Eldridge Cleaver – Uma carta aberta para Stokely Charmichael

Stokely Charmichael, Conarky, Guiné:

 

A sua carta de renúncia como Primeiro Ministro do Partido Pantera Negra chegou, acho, mais ou menos um ano atrasada. Na verdade, desde o dia da sua indicação para o cargo – 17 de fevereiro de 1968 – os acontecimentos provaram, para começar, que você não era adequado para o serviço. Mesmo nessa época já estava claro que a sua posição sobre a aliança com organizações revolucionárias brancas entrava em conflito com a do Partido Pantera Negra. Mas, na época, pensamos que até você conseguiria largar a paranoia do SNCC sobre controle branco e continuar a tocar o processo de construir o tipo de aparelho revolucionário de que precisamos nos Estados Unidos para unir todas as forças revolucionárias do país para derrubar o sistema do capitalismo, imperialismo e racismo.

E sei como esses termos são chutados por aí como corpos sem vida e que é fácil deixar que as realidades horríveis por trás delas fiquem obscurecidas com repetição demais. Mas quando você vê a miséria em que as pessoas vivem como resultado da política dos exploradores, quando você vê os efeitos da exploração nos corpos esqueléticos de crianças pequenas, quando você vê a fome e o desespero, então esses termos ganham vida de uma maneira nova. Uma vez que você mesmo fez essa viagem e viu tudo com seus próprios olhos, você deve saber que o sofrimento não olha para a cor, que as vítimas do imperialismo, do racismo, do colonialismo e do neocolonialismo vêm em todas as cores, e que eles precisam de uma unidade baseada em princípios revolucionários e não na cor da pele.

As outras acusações que vocês faz na sua carta – sobre a nossa recém descoberta ideologia, nosso dogmatismo, nossa truculência, etc. – parecem ter uma importância secundária porque com a exceção, talvez, do honorável Elijah Muhammad, você é o gato mais dogmático nas ruas hoje, e eu nunca soube que você se opunha a torcer braços ou, inclusive, pescoços. De muitas maneiras, a sua carta me pareceu ser um eco e uma repetição das acusações feitas ao partido pelos lambe-botas no comitê McClellan. E uma vez que você escolheu esse momento para denunciar o partido, nós – e tenho certeza de que muitas outras pessoas fora do partido também – temos que ler a sua carta dessa perspectiva. O único ponto na sua carta que eu acho que é realmente seu é o sobre a aliança com brancos, porque é sobre esse ponto que as nossas diferenças se deram desde o início.

Você nunca conseguiu distinguir a história do Partido Pantera Negra da história da organização de que você foi presidente um dia – o Comitê de Coordenação Não-Violenta Estudantil (SNCC). É compreensível que você possa ter esses medos de organizações negras serem controladas, ou parcialmente controladas, por brancos, porque a maior parte dos seus anos no SNCC se passaram precisamente nessas condições. Mas o Partido Pantera Negra nunca esteve nessa situação. Como nunca tivemos que tirar o controle da nossa organização das mãos dos brancos, não ficamos acorrentados ao tipo de medo paranoico que se desenvolveu por vocês do SNCC. Portanto, conseguimos nos sentar com os brancos e construir soluções para os nossos problemas comuns se tremer nas botas pensando se vamos ou não ser controlados no processo. Sempre me pareceu que você diminui a inteligência dos seus irmãos e irmãs negros quando você os avisa constantemente que eles têm que tomar cuidado com as pessoas brancas. Afinal de contas, você não é a única pessoa negra da Babilônia que foi vitimada pelo racismo branco. Mas você fala como se estivesse com medo das pessoas brancas, como se você ainda estivesse fugindo dos capitães do mato que vão colocar as mãos em você e colocar você em um saco.

Na verdade, foi precisamente a sua proclamação nebulosa do Poder Negro que deu à estrutura de poder a sua nova arma contra o nosso povo. O Partido Pantera Negra tentou te dar uma chance de resgatar o Poder Negro dos porcos que o capturaram e o transformaram na justificativa para o capitalismo negro. Com James Farmer na administração Nixon controlando a implementação do capitalismo negro sob a palavra de ordem do Poder Negro, que valor ela pode ter agora na luta do nosso povo pela liberação? E denunciar o Partido Pantera Negra é o melhor que você pode fazer para combater esse mal? Eu pensaria que a sua responsabilidade vai um pouco mais longe do que isso. Embora você tivesse razão quando disse que LBJ nunca se levantaria e proclamaria o Poder Negro, Nixon fez isso e ele está sustentando a coisa com milhões de dólares. Então, agora os seus velhos amiguinhos do Poder Negro se tornaram lubrificante para facilitar a chegada da burguesia negra na estrutura de poder.

Dando a você a posição de Primeiro Ministro do Partido Pantera Negra, estávamos tentando resgatar você da burguesia negra que tinha se grudado nas suas pegadas e estava montando você feito uma mula. Agora eles roubaram a sua bola e correram para o touchdown: seis pontos para Richard Milhous Nixon.

Em fevereiro de 1968, no Encontro de Aniversário Libertem Huey, em Oakland, Califórnia, quando você fez a sua primeira fala pública depois de voltar para os Estados Unidos do seu tour triunfante pelos países revolucionários do Terceiro Mundo, você aproveitou a oportunidade para denunciar a aliança que o Partido Pantera Negra fez com o Partido da Paz e da Liberdade. O que você convocava, contra isso, era uma Frente Única Negra que unisse todas as forças da comunidade negra, da esquerda à direita, para formar fileiras contra os brancos e todos iriam pulando direto para a liberdade. Nas fileiras da Frente Única Negra você queria colocar os nacionalistas culturais, os capitalistas negros, e os Tio Tom profissionais, mesmo que fossem precisamente esses três grupos que estavam trabalhando para acabar com a sua merda mesmo antes que ela começasse (se lembra do que Ron Karenga fez com o seu encontro em Los Angeles?).

Você tinha grandes sonhos nesses tempos, Stokely, e as suas visões, pelo lado bom, eram heroicas. Pelo lado ruim, quando se tratava de detalhes da realidade, a sua visão era cega. Você era incapaz de distinguir os seus amigos e os seus inimigos porque tudo o que você podia ver era a cor da pele do gato. Foi essa cegueira que levou você a defender Adam Clayton Powell, aquele chacal do Harlem, quando ele foi atacado por seus irmãos chacais no congresso. E foi essa cegueira que levou você a defender aquele policial negro em Washington, D.C., que estava sendo fodido por todos os brancos acima dele no departamento de polícia para o qual ele carregava a arma enquanto patrulhava a comunidade negra. Resumindo, o seu hábito de olhar para o mundo por óculos de cor negra levaria você, no nível doméstico, a formar fileiras com inimigos do povo negro como James Farmer, Whitney Young, Roy Wilkins e Ron Karenga; e no nível internacional a terminar no mesmo saco que Papa Doc Duvalier, Joseph Mobuto e Haile Selassie. Sim, nos opúnhamos a essa merda na época e nos opomos a ela agora de maneira ainda mais forte, especialmente uma vez que a administração Nixon roubou o seu programa de você e, eu acho, te excluiu dele.

E agora você quer liberar a África! Por onde você vai começar, Gana? O Congo? Biafra? Moçambique? África do Sul? Se você não percebeu, eu acho que você deveria saber que os irmãos na África que estão envolvidos na luta armada contra os colonialistas não gostariam de nada mais do que de você arrumando as suas malas cheias de souvenires africanos e voltando para a Babilônia. Eles nunca perdoaram você pela boca grande que você tece em Dar-es-Salaam quando você supôs que tinha que dizer a eles como tocarem os seus assuntos. Me parece que você agora está encurralado entre os extremos da sua própria retórica. Por um lado, você se separou da luta na Babilônia, e, por outro, você não está para se tornar o redentor da Mãe África.

Os inimigos do povo negro aprenderam algumas coisas com a história, mesmo que você não tenha, e eles estão descobrindo novas maneiras de nos dividir mais rápido do que estamos descobrindo novas maneiras de nos unir. Uma coisa que eles sabem, e nós sabemos, e que vocês parece não notar, é que não vai haver revolução ou liberação negra nos Estados Unidos enquanto revolucionários negros, brancos, mexicanos, porto riquinhos, índios, chineses e esquimós não estiverem dispostos ou não puderem se unir em algum aparelho funcional que possa lidar com a situação. As suas falas e medos de aliança prematura são absurdas porque nenhuma aliança de forças com integridade revolucionária contra a opressão pode ser prematura. Se ela é qualquer coisa, ela é tardia, porque as forças da contrarrevolução estão varrendo o mundo, e isso está acontecendo precisamente porque no passado as pessoas se uniram em bases que perpetuam a desunião entre as raças e ignoram princípios e análises revolucionárias básicos.

Você ficou irritado porque o Partido Pantera Negra se instrui com os princípios revolucionários do marxismo-leninismo, mas se você olhar através do mundo você vai ver que os únicos países que conseguiram se liberar e resistir a maré contrarrevolucionária são precisamente os países que tem fortes partidos marxistas-leninistas. Todos aqueles países que lutaram por sua liberação apenas com base no nacionalismo se tornaram vítimas do capitalismo e do neocolonialismo, e em muitos casos agora se encontram debaixo de tiranias igualmente opressoras em relação aos antigos regimes coloniais.

Que você não sabe nada sobre o processo revolucionário está claro; que você sabe menos ainda sobre os Estados Unidos e o seu povo está mais claro; e que você sabe menos ainda sobre a humanidade do que você sabe sobre o resto está ainda mais claro. Você fala de um “amor imortal pelo povo negro”. Um amor imortal pelo povo negro que nega a humanidade de outras pessoas está condenado. Foi um amor imortal das pessoas brancas umas pelas outras que as levou a negar a humanidade das pessoas de cor e que expulsou pessoas brancas da própria humanidade. Me parece que um amor imortal pelo nosso povo iria, no mínimo, levar você a uma estratégia que ajudasse nossa luta pela liberação ao invés de levar você a uma aliança de intenções com o comitê McClellan em sua tentativa de destruir o Partido Pantera Negra.

Bem, então adeus, Stokely, e tome cuidado. E esteja atento a algumas pessoas brancas e algumas pessoas negras, porque eu te asseguro que algumas dessas têm dentes que mordem. Lembre-se do que o irmão Malcolm disse em sua autobiografia: “Nós tivemos a melhor organização que o homem negro já teve nos Estados Unidos – e negros a arruinaram!”. PODER AO POVO.

 

ELDRIDGE CLEAVER, Ministro da Informação, Partido Pantera Negra, julho de 1969.

 

Ramparts, setembro de 1969

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de The Black Panthers Speak. Haymarket Books, 2014.
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