Para o infinito e além!

Caros camaradas,

 

Por motivos de força maior e sinistra, estamos preparando nossas despedidas. Já estamos no ponto final do projeto de traduções que havíamos preparado (só nos falta publicar mais um texto) e depois entramos em um hiato sem data pra terminar. Tentamos, na medida de nossas pequenas forças, contribuir o pouco que fosse para a elaboração de uma nova perspectiva socialista desde baixo, coisa que, temos que admitir, não é fácil.

 

Em um país que vive em um sistema de Estado programado por uma ditadura militar fascista (e não podemos nos enganar com isso: mesmo que a forma de governo tenha mudado da ditadura aberta ao governo representativo, a ordem institucional ainda é uma que foi projetada pela reação de 64, das prisões à rede Globo, da polícia ao PMDB[1]) que tinha como um dos seus principais objetivos o combate da “ameaça comunista”[2], não poderia mesmo ser fácil. 1988 é o ano de uma constituição que enquanto mantém no fundo geral a ordem das coisas de antes, no detalhe aceitou certos compromissos com as esquerdas (alguns deles, derrotas mínimas que fizeram com que Sarney dissesse que a constituição de 88 era inviável), a maior parte deles ficando na letra morta ou sendo pervertida pela dinâmica capitalista, da reforma agrária ao SUS (é preciso lembrar que, nesse mesmo momento, o primeiro grande ato político da República de 88 foi o massacre da CSN, com a intervenção do exército para manter a classe operária no seu devido lugar[3]…).

 

O Estado brasileiro, na “transição para a democracia”, cria um dispositivo para tentar gerenciar os conflitos sociais sem que eles saiam do controle, mantendo a organização geral com uma “democracia de baixa intensidade” – ou, como nos disse um militante da velha guarda sobre a República de 88, em uma “democradura”. Esse dispositivo mágico, que funcionava quase sem travar e ranger até o ano 2013, tem um nome: “sistema partidário”[4]. Quando, sob a pressão da derrota eleitoral de 1989, das desilusões da queda da URSS (que, paradoxalmente, apesar de já ter virado o Cabo do Revisionismo havia muitas décadas e não passar de um capitalismo burocrático, continuava a ser uma referência imaginária quanto à possibilidade de um horizonte não-capitalista de vida) e do “fim da história”, da recomposição dos comportamentos da classe trabalhadora sob as contrarreformas neoliberais, e da presença de tendências reformistas no seu interior o bloco político PT/CUT fez a opção pela institucionalização, foi a esse dispositivo e a esse sistema de Estado que ele se integrou[5]. Não é estranho que daí em diante o movimento de massas e as organizações anticapitalistas no Brasil tenham passado por um radical processo de captura pelas instituições de Estado e de adaptação às regras do jogo do capitalismo subimperialista (ou semi-periférico) brasileiro. Enquanto nossos pais cantavam as belezas da “democracia” e das eleições diretas para presidente, os milicos entregavam a casa em ordem para o consórcio empresarial que controlava o projeto-Brasil (não sem deixar pra trás um caminho de migalhas de pão e dispositivos convenientes para fazer o caminho de volta, caso necessário).

 

De nossa perspectiva, não é possível avaliar de maneira justa a atual composição de classe sem compreender a decomposição da classe imposta pelo projeto militar e por seus aparelhos de Estado, de uma sistema público de ensino precário à hegemonia quase total da mídia (da casa) grande. Enquanto, por uma pequena janela de tempo, a produção de uma inteligência coletiva desde baixo e à esquerda era mobilizada pelas novas instituições independentes da classe, das oposições sindicais às escolas camponesas, passando pela rede de militantes e intelectuais à esquerda que se posicionavam abertamente (e em luta) nas instituições de ensino do Estado, com a integração do bloco político conduzido pelo Partido dos Trabalhadores ao sistema estatal da República de 88 essa produção passou a ser abafada, reduzida e controlada. O projeto-Brasil é, hoje, o país mais marcadamente anticomunista da América Latina, com direito à difusão de um discurso que vai de par com o Tea Party norte-americano. É quase como punição por esse compromisso histórico da esquerda dos anos 80 com o capitalismo nacional que volta a aparecer um monstro de duas cabeças no lugar de uma inteligência coletiva revolucionária: por um lado, os vários grupelhos sectários, cada um com uma orientação estratégica mais genial do que a anterior, que mal conseguem conter suas posições anticomunistas e atendendo aos gostos individuais mais variados, indo desde o verniz “libertário” aos coletivos de orientação “pós-moderna” – por outro, o retorno do dogmatismo burocrático e da caricatura do materialismo histórico na forma de um “socialismo de Estado” e de um programa nacional-chauvinista marcadamente economicista (curiosamente e seguindo sua tendência histórica à confusão, as tendências trotskistas parecem se limitar a oferecer uma versão particular de um e de outro ao mesmo tempo em que tentam se integrar como “ala de oposição” ao “sistema partidário”).

 

Mas se esse monstro consegue ganhar um pouco mais de fôlego e dobrar as mangas hoje (ainda que sempre afastado do movimento de massas real) é porque a crise do “sistema partidário” é, hoje, uma realidade. Não existe lado de fora na luta de classes, e a integração do movimento de massas e das lutas das e dos trabalhadores no Estado capitalista teve um custo para o “sistema partidário” na forma da concessão de algumas das exigências históricas dos de baixo, de modo que o sistema conseguisse manter sua legitimidade, gerenciar politicamente as pressões (e, como é a tradição dessa ordem autoritária e ultra-racista que é o projeto-Brasil, deixando para os moradores das periferias, indígenas e demais rebeldes a lei do chumbo e do sangue). Mas, como já se disse há mais de 40 anos, esse tipo de captura tem um limite bastante curto. A história é conhecida: o projeto-Brasil é, hoje como há 500 anos, baseado na aliança entre duas frações dos de cima – de um lado, uma burguesia-parasita, de tipo colonial e oligárquico, ligada ao agro e à dívida pública (e talvez, como se tem visto nas últimas, ao tráfico internacional de cocaína), por outra uma burguesia ligada ao setor industrial ou “produtivo” e ao processo de circulação de mercadorias interno (que, segundo as fábulas, é chamada de “burguesia nacional”). A todo momento em que tenta se aventurar pelas trilhas de um capitalismo nacional independente ou coisa do tipo, a “burguesia nacional” busca estender as mãos para os de baixo, na tentativa de consolidar sua força política e alterar as regras do jogo, oferendo concessões aqui e ali (é esse pacto que, entre nós, é chamado de “progressismo”). Mas, como burguesia industrial de um país dependente, ela não pode sustentar coletivamente o pacto que, individualmente, busca manter: para manter alguma competitividade no capitalismo global, é preciso superexplorar os trabalhadores na periferia, comprimir os salários e restringir o que é gasto com a reprodução da classe trabalhadora. Resultado: ameaçada pelo aumento do poder organizativo da classe que é consequência dos ganhos salariais e das conquistas no terreno da reprodução, vendo sua taxa de lucro diminuir e sua competitividade no capitalismo mundial cair, a burguesia nacional só pode roer a corda e romper o pacto que havia feito com os debaixo, voltando à aliança normal com a “lumpenburguesia”[6] e promovendo uma caçada geral aos ganhos concedidos (em um pouco além) no processo[7]. Quando o PT foi integrado ao “sistema partidário”, foi dado um passo na domesticação dos de baixo e pavimentado o caminho para o pacto “progressista”. Depois de 2013, quando os de baixo começaram abertamente a se aventurar por novos caminhos e a respirar de maneira autônoma, para além do controle do “sistema partidário”, estavam colocadas as primeiras pedras para a ruptura do pacto, e o que veio depois não foi muito mais do que a repetição (muito) farsesca da ruptura dos outros pactos “progressistas” anteriores. Com uma diferença, no entanto, que deixa as coisas um pouco mais trágicas: como o pacto foi operado e orquestrado dentro de uma ordenação institucional em que estava tudo dominado, ele rebaixou ainda mais o tom (muito mais), dando garantias de segurança ao setor financeiro, dividindo lençóis com uma parte do agro e dispensando a possibilidade de uma reação repressiva e aberta como em ’64, levando um palhaço à presidência do comitê de negócios da burguesia.

 

A missão que se impõe agora é retomar, em certo sentido, a lembrança e a lição dos camaradas da geração dos anos 60, da Ação Popular à Polop, passando por todos os rachas à esquerda do PCB – como diria Marighella, “é hora de trabalhar pela base, mais e mais pela base”, rompendo ao mesmo tempo com o “sistema partidário” e com a lógica das seitas socialistas e semissocialistas. Certamente, não para repetir as mesmas estratégias e impasses dos camaradas do ciclo de lutas dos anos 60, mas para retomar algumas linhas gerais, para conquistar um passado que nos foi arrancado pelos milicos, para retomar uma elaboração viva e criativa do materialismo histórico, capaz de contribuir como a rearticulação política de uma oposição antagônica e pela base, autônoma (das instituições que pretendem representa-la, do poder do capital, e em que cada um dos elementos “específicos”– mulheres, negros, LGBT’s enquanto mulheres, negros, LGBT’s – possam ter sua autonomia organizativa respeitada ao mesmo tempo em que se integram ao ciclo de lutas de massas), uma nova esquerda extraparlamentar radical e consequente. As lições dos companheiros do MPL, em 2013, das recentes ocupações das escolas secundaristas, em 2016, e a continuidade da luta dos povos indígenas – talvez o setor mais radicalizado nacionalmente – dão o tom a seguir. Resta aos militantes comunistas saber seguir o fio da meada e não recusar o novo.

Até breve!

 

 

 

[1] Sobre a diferença entre sistema de Estado e forma de governo, ver HARNECKER, Marta. Los conceptos elementales del materialismo historico, p. 120-122 e LÊNIN, V.I. “Sobre o Estado” em Obras escolhidas – vol. 3, p.176-190.

[2] Cf. GIANNOTTI, Vito. História das lutas dos trabalhadores no Brasil, p. 173-193.

[3] Nas palavras do líder sindical Juarez Antunes: “Foi a violência tremenda da Nova República”. Cf. o vídeo “VOLTA REDONDA – GREVES, CONFLITOS E MORTES EM 10 DE NOVEMBRO DE 1988”, em https://www.youtube.com/watch?v=4BH7KaVm0ts&t=316s.

[4] Ver o texto de Sergio Bologna, A tribo das toupeiras, em https://autonomistablog.wordpress.com/2017/06/17/sergio-bologna-a-tribo-das-toupeiras/.

[5] Quanto à CUT especificamente, vale lembrar que já desde esse período do fim dos anos 80 estava posto o debate sobre a “desideologização da CUT”, o “sindicalismo de resultados” e a filiação a centrais sindicais internacionais de orientação pelega. O “novo sindicalismo” já em meados dos anos 90 estava integrado ao aparelho sindical do Estado, um aparelho já bastante velho. Cf. GIANNOTTI, Vito. História das lutas dos trabalhadores no Brasil, p. 256-257, 279-280.

[6] Cf. GUNDER FRANK, André. Lumpenbourgeoisie and Lumpendevelopment: Dependency, Class and Politics in Latin America.

[7] A elaboração de todo esse processo cabe ao livro fundamental de Ruy Mauro Marini, Subdesenvolvimento e revolução. Cf. especialmente pp.57-66, 96-99 e 135-143.

O Estado brasileiro, na “transição para a democracia”, cria um dispositivo para tentar gerenciar os conflitos sociais sem que eles saiam do controle, mantendo a organização geral com uma “democracia de baixa intensidade” – ou, como nos disse um militante da velha guarda sobre a República de 88, em uma “democradura”. Esse dispositivo mágico, que funcionava quase sem travar e ranger até o ano 2013, tem um nome: “sistema partidário”. Quando, sob a pressão da derrota eleitoral de 1989, das desilusões da queda da URSS (que, paradoxalmente, apesar de já ter virado o Cabo do Revisionismo havia muitas décadas e não passar de um capitalismo burocrático, continuava a ser uma referência imaginária quanto à possibilidade de um horizonte não-capitalista de vida) e do “fim da história”, da recomposição dos comportamentos da classe trabalhadora sob as contrarreformas neoliberais, e da presença de tendências reformistas no seu interior o bloco político PT/CUT fez a opção pela institucionalização, foi a esse dispositivo e a esse sistema de Estado que ele se integrou

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