sobretudo da experiência concreta dos trabalhadores. Nesse sentido, devemos lembrar de três indicações que vêm de certos setores operários. A primeira delas diz respeito à conferência de produção como uma forma concreta pela qual se pode iniciar o movimento pelo controle. A segunda se refere, por outro lado, à exigência de que a questão do controle seja colocada no centro da luta generalizada pela conquista do poder contratual e da liberdade dos operários na fábrica, e, também, por exemplo, que ela se concretize em comissões eletivas que controlem os empregos e impeçam as discriminações. A terceira, enquanto enfatiza a exigência de ligação entre as várias companhias, coloca o problema da participação da representação democrática territorial na elaboração dos programas produtivos.

Essas são indicações bastante úteis, já resultantes da experiências das bases, às quais certamente se juntarão outras: cada uma dessas vai ser posteriormente discutida e aprofundada, tendo em mente que o campo e aplicação e de estudo é, antes de tudo, a fábrica, e o melhor banco de provas é a luta unificada.

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de Scritti 1956-1960. Lampugnani Nigri, 1973.
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George Caffentzis – O fim do trabalho ou o renascimento da escravidão? Uma crítica de Rifkin e Negri

 Introdução

 

Nos últimos anos surgiu uma discussão sobre o trabalho nos Estados Unidos, semi-remanescente de meados dos anos 1970, mas com várias sofisticações. No período anterior, livros como Para onde foram todos os robôs?, Falsas promessas e Trabalho na América, e frases como “blues do colarinho azul”, “zero-trabalho” e “recusa do trabalho” revelaram uma crise do trabalhador de linha de montagem que se expressou de maneira mais dramática nas greves selvagens das fábricas de automóveis nos EUA em 1973 e 1974[1]. Essas greves queriam negar a correlação entre salários e produtividade que havia sido a base do “acordo” que o capital automobilístico havia feito com os sindicatos na década de 1940. Como Peter Linebaugh e Bruno Ramirez escreveram sobre a fábrica de caminhões da Dodge, envolvendo 6 mil trabalhadores em Warren, Michigan, em 10-14 de junho de 1974: “As exigências só foram formuladas no terceiro dia de greve. Elas pediam por ‘tudo’. Um trabalhador disso ‘eu simplesmente não quero trabalhar’. A separação entre renda e produtividade, reforçada pela luta, não poderia ter sido mais clara”[2].

Mas essa clareza foi respondida com uma clareza ainda maior pela campanha de dez anos dos capitalistas do setor automobilístico para retomar o controle sobre o processo de trabalho e a linhas de montagem, para se salvarem. “Cinturão da ferrugem” e “fábrica de fuga” se tornaram as frases da imprensa de negócios ao descrever a produção fabril, automobilística ou de outros tipos, nos anos 1980; essas frases se desenvolveram quase que naturalmente em “globalização” e “robotização” nos anos 1990. O resultado inédito dessa campanha foi que os salários semanais “reais” de tempo integral na indústria dos EUA caíram quase 20%, enquanto o tempo de trabalho, na realidade, aumentou. Mas no meio dos anos 1990, livros como O fim do trabalho, O trabalho de Dioniso e O futuro sem emprego, e frases como “enxugamento” e “deslocamento dos trabalhadores” reviveram temas associados com a crise do trabalho no momento em que a relação de poder entre trabalhadores e o capital é o inverso do que era nos anos 1970[3]. Enquanto nos anos 70 os trabalhadores estavam recusando o trabalho, nos anos 90 os capitalistas presumidamente estão recusando trabalhadores! Esses livros e frases são ilusórios em dizer que “a mudança tecnológica baseada na ciência em uma internacionalização aguda da produção significa que existem muitos trabalhadores para muito poucos empregos, e menos ainda são bem pagos”[4], ou que “inovações tecnológicas e forças dirigidas pelo mercado (…) estão nos colocando nos limites de um mundo praticamente sem trabalho”[5], ou, mais ainda, que a “lei do valor-trabalho, que tentava dar sentido à nossa história em nome da centralidade do trabalho proletário e sua redução quantitativa junto ao desenvolvimento capitalista, está completamente falida”[6].

 

Empregos e a multiplicidade do trabalho

            Um “futuro sem empregos” e um “mundo sem trabalhadores” são as frases chave dessa literatura, mas antes que possamos analisar o peso dessas frases para o presente e o futuro próximo, vale a pena refletir por um minuto sobre as noções de emprego e trabalho que elas implicam. “Emprego” é a mais fácil das duas.  Ela tem um passado etimológico bastante desagradável. Nos séculos XVII e XVIII na Inglaterra (e mesmo hoje), “emprego”[7], como um verbo, sugeria enganar e trapacear, enquanto como substantivo envolvia o tom do mundo dos pequenos crimes e golpes. Nesse contexto, um “futuro sem empregos” seria uma vitória para a humanidade. Mas em meados do século XX, “emprego” passou a palavra principal usada no inglês americano para se referir a uma unidade formal de ocupação assalariada, algumas sendo fixas, acordada contratualmente quanto à sua duração. Ter um emprego no porto era significativamente diferente de trabalhar no porto, já que alguém poderia trabalhar em algum lugar sem ter um emprego ali. O emprego, portanto, saiu do submundo da economia política e se tornou seu cálice sagrado.

O poder místico da apalavra “emprego” não vem da sua associação com o trabalho, no entanto. De fato, “ter um emprego”[8] era uma frase que descrevia uma maneira “desonesta” de recusar o trabalho e ter renda. “Empregos, empregos, empregos” se tornou a palavra de ordem dos políticos nos EUA do fim do século XX porque “emprego” enfatizava o salário e outros aspectos contratuais do trabalho no capitalismo cruciais para a sobrevivência física e mental do eleitorado. Daí que um “futuro sem empregos” seria um inferno para uma humanidade capitalista, já que isso implicaria em um futuro sem salários e contratos entre trabalhadores e capitalistas. Embora sua importância não possa ser confundida, o emprego marca, em geral de maneira muito convencional e mesmo com dessemelhança, uma parte do processo de trabalho, mas não existe uma correlação de um para um entre empregos e trabalho. O mesmo processo de trabalho poder ser dividido em um, dois ou muitos empregos. Consequentemente, o “trabalho” e o seu parente semântico aparente “emprego” parecem ter um direito maior de existirem. Assim, o “fim do trabalho” denota uma transformação mais radical do que um “futuro sem empregos”, porque existiram muitos períodos na história humana em que as sociedades eram “sem emprego” – p.ex. sociedades escravistas e sociedades camponesas de produção para a subsistência –, mas nenhuma delas, com exceção do Éden, era sem trabalho.

Antes que se possa falar do fim do trabalho, no entanto, deveríamos reconhecer que houve uma revolução conceitual na última geração política a respeito do sentido do trabalho. Por um grande período de tempo, talvez coincidente com a formação dos regimes de negociação coletiva nos anos 1930 e seu colapso por volta de 1970, “trabalho” era sinônimo de “emprego”, i.e. trabalho formal assalariado. Mas desde então, uma grande multiplicidade de trabalhos foi descoberta[9]. Essa multiplicidade inclui o trabalho informal “fora dos registros”, que tem um salário mas não poderia ser oficialmente considerado como contratual, porque viola os códigos legais e tributos. Essa dimensão da multiplicidade toca a grande região da atividade puramente criminosa que em muitos países e bairros rivaliza em quantidade e valor com a atividade total relacionada a empregos formais. Ainda mais importante foi a “descoberta” feminista do trabalho doméstico em todas as suas modalidades, que é crucial para a reprodução social (p.ex. a sexualidade, a reprodução biológica, o cuidado das crianças, a enculturação, a energia terapêutica, a agricultura de subsistência, a caça e a coleta, a produção anti-entrópica). O trabalho doméstico é o grande Outro nas sociedades capitalistas, porque ele continua persistentemente não-assalariado e não é reconhecido na maior parte das vezes nas estatísticas nacionais, ainda que seja cada vez mais reconhecido como crucial para o desenvolvimento capitalista. Enfim, existe o nível originário do inferno capitalista que reúne todo o trabalho forçado da dita era “pós-escravidão”: trabalho prisional, trabalho militar, “trabalho sexual”, trabalho semi-escravo, trabalho infantil. Sintetizando todas essas formas de trabalho, somos forçados a reconhecer uma multiplicidade de investimentos energéticos, auto-reflexiva e interseccional, que é muito maior do que o “mundo do trabalho formal” em termos de valor, espaço e tempo. Essa grande presença crescente, assim como a multiplicidade inversa de sua recusa, transformou a compreensão do trabalho profundamente, ainda que muitos pareçam não ter notado. Ela certamente coloca em questão as distinções desinteressantes entre trabalho e labor (Arendt), entre biopoder e capitalismo (Foucault) e entre trabalho e ação comunicativa (Habermas), ao mesmo tempo em que leva a uma expansão impressionante da análise de classe e a um enriquecimento da teoria revolucionária para além da problemática do planejamento para o sistema de indústrias do futuro. Mais importante ainda para a nossa discussão, a multiplicidade do trabalho problematiza a discussão do trabalho e de seu suposto fim nas mãos da mudança tecnológica.

 

O fim do trabalho

            Infelizmente, a noção de trabalho usada na literatura do “fim do trabalho” é, normalmente, antediluviana e se esquece do sentido capitalista do trabalho. Isso é o que se vê mais claramente no argumento central de Rifkin, em O fim do trabalho. Ele estava ansioso para contra argumentar todos os que dizem que a nova revolução tecnológica, com a aplicação da engenharia genética na agricultura, da robotização na indústria, e da informatização da indústria de serviços levarão a nodas oportunidade de emprego se houver uma força de trabalho bem treinada e disponível para responder aos desafios da “era da informação”. A sua refutação é simples.

No passado, quando uma revolução tecnológica ameaçava a perda massiva de empregos em um setor econômico, surgia um novo setor para absorver o mais-valor. No início do século, o incipiente setor industrial conseguiu absorver muitos milhões de trabalhadores rurais e camponeses que foram deslocados pela rápida mecanização da agricultura. Entre meados dos anos 1950 e o início dos anos 1980, o crescente setor de serviços conseguiu reempregar muitos dos trabalhadores de colarinho azul deslocados pela automação. Hoje, no entanto, todos esses setores são vítimas de uma rápida reestruturação e da automação, nenhum setor “significativo” foi desenvolvido para absorver os milhões que estão sendo dispensados.[10]

 

Consequentemente, haverá um imenso problema de desemprego quando o último trabalhador de serviços for substituído pelo último caixa eletrônico, máquina virtual de escritório ou aplicação avançada desconhecida de tecnologia computacional. Aonde ele/ela encontrará um emprego? Não há retorno para a agricultura ou para a manufatura e nenhum futuro para um novo setor de serviços. Rifkin aplica esse cenário a um contexto global e não prevê milhões de pessoas desempregadas no planeta em um futuro próximo, mas bilhões.

A lógica formal do argumento parece impecável, mas suas premissas empíricas e pressupostos teóricos estão corretos? Eu penso que não, já que o determinismo tecnológico de Rifkin não leva em conta as dinâmicas do emprego e da mudança tecnológica nos tempos capitalistas. Comecemos com um problema categoria na teoria do nível de emprego de Rifkin. Ele usa acriticamente termos como “agricultura”, “indústria” e “serviços” para diferenciar os três níveis de desenvolvimento da economia capitalista como indicado na passagem citada acima e em muitas outras partes de O fim do trabalho. Não se pode culpar Rifkin por fazer uma escolhe incomum aqui, já que grandes agências estratégias como o Centro de Estatísticas do Trabalho dos EUA também usam essas categorias para separar emprego, produção e produtividade nas últimas décadas. As metáforas centrais que ajudaram a construir essa tricotomia estão fundadas na distinção entre bens materiais (produzidos dentro ou fora de uma fazenda) e serviços imateriais, e na distinção espacial entre fazenda, fábrica e todos os outros lugares (escritório, escola, loja, armazém, estrada, etc.). Essa tricotomia permite uma tipologia grosseira e imediata, com a “indústria de serviços” geralmente funcionando como uma categoria padrão mais ou menos confusa.

Mas uma coisa é usar uma categoria ex post facto, e outra é usar uma categoria de uma maneira projetiva (seja no passado, seja no futuro). O esquema meio hegeliano de Rifkin vê a mudança tecnológica como o movimento autônomo do espírito que transforma uma etapa em outra, até que chega a um fim catastrófico na atual etapa de “serviços” da história. Ainda assim, quando observamos as sociedades capitalistas do passado, essa série bem definida é muito pouco precisa. Por exemplo, a Inglaterra dos séculos XVII e XVIII era agrícola? A “indústria de serviços” na forma de servos domésticos nas grandes propriedades agrárias na época era bastante substancial, mas esses servos frequentemente trabalhavam como artesãos (manufatura) ou como mão de obra para plantações (agricultura). Além disso, com o surgimento da indústria doméstica, trabalhadores agrários ou pequenos camponeses também duplicaram ou triplicaram como trabalhadores industriais no campo. Enfim, através da história do capitalismo, encontramos uma troca complexa dos trabalhadores entre essas categorias. Ao invés de uma movimentação simples da agricultura à indústria, e da indústria aos serviços, descobrimos seis transições possíveis entre essas categorias.

A vasta literatura sobre o “desenvolvimento do subdesenvolvimento” e sobre muitos dos períodos da “desindustrialização” capitalista ilustra muitas dessas transições, que são claramente causadas não por algum espírito tecnológico autônomo, mas por lutas de classes concretas e variáveis e relações de poder. Uma máquina introduzida por capitalistas para enfraquecer o poder dos trabalhadores industriais pode fazer com que esses trabalhadores percam seu emprego e se tornem “trabalhadores de serviços” ou “trabalhadores agrários” de acordo como uma conjuntura complexa de forças e possibilidades. Não há evidência em toda a história do capitalismo de que exista apenas uma transição linear que termina no mais recente trabalhador de serviços.

O esquema de Rifkin é ainda mais enfraquecido se examinarmos sua projeção futura. Depois de observar a grande variedade de aplicações da tecnologia computacional na indústria de serviços (do reconhecimento por voz, aos sistemas especializados, aos sintetizadores digitais), Rifkin conclui de modo ameaçador: “No futuro, máquinas computadorizadas paralelas avançadas, robótica de alta-tecnologia e redes eletrônicas integradas cobrindo todo o planeta vão subsumir cada vez mais os processos econômicos, deixando cada vez menos espaço para o uso direto da participação humana em fazer, mover, vender e prestar serviços”[11]. Mas aqui, a própria função inadequada da categoria de serviços faz sua projeção ao futuro ser problemática para Rifkin, já que ela não permanece em um único espaço lógico para que possa ser reduzida ao grau zero pela mudança tecnológica. Consideremos uma das definições padrão do que constitui um trabalho de serviços: a modificação ou de um ser humano (dar um corte de cabelo ou uma massagem) ou de um objeto (consertar um carro ou um computador). Como é possível que possamos projetar uma categoria desse tipo no futuro? Uma vez que não existem limitações para o tipo de modificação em questão, não existe maneira nenhuma de que alguém possa dizer que “máquinas computadorizadas paralelas avançadas, robótica de alta-tecnologia e redes eletrônicas integradas cobrindo todo o planeta” conseguirão simular e substituir suas realizações possíveis. De fato, o trabalho de serviços do futuro pode ser perversamente definido (pelo menos em relação aos que constroem essas máquinas) como modificações de humanos e objetos que não podem ser simuladas ou substituídas por máquinas[12]! Assim como hoje há um crescimento na escala de produção da agricultura “orgânica”, não-geneticamente modificada, e roupas “feitas à mão” de fibras não-sintéticas, da mesma maneira, no futuro, é possível que exista o interesse em se ter um humano tocando Bach (ainda que a versão sintetizada possa ser tecnicamente mais correta) ou dançando (ainda que um holograma digitalizado possa ter uma performance melhor de acordo com os críticos). Eu ficaria surpreso se se serviços desse tipo não surgissem. Eles poderiam “absorver” muitos trabalhadores deslocados dos trabalhos agrários ou industriais? Isso eu não sei, mas em todo caso, Rifkin também não. A incapacidade de Rifkin em projetar seu esquema categoria tanto no passado quanto no futuro revela um problema ainda maior: sua incapacidade de explicar adequadamente porque a mudança tecnológica acontece, em primeiro ligar. No início de O fim do trabalho, Rifkin recusa o que ele chama de “argumento da gota tecnológica” – i.e., a visão de que a mudança tecnológica em um ramo da indústria, ainda que cause desemprego ali, eventualmente leva ao aumento do emprego através do resto da economia – apelando para O Capital e os Grundrisse de Marx. A visão de Marx de Rifkin pode ser resumida nessa passagem estendida:

“Karl Marx dizia que os produtores tentam continuamente reproduzir os custos de trabalho e ganhar um controle maior sobre os meios de produção substituindo o equipamento do capital por trabalhadores sempre que possível (…). Marx previu que um aumento na automação da produção eventualmente eliminaria completamente o trabalhador. A filósofo alemão olhava adiante, para o que ele eufemisticamente chamava de ‘a última (…) metamorfose do trabalho’, quando ‘um sistema automático de maquinaria’ finalmente substituiria os seres humanos no processo econômico (…). Marx acreditava que o esforço prolongado dos produtores para continuar a substituir o trabalho humano por máquinas iria se mostrar insustentável no fim (…) [já que] haveria menos e menos consumidores com poder de compra suficiente para comprar seus produtos.”[13]

Esse uso de Marx faz parte de uma nova e geralmente percebida tendência entre os analistas de política social na esquerda dos EUA, considerada de modo amplo. Mas essa retomada do pensamento de Marx é frequentemente tão seletiva quanto o uso de Smith e Ricardo na direita[14]. No caso de Rifkin, ele definitivamente capta o tom geral das posições de Marx sobre a tecnologia corretamente, mas com notáveis omissões. A primeira omissão é a da luta dos trabalhadores por maiores salários, por menos tempo de trabalho, por melhores condições de trabalho, e por uma forma de vida que recusa absolutamente o trabalho forçado. Essas lutas são os principais motivos pelos quais os capitalistas são tão interessados em introduzir maquinaria como armas na luta de classes. Se os trabalhadores fossem “fatores de produção” dóceis, a urgência para a mudança tecnológica seria bastante reduzida. A segunda omissão é o reconhecimento ricardiano de Marx de que cada trabalhador permanentemente substituído por máquinas reduz o total de mais valor (e, portanto, de lucro total) disponível para a classe capitalista como um todo. Já que a classe capitalista depende de lucros, a mudança tecnológica pode ser tão perigosa para ela quanto para os trabalhadores. Assim, a classe capitalista encara uma contradição permanente com a qual ela deve lidar muito cuidadosamente: (a) o desejo de eliminar os trabalhadores rebeldes e exigentes da produção, (b) o desejo de explorar a maior massa de trabalhadores possível. Marx comenta essa eterna tensão em Teorias do Mais-Valor:

“A tendência principal joga os trabalhadores nas ruas, e torna uma parte da população supérflua, e então a absorve novamente na escravidão assalariada absolutamente, de modo que a sorte do trabalhador está sempre flutuando, mas ele nunca escapa dela. O trabalhador, portanto, encara justificadamente o desenvolvimento da força produtiva de seu próprio trabalho como hostil a ele mesmo; o capitalista, por outro lado, sempre o trata como um elemento a ser eliminado da produção”.[15]

O problema o Capital com a mudança tecnológica não é a perda de consumidores, mas a perda de lucros.

A discussão mais desenvolvida de Marx dessa história se encontra na Parte III do terceiro volume de O Capital: “A lei da queda da taxa de lucro”. Aqui, ele reconhece que a tendência para a substituição total de homens por um “sistema automático de máquinas” deve ser continuamente confrontada por “causas neutralizadoras”, ou o nível médio da taxa de lucro irá realmente cair. Essas causas neutralizadoras ou aumentam a massa de mais-valor (p.ex., aumentando a intensidade e a duração da jornada de trabalho), ou diminuem a massa de capital variável (p.ex., rebaixando os salários abaixo de seu valor, expandido o comércio exterior), ou diminuem a massa de capital constante (p.ex., aumentando a produtividade do trabalho na indústria de bens de capital, expandindo o comércio exterior), ou alguma combinação dessas possibilidades disjuntivas[16]. O atual capitalismo dos EUA parece estar aplicando a síntese máxima dessas causas neutralizadoras, enquanto os capitais europeus estão sendo mais seletivos. Não existe estratégia capitalista inevitável no impulso para superar as lutas dos trabalhadores e evitar uma queda dramática da taxa de lucro. Essas lutas podem levar a muitos futuros – da reintrodução da escravidão, a um aumento dramático na jornada de trabalho, à redução negociada da jornada de trabalho assalariada, ao fim do capitalismo – dependendo das forças de classe em campo.

Mas existe uma saída que definitivamente não pode ser incluída na carta de futuros possíveis enquanto o capitalismo for viável: a visão de Rifkin de uma “revolução de alta tecnologia leva[ndo] ao fim da realização do antigo sonho utópico de uma substituição do trabalho humano por máquinas, finalmente libertando a humanidade para se aventurar em uma era pós-mercado”[17]. O capitalismo exige a substância do lucro, do juro e da renda, que só podem ser criadas por uma imensa massa de mais trabalho, mas a substituição total do trabalho humano por máquinas significaria o fim do lucro, do juro e da renda. Embora Rifkin pareça concordar com muito da análise de Marx da dinâmica do capitalismo, a conclusão fatal de Marx é cuidadosamente deixada de fora do cenário sanguinário apresentado na última parte de seu livro. Rifkin apresenta um futuro que combinaria uma drástica redução da jornada de trabalho com um “novo contrato social” que daria incentivos financeiros (de salários “sociais” ou “de sombras” a benefícios nos impostos) para se trabalhar no “terceiro setor” – o setor independente, “não lucrativo” ou voluntário entre os setores “público e privado”. Esse setor pode se tornar uma “indústria de serviços” do século XXI, já que ele “oferece a única alternativa viável para canalizar de maneira construtiva o mais-valor produzido pelo mercado global”[18]. Ou seja, ele absorve trabalhadores que não produzem mais-valor, e dá a eles um salário por um trabalho que não cria mais-valor.

Em outras palavras, a visão de Rifkin de um “porto seguro” para a humanidade é uma forma de capitalismo em que a maior parte dos trabalhadores não está criando lucros, juros ou renda. Ele contrasta essa visão com um futuro em que a “civilização (…) continua a se desintegrar em um estado de destituição e ilegalidade cada vez maior, do qual não haverá retorno fácil” [19]. Mas o quanto é viável a quimera de Rifkin com sua cabeça tecno-capitalista, seu corpo grande e lanudo de terceiro setor, e seu pequeno rabo de produção de mais-valor? Existem proporções que devem ser respeitadas, mesmo quando fazemos quimeras futurísticas, e a de Rifkin não pode existir simplesmente porque a cabeça, não importa o quanto ela seja tecnologicamente sofisticada, não pode ser alimentada por um rabinho tão pequeno. O capitalismo resultante do “novo contrato social” de Rifkin é impossível, porque é por definição um capitalismo sem lucros, juro e renda. Por que os capitalistas concordariam em um acordo desses depois que gritaram para o mundo todo durante a Guerra Fria que preferiam explodir metade do planeta a ceder um décimo de seus lucros?

Essa “prova de impossibilidade” é tão óbvia que não se pode não perguntar porque Rifkin invocava Marx tão diretamente no início de O fim do trabalho, apenas para exorcizá-lo completamente no fim? Ele estaria evitando os incômodos da guerra mundial, da revolução e da aniquilação nuclear que suas conclusões anteriores haviam levantado? Ele estaria tentando levar, com ameaças marxistas veladas, a classe tecno-capitalista a um ato de suicídio, camuflado como um novo modo [lease] de vida? As respostas a essas questões exigiriam uma análise política do tipo de retórica que Rifkin e seu círculo usam. Eu deixo para outros esse esforço. Mas vale a pena apontar que a estratégia quimérica de Rifkin não está totalmente equivocada. Afinal, ele está procurando por um novo setor para a expansão de relações capitalistas. Ele erradamente escolhe o setor “não lucrativo”, voluntário, porque se esse setor é realmente “não lucrativo” e voluntário, ele não pode ser uma base real para um novo setor de emprego no capitalismo (e não há jeito de sair do capitalismo por uma fraude de massas, por mais tentador que isso seja).

Mas a intuição de Rifkin está correta, uma vez que o múltiplo do trabalho vai muito além da dimensão do trabalho assalariado formal, e esse trabalho não-assalariado realmente produz mais-valor em abundância. Se ele for mais direta e mais eficientemente explorado, esse tranalho pode se tornar a fonte de uma nova área de mais-valor criando empregos pela expansão do trabalho forçado, a extensão das relações capitalistas diretas na região da reprodução do trabalho e, finalmente, a potencialização de microempresas e empresas criminosas. É por isso que “neoliberalismo”, “neoescravidão”, “grameenismo” e “guerra às drogas” são palavras-de-ordem mais apropriadas para a Terceira Revolução Industrial, mais do que o terceiro setor “não lucrativo” pregado por Rifkin, porque eles podem ativar as “causas de neutralização” de queda precipitada da taxa de lucro que a computadorização, a robotização e a engenharia genética provocam.

 

Negri e o fim da lei do valor

            Rifkin pode, talvez, ser desculpado por seu uso semi-cru do pensamento de Marx. Afinal, ele não veio de uma tradição marxista e suas referências anteriores ao trabalho de Marx era poucas e, em grande parte, feitas de passagem. Mas os temas que Rifkin tão claramente apresentou em O fim do trabalho podem ser encontrados em um certo número de escritores marxistas, pós-marxistas ou marxistas pós-modernos, frequentemente de versões bem mais obscuras e misteriosas. Uma das principais figuras nesse campo é Antonio Negri, que desenvolveu argumentos sustentando conclusões muito semelhantes às de Rifkin nos anos 1970, mas sem a ingenuidade deste último em relação a Marx. Publicado em 1994, O trabalho de Dioniso (com Michael Hardt), continuava um discurso definitivamente iniciado com Marx além de Marx[20] e continuou em Comunistas como nós[21]. Nessa seção, mostrarei como a análise marxista e mais sofisticada de Negri do capitalismo contemporâneo é tão problemática quanto a de Rifkin. É difícil perceber a semelhança de Negri com Rifkin, simplesmente porque o trabalho de Negri é rigorosamente anti-empírico – raramente um fato ou factoide passa pela sua escrita –  enquanto O fim do trabalho de Rifkin está repleto de estatísticas e fragmentos jornalísticos sobre a alta tecnologia. Negri se digna a escrever abertamente sobre uma era do “fim do trabalho”. Ele exprime uma posição equivalente, no entanto, em sua rejeição da Teoria do Trabalho clássica, ou da Lei do Valor, com palavras substancializadas. No fim do século XX, de acordo com Negri, a lei está “completamente quebrada”, ou “não opera mais” ou “a lei do valor morre”[22].

Isso é equivalente às afirmações mais empíricas de Rifkin, mas a equivalência só pode ser estabelecida depois de uma redução teórica vertiginosa. A versão de Negri da teoria do valor-trabalho clássica tem como sua “tarefa principal (…) a investigação das leis sociais e econômicas que governam o desenvolvimento da força de trabalho nos diferentes setores da produção social e, assim, iluminar os processos capitalistas de valorização”[23], ou ela é “a expressão da relação entre o trabalho concreto e quantidades de dinheiro necessárias para assegurar a existência”[24], ou é uma medida da “proporcionalidade determinada entre o trabalho necessário e o trabalho excedente”[25]. A lei do valor estava viva no século XIX, mas assim como o Deus de Nietzsche, ela começou a morrer aí. Levou um pouco mais para que a lei tivesse seu certificado de óbito formalmente emitido, no entanto. A quebra, a inoperância e a morte da lei do valor simplesmente querem dizer que as variáveis fundamentais da vida capitalista – lucros, juro, rendas, salários e preços – não são mais determinadas pelo tempo de trabalho. Negri sustenta, como faz Rifkin, que o capitalismo entrou em um período que Marx, em seu modo mais visionário, descreveu no “Fragmento sobre as máquinas” nos Grundrisse[26]. Deixem que eu escolha só uma das muitas passagens frequentemente citadas nessa perspectiva:

“O desenvolvimento da indústria pesada significa que a base na qual ela se sustenta – a apropriação do tempo de trabalho de outros – deixa de constituir ou de criar riqueza; e ao mesmo tempo o trabalho direto como tal deixa de ser uma base da produção, já que ele é transformado cada vez mais em uma atividade de supervisão e regulação; e também porque o produto deixa de ser feito pelo trabalho individual direto, e resulta mais da combinação da atividade social (…) por um lado, uma vez que as forças produtivas dos meios de trabalho atingiram o nível de um processo automático, o pré-requisito é a subordinação das forças naturais à inteligência da sociedade, enquanto por outro lado o trabalho individual em sua forma direta é transformado em trabalho social. Dessa maneira, a outra base desse modo de produção perece”[27]

O desenvolvimento do “processo automático” na engenharia genética, na programação de computadores e na robotização desde 1960 convenceu tanto Negri quanto Rifkin de que as características dominantes do capitalismo contemporâneo correspondem ponto a ponto à visão de Marx em 1857-1858. A maior diferença entre os trabalhos de Negri e O fim do trabalho de Rifkin é que enquanto Rifkin enfatiza as consequências desses “processos automáticos” para o desemprego das massas de trabalhadores, Negri enfatiza os novos trabalhadores que estão envolvidos de maneira central na “inteligência da sociedade” e no “trabalho social”. Enquanto Rifkin sugere que esses novos “trabalhadores do conhecimento” (p.ex. cientistas pesquisadores, engenheiros de design, analistas de software, consultores fiscais e financeiros, arquitetos, especialistas em marketing, produtores e editores de cinema, advogados, investidores financeiros) nunca poderão ser um setor numericamente grande e, portanto, não existirão solução para os problemas criados por essa fase do desenvolvimento capitalista, Negri os assume como a chave para a transformação rumo ao comunismo para além do “socialismo real”.

É importante notar uma diferença terminológica entre Negri e Rifkin, porque Negri ao longo dos anos chamou os “trabalhadores do conhecimento” de Rifkin primeiro, nos anos 1970, de “trabalhadores sociais”, mais tarde os chamou de “ciborgues” à la Donna Haraway[28]. Embora especialmente infeliz em sua tradução para o inglês, o temo “trabalhador social” vem diretamente das páginas dos Grundrisse. Ao procurar por uma frase descritiva que contrastaria os novos trabalhadores no “setor de conhecimento e informação” aos “trabalhadores de massa” da era da linha de montagem, muitas das frases de Marx influenciaram Negri profundamente. Por exemplo “Nessa transformação, não é nem o trabalho humano direto que ele próprio executa, nem o tempo durante o qual ele trabalha, mas antes a apropriação de seu próprio poder produtivo geral, sua compreensão da natureza e seu domínio sobre ela em virtude se sua presença como corpo social – é, em uma palavra, o desenvolvimento do indivíduo social que aparecer como a grande pedra de fundação da produção e da riqueza”[29]. O trabalhador social é o sujeito do “trabalho tecno-científico” e ele ou ela sai das páginas dos Grundrisse como um ciborgue do fim do século XX, i.e., “um híbrido de máquina e organismo que continuamente cruza as barreiras entre trabalho material e imaterial[30]. O tempo de trabalho do velho trabalhador de massa na linha de montagem foi vagamente correlacionado à produção (de valores de troca e valores de uso) e ele ou ela foi alienado da fábrica social, o tempo de trabalho do ciborgue social é independente de sua produtividade, mas é completamente integrado no terreno da produção.

Rifkin vê a “classe do conhecimento” de “analistas simbólicos” como fundamentalmente identificada com o capital, e explica o novo interesse em direitos intelectuais e de propriedade como um sinal de que as elites capitalistas reconheceram a importância da classe do conhecimento e estão dispostas a dividir sua riqueza com ela. Os trabalhadores do conhecimento estão “rapidamente se tornando a nova aristocracia”[31]. Negri tem uma leitura bastante diferente do presente e do futuro dessa classe. A existência de ciborgue sociais não apenas é a evidência de que a dialética do desenvolvimento capitalista foi “quebrada”, de acordo com Negri, mas de que o capital simplesmente não pode “compra-la”, porque “o trabalhador social começou a produzir uma subjetividade que não se pode mais limitar aos termos do desenvolvimento capitalista, entendido como um movimento dialético realizado”[32]. Em outras palavras, o trabalho tecno-científico não pode ser controlado pelo capital através de seu sistema salarial e disciplina de trabalho amaciados com a promessa da entrada nos níveis superiores do poder administrativo, financeiro e político para os “melhores”. Não apenas o ciborgue social está para além dos limites das tradicionais técnicas de controle do capital, ele também está na vanguarda da revolução comunista. Por que? Vamos primeiro ouvir e depois interpretar as palavras de Negri:

“A cooperação ou a associação dos [ciborgue] produtores é proposta independentemente da capacidade de organização do capital; a cooperação e a subjetividade do trabalho encontraram um ponto de contato fora das maquinações do capital. O capital se torna apenas um aparato de captura, um fantasma, um ídolo. Ao redor dele se movem processos radicalmente autônomos de auto-valorização que não apenas constituem uma base alternativa para o desenvolvimento potencial, mas representam atualmente uma nova fundação constituinte.”[33]

Negri afirma que os trabalhadores ciborgue escaparam do campo gravitacional do capital, para uma região em que seu trabalho e vida estão realmente produzindo as relações sociais e produtivas fundamentais apropriadas ao comunismo. Essas relações são caracterizadas pela “auto-valorização” – i.e., ao invés de determinar o valor da força de trabalho e trabalhar baseado em seu valor de troca para o capitalista, os trabalhadores valorizam sua força de trabalho por sua capacidade de determinar seu desenvolvimento autônomo – e surgem do período em que o trabalho tecno-científico se torna um paradigma[34]. Com efeito, a noção de Negri da “auto-valorização” é semelhante à “classe para si” ou “consciência de classe” do marxismo mais tradicional; mas a auto-valorização distingue o ciborgue das políticas do trabalhador de massas e marca a chegada da verdadeira revolução comunista, ironicamente se infiltrando na internet mais do que nos (novos e velhos) buracos dos trabalhadores de massa, camponeses e moradores de gueto do planeta.

A oposição entre a imagem de Negri do ciborgue anticapitalista e a imagem de Rifkin do trabalhador do conhecimento pró-capitalista podem ser um tema convidativo. Mas assim como o trabalhador do conhecimento de Rifkin (como o último empregado que gera lucros) é construído sobre uma concepção errada do desenvolvimento capitalista, o ciborgue de Negri também é. Consequentemente, é mais útil considerar e criticar a base comum de ambas essas visões. Negri baseia sua versão do “trabalho social” nos Grudrisse de Marx, assim como Rifkin faz com seu trabalhador do conhecimento, mas devemos nos lembrar de que o “fragmento das máquinas” não foi a última palavra de Marx em relação às máquinas e ao capitalismo. Marx continuou a trabalhar por mais uma década, e encheu os volumes I, II e III de O Capital com novas observações. Esse não é o lugar para começar a rever esses desenvolvimentos com profundidade. Devemos apontar que no volume I, Marx não apenas reconheceu as grandes forças que a maquinaria jogava no processo de produção; ele também enfatizou a incapacidade das máquinas de criar valor, análoga aos limites termodinâmicos da disponibilidade de trabalho em um dado campo energético, mas ainda mais crucial para o nosso projeto é a parte do volume III de O Capital em que Marx revisitou o terreno do “fragmento das máquinas”[35]. Nessas passagens, ele reconheceu que em qualquer era em que o capitalismo se aproxima do estágio dos “processos automáticos”, o sistema como um todo deve encarar uma dramática aceleração da tendência de queda da taxa de lucro. Ele perguntou “Como é possível que essa queda não seja maior e mais rápida”? A sua resposta foi a de que existem processos interiores à atividade capitalista que resistem a essa tendência e, portanto, ao fim tecnológico do sistema. Isso se encontra diretamente no capítulo XIV sobre as “causas neutralizadoras” e indiretamente na parte II sobre a formação da taxa de lucro média. Mencionei as consequências críticas das “causas neutralizadoras” em minha discussão de Rifkin, e elas também se aplicam a Negri. Negri nega imperiosamente “as leis sociais e econômicas que governam a distribuição da força de trabalho entre os diferentes setores da produção social” e rejeita a noção de que o tempo de trabalho é crucial para “os processos capitalistas de valorização”. Mas o capital e os capitalistas ainda são fervorosamente interessados pelas duas coisas. É por isso que há um interesse tão grande em mandar capital para áreas de salários baixos e que há tanta resistência à redução da jornada de trabalho assalariado. Porque a computadorização e a robotização das fábricas e escritórios na Europa ocidental, na América do Norte e no Japão foram acompanhadas de um processo de “globalização” e de “novos cercamentos”.

O capitalistas tem lutado violentamente para ter o direito de colocar zonas de montagem e bordéis nas partes menos mecanizadas do mundo, como que para ter o direito a formas de vida claramente distintas. Ao invés de um declínio, houve uma grande expansão da produção fabril por muitas regiões do planeta. De fato, muito do lucro de corporações globais e muito dos juros recebidos por bancos internacionais foi criado por esse trabalho de baixa tecnologia, fabril e sexual[36]. Para conseguir os trabalhadores para essas fábricas e bordéis, um grande novo cercamento está acontecendo por toda a África, a Ásia e as Américas. O mesmo capital que é dono “das máquinas de informação etéreas que substituem a produção industrial” também está envolvido no cercamento de terras por todo o planeta, provocando a fome, a doença, a guerra de baixa intensidade e a miséria coletiva no processo[37].

Porque o capital está preocupado com a posse comunal da terra na África, por exemplo, se a verdadeira fonte de produtividade deve ser encontrada nos ciborgue do planeta? Uma resposta é simplesmente que essas fábricas, terras e bordéis no Terceiro mundo são os locais das “causas de neutralização” da tendência da queda da taxa de lucros. O aumento da reserva total de trabalho excedente ajuda a rebaixar os salários, reduz o custo dos elementos do capital constante, expande tremendamente o mercado de trabalho e torna possível o desenvolvimento de indústrias de alta tecnologia que empregam diretamente apenas uns poucos trabalhadores do conhecimento e ciborgue. Mas outra resposta complementar por de ser tirada da parte II de O Capital, volume III, “Conversão do lucro em lucro médio”, que mostra a existência de um tipo de autovalorização do capital. Para poder haver uma taxa média de lucro por todo o sistema capitalista, ramos da indústria que empregam muito pouco trabalho mas muita maquinaria devem poder ter o direito de retirar da reserva de valor que os ramos de trabalho intensivo e baixa tecnologia criam. Se não houvessem esses ramos ou um direito desses, então a taxa de lucro média seria tão baixa nas indústrias de alta tecnologia e baixo trabalho que todo o investimento pararia e o sistema iria se aniquilar. Consequentemente, os “novos cercamentos” na periferia deve ser acompanhados da ascensão dos “processos automáticos” na indústria, o computador exige o trabalho semiescravo e a existência do ciborgue tem a do escravo como condição.

Negri está certo em ligar a ascensão dos novos trabalhadores em campos de alta tecnologia com a autovalorização, mas isso tem mais a ver com a autovalorização capitalista – i.e., o direito do “trabalho morto” de exigir uma parcela desproporcional de “trabalho vivo” – do que com a autovalorização operária. De fado, a autovalorização do capital tem como condição a degradação do proletariado do planeta. Pode-se facilmente recusar a análise de Negri como sendo profundamente eurocêntrica por negligenciar a criação de valor no trabalho de bilhões de pessoas no planeta. De fato, e ele é eurocêntrico de uma maneira bastante arcaica. Ele faria melhor, pelo menos, em olha para o novo multiculturalismo capitalista global e as ideologias que ele criou, ao invés de olhar para o pequeno círculo de pensadores pós-modernos que constitui seu horizonte imediato, para conseguir avaliar as lutas de classes hoje, mesmo de uma perspectiva capitalista[38]. Mas a acusação de eurocentrismo é um pouco genérica demais. Sua adesão a um dos axiomas do marxismo-leninismo – que o sujeito revolucionário de uma era é sintetizado nos elementos mais “produtivos” da classe – registra melhor o esquecimento metodológico do proletariado do planeta por Negri. É verdade que Negri não tem nada além de desprezo pela metafísica do materialismo dialético e pela história do “socialismo real”, mas na escolha do sujeito revolucionário ele é leninista até a medula. Negri espera tanto dos programadores de computador e de todo os tipos parecidos por conta de sua suposta produtividade. Já que o intelecto geral é produtivo, então esses trabalhadores intelectuais são os seus representantes ideias (e, portanto, revolucionários), mesmo que eles ainda não tenham lançado uma luta concreta contra a acumulação capitalista enquanto “trabalhadores sociais” ou “ciborgues”. Mas essa identidade metodológica entre a revolução e a produção se mostrou falsa várias vezes na história.  Os leninistas e os partidos leninistas do passado pagaram por esse erro frequentemente com as suas vidas. O desenvolvimento político de Mao mostra claramente que foi preciso o massacre dos trabalhadores comunistas nas cidades e muitas experiências quase mortais no campo antes que ele reconhecesse que o princípio taoísta – de que o aparentemente mais fraco e menos produtivo poder ser o mais forte na luta – era mais certeiro do que o leninista. A escolha de Negri do sujeito revolucionário nesse período – os mestres das máquinas etéreas – é tão questionável quanto o enviesamento leninista do passado em relação ao trabalhador industrial. De fato, a falha de O trabalho de Dioniso, que foi publicado nos Estados Unidos em junho de 1994, em se dirigir às lutas revolucionárias dos povos indígenas do planeta, especialmente aos zapatistas no México, é o sinal definitivo de que a geografia revolucionária de Negri precisa se expandir.

 

Conclusão

Negri e Rifkin são participantes de peso no discurso do “fim do trabalho” dos anos 90, ainda que ocupem as duas pontas do espectro retórico. Rifkin é empírico e pessimista em sua abordagem do “fim do trabalho”, enquanto Negri é apriorista e otimista. No entanto, ambos parecem invocar o determinismo tecnológico ao dizer que só existe uma maneira de o capitalismo se desenvolver. Eles, e muitos outros que operaram nesse discurso, se esquecem de que o capitalismo é constrangido (e protegido) por proporcionalidades e tendências contraditórias. O sistema não vai largar os negócios pelo simples acréscimo de mais máquinas de alta tecnologia, técnicas, e trabalhadores, aconteça o que acontecer, porque a frase irônica de Marx, “a verdadeira barreira para da produção capitalista é o próprio capital”, é mais verdade do que nunca. Pode ser uma verdade velha e miserável, mas ainda hoje lucro, juros, salários e trabalho em certas proporções são uma necessidade específica para as condições de existência do capitalismo[39]. O capital não pode desejar sua própria aniquilação, nem pode ser enganado ou xingado até deixar de existir. Rifkin tenta enganar o sistema para acreditar que uma saída viável para a crise do desemprego que ele prevê é abandonar os setores de produção de lucro na economia. Ele diz seguramente que tudo ficará bem se os capitalistas estiverem no controle de uma agricultura, de uma indústria e de um setor de serviços automatizados e quase todas as outras pessoas estiverem trabalhando em um terceiro setor não-lucrativo que não exige hegemonia. Mas esse cenário dificilmente pode passar pelos olhos atentos da imprensa capitalista, muito menos os da sala de reuniões, sem ridículo. Então, ele não pode ter sucesso. Negri, ao invés disso, tenta um xingamento filosófico. Ele chama o capitalismo do fim do século XX de “apenas um aparelho de captura, um fantasma, um ídolo” ontologicamente[40]. Eu prezo o desejo de Negri de xingar esse sistema de dizimação, humilhação e miséria, mas eu questiono o seu “apenas”. Como os maiores órgãos da inteligência capitalista (como a Fundação Ford) mostraram, o capital é tão imune a esses xingamentos ontológicos quanto os conquistadores eram às maldições dos sacerdotes astecas. Na verdade, o capital adora seu caráter fantasmagórico. Sua maior preocupação é com a duração do fantasma, não com seu estatuto ontológico. A literatura do “fim do trabalho” dos anos 90, portanto, é não apenas teoricamente e empiricamente recusada. Ela também cria uma política falhada, porque ela no fim das contas tenta convencer tanto amigos quanto inimigos que, por trás das costas de todos, o capitalismo acabou. Sua palavra de ordem não é o “não se preocupem, o capitalismo vai destruir a si mesmo mais cedo ou mais tarde” da Terceira Internacional, mas “o capitalismo já acabou no fim de alta tecnologia do sistema, vocês só precisam se dar conta disso”. Mas uma versão anticapitalista desse tipo da frase de Nietzsche “Deus está morto” é muito pouco inspiradora quando milhões ainda estão sendo chacinados nos muitos nomes tanto de Deus quanto do capital.

[1] Harold L. Sheppard e Neal Q. Herrick, Where Have All the Robots Gone? Worker Dissatisfaction in the 70s. New York: The Free Press, 1972; Stanley Aronowitz, False Promises: The Shaping of American Working Class Consciousness. New York: McGraw- Hill,1972; Special Task Force to the Secretary of Health, Education, and Welfare, Work in America. Cambridge, MA: MIT Press, 1973; Peter Linebaugh e Bruno Ramirez, “Crisis in the Auto Sector,” in Midnight Oil: Work, Energy, War, 1973– 1992, ed. Midnight Notes Collective, p. 143168. Brooklyn: Autonomedia, 1992, 143–68.

[2] Linebaugh e Ramirez, “Crisis,” p. 160

[3] Jeremy Rifkin, The End of Work: The Decline of the Global Labor Force and the Dawn of the Post-Market Era. New York: G.P. Putnam’s Sons, 1995; Michael Hardt e Antonio Negri, The Labor of Dionysus. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1994; e Stanley Aronowitz e William De Fazio, The Jobless Future. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1994. E também para frases como “enxugamento” no New York Times, The Downsizing of America. New York: Times Books/Random House, 1996.

[4] Aronowitz e De Fazio, Jobless Future, p. xii.

[5] Rifkin, End of Work, p. xvi.

[6] Hardt e Negri, Labor of Dionysus, p. 10.

[7] O texto em inglês usa “’job” sempre que escrevemos “emprego”. Se, para o uso de “job” quanto ao mundo dos pequenos golpes e crimes a melhor tradução seria “serviço”, acabaríamos perdendo a referência imediata ao trabalho formal, “emprego” no português. Preferimos manter o último, marcando a diferença aqui. [N.T.]

[8] “’to do a job’ or ‘to job’”, no texto em inglês.

[9] Ver “A crise de trabalho/energia e o Apocalipse” [disponível em inglês em: https://libcom.org/library/workenergy-crisis-apocalypse-george-caffentzis] e “Sobre a noção de uma crise da reprodução social: uma análise teórica” [disponível em inglês em: http://www.commoner.org.uk/caffentzis05.pdf].

[10] Rifkin, End of Work, p.35.

[11] Ibid., p.162

[12] Essa definição “perversa” é uma lembrança do método diagonal de Cantor, que se provou tão útil na pesquisa matemática desse século. O truque do método é assumir que existe uma lista que esgota todos os membros de uma classe específica K e então definir um membro de K que não está na lista usa as próprias propriedades especiais da lista.

[13] Rifkin, End of Work, p.16-17.

[14] Por exemplo, em muito da atual discussão sobre o livre comércio, um baixo nível salarial é considerado por muitos como uma “vantagem comparativa” ricardiana. Mas uma leitura dessas é uma distorção da visão de Ricardo e um convite para justificar a repressão das lutas dos trabalhadores. As fontes da vantagem comparativa, para Ricardo, são características semi-permanentes do ambiente físico e cultural de um país, e não variáveis econômicas como salários, lucro ou renda.

[15] Karl Marx, Theories of Surplus Value, Part II (Moscou: Progress Publishers, 1968), p. 573.

[16] Marx, Capital: Volume III, p. 339–48.

[17] Rifkin, End of Work, p.56.

[18] Ibid., p. 192.

[19] Ibid., p. 291.

[20] Antonio Negri, Marx Beyond Marx (Brooklyn: Autonomedia, 1991).

[21] Felix Guattari e Antonio Negri, Communists Like Us (New York: Semiotext(e), 1990), originalmente publicado em 1985; republicado como New Lines of Alliance, New Spaces of Liberty (Brooklyn: Minor Compositions/Autonomedia, 2010). Esse não é o lugar de discutir a vida política e jurídica de Negri desde 1970. Para mais sobre isso, ver a introdução de Yann Moulier à The Politics of Subervsion. Negri voluntariamente retornou à Itália do exílio na França em julho de 1997 e ficou preso em Roma até ser solto em 2003.

[22] Hardt e Negri, Labor of Dionysius, p. 10; Guattari e Negri, Communists Like Us, p. 21; Negri, Marx Beyond Marx, p. 172.

[23] Hardt e Negri, Labor of Dionysus, p. 8.

[24] Guattari e Negri, Communists Like Us, p. 21.

[25] Negri, Marx Beyond Marx, p. 172.

[26] Ibid., p. 140–41; Rifkin, End of Work, p. 16–17.

[27] Marx, Grundrisse, p. 382.

[28] Donna Haraway, Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature (New York: Routledge, 1991), p. 149–81.

[29] Marx, Grundrisse, p. 705.

[30] Hardt e Negri, Labor of Dionysius, p. 280-1. Negri normalmente descreve o trabalho do ciborgue trabalhador social como “imaterial”. Mas uma análise da teoria da máquina de Turing mostra que não existe diferença fundamental entre aquilo que é normalmente chamado trabalho material (p.ex. tecer ou cavar) e o trabalho imaterial (p.ex. construir um programa de computador). Consequentemente, devemos olhar para outros aspectos da situação de trabalho para localizar suas propriedade de criação de valor. Ver “Por que as máquinas não podem criar valor: a teoria das máquinas de Marx”.

 

[31] Rifkin, End of Work, p. 175.

[32] Hardt e Negri, Labor of Dionysius, p. 282.

[33] Ibid.

[34] Negri, Marx Beyond Marx, p. 162–63; George Caffentzis, “A Review Article on Antonio Negri’s Marx Beyond Marx: Lessons on the Grundrisse,” New German Critique nº 41 (Primavera-Verão de 1987), p. 186–92.

 

[35] George Caffentzis, “Por que as máquinas não podem criar valor: a teoria das máquinas de Marx”.

[36] Silvia Federici, “War, Globalization, and Reproduction,” Peace and Change 25, no. 2 (Abril de 2000), p. 153–65.

[37] Ver “Sobre a África e os autômatos auto-reprodutíveis”, George Caffentzis, “Sobre as implicações fundamentais da crise da dívida para a reprodução social na África,” in Paying the Price: Women and The Politics of International Economic Strategy, Mariarosa Dalla Costa e Giovanna F. Dalla Costa (ed.) (London: Zed Books, 1995).

[38] Silvia Federici, “O Deus que nunca falhou: as origens e crises da civilização ocidental,” in Enduring Western Civilization: The Construction of the Concept of Western Civilization and Its “Others, Silvia Federici (ed.) (Westport, CT: Praeger, 1995).

[39] Marx, Capital: Volume III, p. 358.

[40] Hardt e Negri, Labor of Dionysius, p. 282.

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de In Letters of Blood and Fire, Common Notions, 2013.
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