Huey P. Newton – Intercomunalismo

Nós, o Partido Pantera Negra, acreditamos que tudo está em constante estado de mudança, então usamos uma estrutura de pensamento que pode nos colocar em relação com o processo de mudança. Isto é, nós acreditamos que as conclusões a que chegamos sempre vão mudar, mas que os fundamentos do método pelo qual chegamos a nossas conclusões permanecerá constante. Nossa ideologia, portanto, é a parte mais importante de nosso pensamento.

Existem muitas ideologias diferentes ou escolas de pensamento, e todas elas começam com um conjunto de afirmações a priori. A humanidade ainda é limitada em seu conhecimento e tem dificuldade, nesse momento histórico, de falar sobre o início das coisas e o fim das coisas sem começar com premissas que ainda não podem ser provadas.

Isso é verdade em relação a ambas as escolas gerais de pensamento – a idealista e a materialista. Os idealistas baseiam seu pensamento em certas pressuposições sobre as coisas das quais eles têm muito pouco conhecimento; os materialistas gostam de pensar que estão em contato com a realidade, ou o mundo material, desconsiderando o fato de que eles apenas assumem que há um mundo material.

O Partido Pantera Negra escolheu pressupostos materialistas para sustentar sua ideologia. Essa é uma escolha puramente arbitrária. O idealismo pode ser o caso real; podemos não estar aqui. Não sabemos realmente se estamos em Connecticut ou em São Francisco, ou se estamos sonhando ou em um estado de sonho, ou se estamos acordados e em um estado de sonho. Talvez estejamos apenas em algum lugar no vazio; simplesmente não podemos ter certeza. Mas como os membros do Partido Pantera Negra são materialistas, acreditamos que algum dia os cientistas poderão oferecer informações que nos darão não apenas a evidência mas a prova de que há um mundo material e de que a sua gênese foi material – movimento e matéria – e não espiritual.

Até esse momento, no entanto, e para os fins dessa discussão, peço apenas que concordemos na estipulação de que um mundo material existe e se desenvolve externa e independentemente de todos nós. Com essa elaboração, temos o fundamento para um diálogo inteligível. Pensamos que há um mundo material e que ele existe e se desenvolve independentemente de todos nós, e pensamos que o organismo humano, através de seus sistema sensorial, tem a habilidade de observar e analisar este mundo material.

O materialista dialético acredita que tudo o que existe tem contradições internas fundamentais. Por exemplo, os deus africanos ao sul do Saara sempre tiveram pelo menos duas cabeças, uma para o bem e outra para o mal. Agora, as pessoas criam Deus a sua própria imagem, criam o que elas pensam Dele – porque Deus é sempre um “Ele” em sociedades patriarcais – e como ele é ou deve ser. Então, os africanos disseram, com efeito: sou tanto bom quanto mal, bem e mal são duas partes de uma coisa que sou eu. Este é um exemplo de uma contradição interna.

As sociedades ocidentais, por outro lado, dividiram o bem e o mal, colocando Deus nos céus e o diabo lá embaixo no inferno. O bem e o mal lutam pelo controle sobre as pessoas nas religiões ocidentais, mas eles são duas entidades completamente diferentes. Esse é um exemplo de uma contradição externa.

Essa luta entre tendências opostas mutuamente exclusivas no interior de todas as coisas que existem explica o fato observável de que todas as coisas têm movimento e estão em um estado constante de transformação. As coisas se transformam porque enquanto uma tendência ou força está dominante em relação a outra, a mudança é, apesar disso, uma constante e em algum ponto o equilíbrio irá se alterar e haverá um novo desenvolvimento qualitativo. Novas propriedades passarão a existir, qualidades que não existiam de todo antes. Estas qualidades não podem ser analisadas sem compreender, em primeiro lugar, as forças em luta no interior de cada objeto, e ainda assim as limitações e determinações dessas novas qualidades não podem ser definidas pelas forças que as criaram.

O conflito de classes se desenvolve pelos mesmos princípios que governam todos os outros fenômenos no mundo material. Em uma sociedade contemporânea, uma classe que controla a propriedade domina a classe que não controla a propriedade. Há uma classe de trabalhadores e uma classe de proprietários, e por isso há uma contradição básica nos interesses dessas duas classes, que estão constantemente lutando uma com a outra. Agora, como as coisas não permanecem as mesmas, podemos ter certeza de uma coisa: o proprietário não permanecerá o proprietário e as pessoas que são dominadas não permanecerão dominadas. Não sabemos exatamente como isso vai acontecer, mas depois que analisamos todos os outros elementos da situação, podemos fazer algumas previsões. Podemos estar certos de que se aumentarmos a intensidade da luta, chegaremos a um ponto em que o equilíbrio de forças irá mudar e haverá um salto qualitativo para uma nova situação como um novo equilíbrio social. Eu digo “salto” porque sabemos pela experiência com o mundo físico que quando transformações desse tipo ocorrem, elas ocorrem com uma grande força.

Esses princípios do desenvolvimento dialético não representam uma lei de ferro que pode ser aplicada mecanicamente ao processo social. Existem exceções a essas leis de desenvolvimento e transformação, e é por isso que, como materialistas dialéticos, enfatizamos que temos que analisar cada conjunto de condições separadamente e fazer análises concretas das condições concretas em cada instância. Não se pode prever o resultado, mas pode-se ganhar perspectiva o suficiente para coordenar o processo.

O método dialético é essencialmente uma ideologia, mas ainda assim acreditamos que ele é superior a outras ideologias, porque ele nos coloca mais em contato com o que acreditamos ser o mundo real; ele aumenta nossa habilidade para lidar com esse mundo e moldar o seu desenvolvimento e mudança.

Vocês poderiam facilmente perguntar “Bem, esse método pode ser aplicado com sucesso em uma instância particular, mas como vocês sabem que ele será infalível em todos os casos?”. A resposta é que não sabemos.

Não falamos em “todos os casos” ou em “guia infalível” porque tentamos não falar em termos tão absolutos e inclusivos. Apenas dizemos que temos que analisar cada instância, que descobrimos que esse método é o melhor disponível no decorrer de nossas análises, e que pensamos que essa método irá continuar a se mostrar assim no futuro. Nós às vezes temos um problema porque as pessoas não compreendem a ideologia que Marx e Engels começaram a desenvolver. As pessoas dizem “Vocês dizem ser marxistas, mas vocês sabem que Marx era racista?”. Dizemos, “Bem, ele provavelmente era racista: ele fez uma declaração uma vez sobre o casamento de uma mulher branca e de um homem negro, e chamou o homem de gorila ou coisa assim. Os marxistas dizem que ele só estava brincando e que essa declaração mostra a proximidade de Marx ao sujeito, mas isso obviamente é bobagem. Então, parece que Marx era racista.

Se você é um marxista, então o racismo de Marx afeta o seu próprio julgamento, porque se você é um marxista então você é alguém que venera Marx e o pensamento de Marx. Lembrem-se, no entanto, que o próprio Marx disse “eu não sou um marxista”. Esses marxistas se preocupam com as conclusões às quais Marx chegou com seu método, mas eles jogam fora o próprio método – ficando em uma posição completamente estática. É por isso que a maior parte dos marxistas realmente são materialistas históricos: eles olham para o passado buscando respostas para o futuro, e isso não funciona.

Se você é um materialista dialético, no entanto, o racismo de Marx não importa. Você não acredita nas conclusões de uma pessoa, mas na validade de um modo de pensamento; e nós, no partido, como materialistas dialéticos, reconhecemos Karl Marx como um dos grandes contribuidores para esse modo de pensamento. Se Marx era ou não racista é irrelevante e imaterial em relação à questão de se o método de pensamento que ele ajudou a desenvolver nos mostra verdades sobre os processos no mundo material ou não. E isso é verdadeiro em todas as disciplinas. Em cada disciplina, você encontra pessoas com visões distorcidas e que estão em um nível baixo de consciência, e que, no entanto, tem lampejos de inspiração e produzem ideias que devem ser consideradas. Por exemplo, John B. Watson certa vez disse que seu passatempo favorito era caçar e enforcar negros, e ainda assim ele deu grandes passos adiante na investigação e na análise de respostas condicionadas.

Agora que falei alguma coisa sobre a ideologia do Partido, vou descrever a história do Partido e como mudamos nosso entendimento do mundo.

Quando começamos, em outubro de 1966, éramos o que se poderia chamar de nacionalistas negros. Percebemos as contradições na sociedade, a pressão sobre o povo negro em particular, e vimos que a maior parte das pessoas no passado resolveu alguns de seus problemas formando nações. Nós, portanto, dizíamos que era racional e lógico que nós acreditássemos que nossos sofrimentos como um povo terminaríamos quando estabelecêssemos uma nação própria, composta com nosso próprio povo.

Depois de um tempo, vimos que alguma coisa estava errada com essa resolução do problema. No passado, a nacionalidade era uma coisa relativamente fácil de conquistar. Se olharmos ao redor agora, no entanto, vemos que o mundo – o espaço de terra, as partes habitáveis como as conhecemos – está bastante povoado. Então, percebemos que para criar uma nova nação deveríamos nos tornar uma fração dominante nesta, e ainda assim o fato de que não tínhamos poder era a contradição que nos levava a buscar a nacionalidade em primeiro lugar. Era um círculo sem fim, vejam: para alcançar a nacionalidade, tínhamos que nos tornar uma força dominante, mas para nos tornarmos uma força dominante, precisávamos de uma nação.

Então, fizemos uma análise mais profunda e descobrimos que para que nós fôssemos uma força dominante, teriam pelo menos que ser numericamente grandes. Nós nos desenvolvemos de simples nacionalistas ou de nacionalistas separatistas para nacionalistas revolucionários. Dissemos que nos juntaríamos com todas as outras pessoas no mundo, lutando pela descolonização e pela nacionalidade, e chamamos a nós mesmos de uma “colônia dispersa” porque não tínhamos a concentração geográfica que as outras chamadas colônias tinham. Mas tínhamos comunidade negras por todo o país – São Francisco, Los Angeles, New Haven – e há muitas semelhanças entre essas comunidades e o tipo de colônia tradicional. Também pensamos que se nos aliássemos às outras colônias nos tornaríamos um grande número e teríamos chances maiores, uma força maior; e é disso que precisávamos, claro, porque apenas a força fazia de nós um povo colonizado.

Vimos que não apenas era benéfico para nós que fôssemos nacionalistas revolucionários, como era benéfico expressar nossa solidariedade com aqueles amigos que sofriam muitos dos mesmos tipos de pressão que nós sofríamos. Assim, mudamos nossas autodefinições. Dissemos que não apenas éramos nacionalistas revolucionários, ou seja nacionalistas que querem mudanças revolucionárias em tudo, incluindo o sistema econômico que o opressor nos obriga a ter – mas que também éramos indivíduos profundamente preocupados com os outros povos do mundo e seus desejos por revolução. De maneira que para mostrar nossa solidariedade, decidimos nos chamar internacionalistas.

Originalmente, como eu disse, pensávamos que as pessoas poderiam resolver alguns de seus problemas construindo nações, mas essa conclusão mostrou uma lacuna em nossa compreensão do movimento dialético do mundo. Nosso erro foi assumir que as condições nas quais os povos se tornaram nações no passado ainda existem. Para ser uma nação, deve-se satisfazer certas condições essenciais, e se essas coisas não existem ou não podem ser criadas, então não é possível se tornar uma nação.

No passado, Estados-nação eram normalmente habitados por povos de uma determinada origem étnica e religiosa. Eles eram divididos de outros povos seja por um corpo de água ou por um grande espaço terrestre desocupado. Essa separação natural dava à classe dominante da nação e ao povo em geral em certo grau de controle sobre os tipos de instituições políticas, econômicas e sociais que estabeleciam. Isso dava a eles um certo grau de controle sobre seu destino e seu território. Eles estavam seguros, pelo menos na medida em que não seriam atacados ou violados por outra nação a dez mil milhas de distância, simplesmente porque os meios para transportar tropas tão longe não existiam. Essa situação, no entanto, não poderia durar. A tecnologia se desenvolveu até que houve uma transformação qualitativa determinada nas relações no interior e entre as nações.

Sabemos que não se pode mudar uma parte do todo sem mudar o todo, e vice-versa. Enquanto a tecnologia se desenvolvia, houve um aumento nas capacidades militares e nos meios de transporte e comunicação, as nações começaram a controlar outros territórios, distantes dos seus. Normalmente, elas controlavam essas outras terras mandando administradores e colonos que iriam extrair trabalho do povo ou recursos da terra – ou os dois. Esse é o fenômeno que conhecemos como colonialismo.

O controle dos colonos sobre a terra controlada e o povo cresceu de tal modo que não era necessário nem mesmo que o colono estivesse presente para manter o sistema. Ele voltou para a casa. O povo estava tão integrado com o agressor que a sua terra não parecia mais uma colônia. Mas como a sua terra não se parecia também com um Estado livre, alguns teóricos decidiram chamar esses territórios de “neocolônias”. Argumentos relativos a sua definição precisa se desenvolveram. Elas são colônias ou não? E se não são, o que são? Os teóricos sabiam que alguma coisa havia acontecido, mas não sabiam o que era.

Usando o método da dialética materialista, nós no Partido Pantera negra vimos que os Estados Unidos não eram mais uma nação. Eles eram outra coisa, eles não eram mais uma nação. Eles não apenas haviam expandido os seus limites territoriais, mas haviam expandido todos os seus controles também. Nós o chamamos de império. Bem, em uma época o mundo teve um império no qual as condições de dominação eram diferentes – o Império Romano. A diferença entre os impérios romano e americano é que as outras nações podiam existir externa e independentemente do Império Romano porque seus meios de exploração, conquista e controla eram todos relativamente limitados.

Mas quando dizemos “império” hoje, queremos dizer exatamente isso. Um império é um Estado-nação que se transformou em um poder que controla todas as terras e povos do mundo.

Pensamos que não existem mais colônias ou neocolônias. Se um povo é colonizado, deve ser possível para eles se descolonizarem e se tornarem o que eram antes. Mas o que acontece quando as matérias primas são extraídas e o trabalho é explorado em um território que cobre todo o planeta? Quando as riquezas de toda a Terra são dispendidas e usadas para alimenta uma máquina industrial gigantesca no território dos imperialistas? Então, o povo e a economia estão tão integrados ao império do imperialismo que é impossível “descolonizá-los” para retornar às condições de existência anteriores.

Se as colônias não podem se “descolonizar” e retornar a sua existência original como nações, então as nações não existem mais. Nem, pensamos, elas voltarão a existir de novo. E uma vez que devem haver nações para que o nacionalismo revolucionário e o internacionalismo façam sentido, decidimos que nos chamaríamos por um nome novo.

Dizemos que hoje o mundo é uma coleção de comunidades dispersas. Uma comunidade é diferente de uma nação. Uma comunidade é uma pequena unidade com um conjunto completo de instituições que existe para servir a um pequeno grupo de pessoas. E dizemos, além disso, que a luta mundial é entre um pequeno círculo que administras e lucra com o império dos Estados Unidos, e os povos do mundo que querem determinar seus próprios destinos.

Chamamos essa situação de intercomunalismo. Estamos agora na era do intercomunalismo reacionário, me que um círculo dominante, um pequeno grupo de pessoas, controla todos os outros povos usando sua tecnologia.

Ao mesmo tempo, dizemos que essa tecnologia pode resolver a maior parte das contradições materiais com as quais as pessoas se deparam, que existem condições materiais que permitiriam que a população mundial desenvolvesse uma cultura que seja essencialmente humana, que desenvolvesse aquilo que permitiria que as pessoas resolvessem suas contradições de uma maneira que não levaria ao massacre coletivo de todos nós. O desenvolvimento de uma cultura desse tipo seria o intercomunalismo revolucionário.

Algumas comunidades começaram a fazer isso. Elas liberaram seus territórios e estabeleceram governos provisórios. Nós as reconhecemos e dizemos que esses governos representam os povos da China, da Coréia do Norte, os povos nas zonas liberadas do Vietnã do Sul e o povo no Vietnã do Norte.

Acreditamos que os seus exemplos devem ser seguidos para que um dia não exista um intercomunalismo reacionário (império) mas um intercomunalismo revolucionário. O povo do mundo deve tomar o poder do pequeno círculo dominante e expropriar os expropriadores, arranca-los do seu trono e torna-los iguais, distribuindo os frutos de nosso trabalho, que nos foram negados, de maneira equitativa. Sabemos que a maquinaria para realizar essas tarefas existe e queremos acesso a ela.

O imperialismo estabeleceu as fundações para o comunismo mundial, e o próprio imperialismo cresceu até se tornar um intercomunalismo reacionário porque o mundo agora está integrado em uma comunidade. A revolução das comunicações, combinada com a dominação expansiva do império americano, criou uma “cidade global”. Os povos de todas as culturas são sitiados pelas mesmas forças e têm acesso às mesmas tecnologias.

Só existem diferenças de grau entre o que está acontecendo aos negros aqui e o que está acontecendo a todos os povos do mundo, incluindo os africanos. As suas necessidades são as mesmas e a sua energia é a mesma. E as contradições de que eles sofrem só serão resolvidas quando o povo estabelecer um intercomunalismo revolucionário em que eles dividirão toda a riqueza que produzem e habitarão um mesmo mundo.

O cenário da história está montado para uma transformação deste tipo: as bases tecnológicas e administrativas para o socialismo existem. Quando as pessoas tomarem os meios de produção e as instituições sociais, então haverá um salto qualitativo e uma mudança na organização da sociedade. Irá levar algum tempo para resolver as contradições do racismo e de todo tipo de chauvinismo; mas como o povo irá controlar suas próprias instituições sociais, ele será livre para se recriar e para estabelecer o comunismo, um estado do desenvolvimento humano no qual os valores humanos irão moldar as estruturas da sociedade. Nesse momento, o mundo estará pronto para um nível ainda maior do qual não podemos saber nada.

 

***

 

Questão – Fico me perguntando: agora que vocês estabeleceram uma ideologia com a qual podem analisar os diferentes tipos de imperialismo acontecendo nos Estados Unidos, o que vocês farão quando a revolução acontecer? O que acontece uma vez que você tomou as estruturas construídas pelo capitalismo e é responsável por elas? Vocês não vão encontrar as mesmas lutas entre as formas dominantes de governo e os inferiores?

 

Newton – Não vai ser a mesma coisa, porque nada permanece o mesmo. Todas as coisas estão em um constante estado de transformação e portanto você terá novas contradições próprias desse novo fenômeno. Podemos estar bastante certos de que haverá contradições depois que o intercomunalismo revolucionário for a ordem do dia, e podemos estar certos de que haverá contradições depois do comunismo, que é um estado superior ao intercomunalismo revolucionário. Sempre haverá contradições, caso contrário as coisas iriam parar. Então, não é uma questão de “quando a revolução vier”: a revolução está sempre acontecendo. Não é uma questão de “quando a revolução vai acontecer”: a revolução está acontecendo a todos os dias, a cada minuto, porque o novo está sempre lutando contra o velho pela dominância.

Também dizemos que a determinação é uma limitação, e que toda limitação é uma determinação. Essa é a luta do velho e do novo mais uma vez, quando uma coisa parece negar a si mesma. Por exemplo, o imperialismo nega a si mesmo depois de estabelecer os fundamentos para o comunismo, e o comunismo eventualmente negará a si mesmo por suas contradições internas, e então se moverá para um estado ainda mais superior. Eu gosto de pensar que finalmente nos moveremos para um estágio chamado “divindade”, em que o homem saberá os segredos do início e do fim e terá todo controle sobre o universo – e quando eu digo universo, quero dizer movimento e matéria. Isso é apenas especulação, claro, porque a ciência ainda não nos ofereceu a resposta, mas acreditamos que o fará no futuro.

Então é claro que sempre haverá contradições no futuro. Mas algumas contradições são antagônicas e outras são não antagônicas. Normalmente, quando falamos de contradições antagônicas, estamos falando de contradições que se desenvolvem a partir de conflitos econômicos e pensamos que, no futuro, quando o povo tiver o poder, essas contradições antagônicas irão ocorrer cada vez menos

 

Você poderia falar sobre a questão de como vão expropriar os expropriadores quando são eles que têm um exército e  que têm uma força policial?

Bem, todas as coisas carregam um sinal positivo assim como um sinal negativo. É por isso que dizemos que toda determinação tem uma limitação e toda limitação tem uma determinação. Por exemplo, o seu organismo carrega contradições internas desde o momento em que você nasce e começa a se deteriorar. Primeiro, você é um bebê, então uma criança pequena, depois um adolescente e daí em diante até que você é velho. Continuamos nos desenvolvendo e nos consumindo ao mesmo tempo; estamos nos negando. E é dessa maneira que o imperialismo está negando a si mesmo neste momento. Ele se deslocou para uma fase que chamamos de intercomunalismo reacionário e, assim, estabeleceu as condições para o intercomunalismo revolucionário, porque enquanto o inimigo dispersa suas tropas e controla cada vez mais espaço, ele se torna cada vez mais fraco. E na medida em que ele se torna cada vez mais fraco, o povo se torna cada vez mais forte.

Você falou de diferenças tecnológicas entre os vários países do mundo. Como vocês vão integrar todos esses países em um intercomunalismo se essas diferenças existem?

Eles já estão integrados pelo simples fato de que o círculo dominante controla todos eles. No interior da região geográfica da América do Norte, por exemplo, você tem Wall Street, você tem as grandes fábricas de Detroit produzindo automóveis e você tem o Mississippi, onde não existe nenhuma indústria automobilística. Isso quer dizer que o Mississippi não é parte da totalidade completa? Não, isso apenas quer dizer que os expropriadores escolheram colocar a indústria automobilística em Detroit e não no Mississippi. Ao invés de produzir automóveis, eles produzem comida no Mississippi para dar mãos fortes para o povo em Detroit ou em Wall Street. Então a resposta para a sua pergunta é que os sistemas são inclusivos: só porque você não tem uma fábrica em cada comunidade não quer dizer que a comunidade é distinta ou independente ou autônoma.

Bem, então você vê cada uma das comunidades dispersas como tendo algumas coisas para resolver no seu interior antes que elas possam participar do intercomunalismo?

Elas são parte do intercomunalismo, do intercomunalismo reacionário. O que as pessoas têm que fazer é se tornarem conscientes dessa condição. A principal preocupação do Partido Pantera Negra é elevar o nível de consciência do povo com sua teoria e sua prática ao ponto de que ele possa enxergar exatamente o que o está controlando e o que o está oprimindo, e, portanto, enxergar exatamente o que deve ser feito – ou pelo menos qual é o primeiro passo. Uma das maiores contribuições de Freud foi tornar as pessoas conscientes de que elas controlavam grande parte das suas vidas em seu inconsciente. Ele tentou levantar o véu do inconsciente e torna-lo consciente: esse é o primeiro passo para se sentir livre, o primeiro passo para exercer o controle. Parece ser natural que as pessoas que não gostem de ser controladas. Marx fez uma contribuição parecida à liberdade humana, só que ele apontou as coisas externas que controlam as pessoas. Para que as pessoas libertem a si mesmas dos controles externos, elas têm que conhecer esses controles. A consciência do que é expropriador é necessária para expropriar o expropriador, para derrubar os controles externos.

Na intercomuna absoluta você vê comunidades separadas, determinadas geograficamente, tendo uma história específica e um conjunto único de experiências? Cada comunidade manteria algum tipo de identidade separada?

Não, penso que quer gostemos ou não, a dialética tornaria necessário que houvesse uma identidade universal. Se não tivermos uma identidade universal, então teremos chauvinismo cultural, racial e religioso, o tipo de etnocentrismo que temos agora. Então dizemos que mesmo que no future existam pequenas diferenças entre os padrões de comportamento, diferentes ambientes, isso seria uma coisa secundária. E lutamos por um futuro no qual percebamos que somos todos Homo sapiens e temos mais em comum do que o contrário. Estaremos ainda mais próximos do que estamos agora.

 

Gostaria de retornar a uma coisa de que falávamos há um minuto ou dois. Me parece que a mídia de massas de certo modo psicologizou muitas das pessoas em nosso país, em nossa própria região geográfica, para que elas cheguem a desejar muitos dos controles que são impostos a elas pelo sistema capitalista. Então, como vamos conduzir essa revolução se um grande número de pessoas, pelo menos nesse país, são de fato psicologicamente parte da classe dominante?

Parte da ou controladas por ela?

 

Bem, parte dela em um sentido psicológico, porque elas não estão realmente no poder. É uma maneira psicológica de falar sobre a classe média. Você tem algumas reflexões quanto a isso?

Em primeiro lugar, temos que compreender que tudo tem uma base material, e que as nossas personalidade não existiriam, o que outras pessoas chamam de nosso espírito ou nossa mente não existiria, se não fôssemos organismos materiais. Então, para compreender porque algumas vítimas da classe dominante podem se identificar com o círculo dominante, devemos observar suas vidas materiais, e se fizermos isso iremos perceber que as mesmas pessoas que se identificam com o círculo dominante também são muito infelizes. Os seus sentimentos podem ser comparados aos de uma criança: a criança deseja amadurecer para que possa controlar a si mesma, mas ela acredita que precisa da proteção do seu pai para fazer isso. Ela tem pulsões conflitantes. Os psicólogos chamariam isso de conflito neurótico se a criança não conseguir resolvê-lo.

Em certo sentido, então, é disso que estamos falando. Em primeiro lugar, as pessoas tem que estar conscientes das maneiras pelas quais são controladas, então temos que compreender as leis científicas envolvidas, e uma vez que isso for feito, podemos começar a fazer o que quisermos para lidar com o fenômeno.

 

Mas se as forças opositoras nesse ponto incluem um grande número de pessoas, incluindo a maior parte das classes médias, então de onde virá o impulso revolucionário?

Entendo onde você está querendo chegar. Esse impulso virá do número crescente do que chamamos “desempregáveis” em uma sociedade. Chamamos negros e pessoas do terceiro mundo, em particular, e pessoas pobres, em geral, de “desempregáveis” porque eles não tem as qualificações necessárias para trabalhar em uma sociedade de tecnologia altamente desenvolvida. Lembre-se de que eu dizia que toda a sociedade, como toda era, contém a sua oposição: o feudalismo produziu o capitalismo, que destruiu o feudalismo, e o capitalismo produziu o socialismo, que irá destruir o capitalismo. Bem, o mesmo é verdade para o intercomunalismo reacionário. O desenvolvimento tecnológico cria uma grande classe média, e o número de operários também aumenta. Os operários são bem pagos e conseguem muitos confortos. Mas a classe dominante ainda está interessada apenas em si mesma. Ela pode assumir certos compromissos e oferecer um pouco – de fato, o círculo dominante  chegou até mesmo a desenvolver uma estrutura social ou um Estado de bem-estar para manterá oposição em baixa – mas a tecnologia se desenvolve, e a necessidade de operários diminui. Foi estimado que daqui a dez anos, apenas uma pequena porcentagem da força de trabalho atual será necessária para fazer funcionar as indústrias. Então, o que irá acontecer ao seu operário que nesse momento está ganhando quatro dólares por hora? A classe operária irá diminuir, a classe de desempregáveis irá crescer porque serão necessárias mais e mais habilidades para operar as máquinas e menos pessoas. E na medida em que essas pessoas se tornam desempregáveis, então elas irão se tornar cada vez mais alienadas; até mesmo os compromissos socialistas não serão suficientes. Então você poderá encontrar uma integração entre, digamos, os desempregáveis negros e os peão branco racista que não tiver um emprego regular e está possesso com os negros que ele pensa que ameaçam o seu trabalho.  Esperamos que ele irá juntar forças com as pessoas que já são desempregáveis, mas quer ele faça isso quer não, a sua existência material terá mudado. O proletário irá se tornar lumpemproletário. É essa mudança futura, o aumento do lumpemproletariado e a diminuição do proletariado – que nos faz dizer que o lumpemproletariado é a maioria e que ele carrega a bandeira revolucionária.

 

Gostaria de fazer uma pergunta sobre o Partido. Você disse que vê o Partido Pantera Negra primeiramente como uma força para educar o povo, elevar a sua consciência, dar fim à sua opressão, etc. Você vê o Partido como educador do povo negro em especial ou como educador de todos?

Dizemos que o povo negro é a vanguarda da revolução nesse país. E uma vez que ninguém poderá ser livre até que o povo da América seja livre, então o povo negro é a vanguarda da revolução mundial. Não dizemos isso de uma maneira autoproclamatória. Herdamos esse legado primeiramente porque somos os últimos, e como se diz, “os últimos serão os primeiros”.

Acreditamos que os americanos negros são os primeiros verdadeiros internacionalistas; não apenas o Partido Pantera Negra, mas os americanos negros. Somos internacionalistas porque fomos internacionalmente dispersados pela escravidão, e podemos facilmente nos identificar com outros povos em outras culturas. Por causa da escravidão, nunca nos sentimos realmente conectados a uma nação da mesma maneira que o camponês estava conectado com o solo da Rússia. Estamos sempre muito longe de casa.

E, por fim, a condição histórica dos americanos negros nos levou a sermos progressistas. Sempre falamos de igualdade, você vê, ao invés de acreditar que outras pessoas devem ser iguais a nós. O que queremos não é dominação, mas que o domínio seja abandonado. Queremos viver com outras pessoas. Não queremos dizer que somos melhores: na verdade, se temos um defeito é que tendemos a pensar que somos piores que as outras pessoas porque passamos por uma lavagem cerebral para pensar assim. Então, esses fatores subjetivos, baseados na existência material do povo negro na América contribuem para nossa posição de vanguarda.

Agora, no que diz respeito ao Partido, ele tem sido exclusivamente negro até aqui. Estamos pensando em como lidar com a situação racista na América e com a reação que as pessoas negras têm ao racismo. Temos que chegar ao povo negro primeiro, porque eles estavam carregando o peso primeiro, e fazemos todo o possível para que eles se liguem a nós.

 

Você estava falando a algum tempo atrás sobre o problema de simplificar a sua ideologia para as massas. Poderia falar um pouco mais sobre isso?

Sim, esse é nosso maior problema. Até aqui, não consegui fazer isso bem o suficiente para evitar ser vaiado, mas estamos aprendendo. Acho que uma maneira de mostrar como a dialética funciona é usar exemplos práticos e mais exemplos práticos. A razão pela qual as vezes tenho medo de fazer isso é que as pessoas podem pegar cada exemplo e pensar “Bem, se isso é verdade em um caso, então deve ser verdade em todos os outros casos”. Se elas fizerem isso, então elas se tornam materialistas históricos como a maior parte dos estudiosos marxistas e dos partidos marxistas. Esses estudiosos e partidos não tratam de dialética de modo algum, caso contrário iriam saber que nesse momento a bandeira revolucionária não será carregada pela classe proletária, mas pelo lumpemproletariado.

 

Falando de contradições, uma das contradições mais óbvias na comunidade negra é a diferença de perspectiva entre a burguesia negra e as classes populares negras. Como vocês elevam o nível de consciência na comunidade ao ponto de que a burguesia negra veja os seus próprios interesses como sendo os mesmos que os das classes populares?

Bem, estamos mais uma vez lidando com atitudes e valores que tem que ser mudados. Todo o conceito da burguesia – burguesia negra – é uma espécie de ilusão. É uma burguesia de faz de conta, e isso é verdade também para a maior parte da burguesia branca. Existem muito poucos controladores até mesmo na classe média branca. Eles mal conseguem manter as suas cabeças acima do nível da água, estão pagando todas as contas, vivendo da mão à boca, e ainda tem os custos adicionais de se recusarem a viver como as pessoas negras, veja só. Então, na verdade eles não controlam nada, são controlados.

Do mesmo modo, não reconheço a burguesia negra como diferente de outras pessoas exploradas. Ela está vivendo em um mundo de fantasia, e toda a questão é elevar a consciência ao ponto de mostrar os seus interesses reais, os seus interesses objetivos e verdadeiros, assim como nossos amigos progressistas e radicais brancos tem que fazer na comunidade branca.

 

Como vocês fazem para elevar o nível de consciência na comunidade negra? Educacionalmente, quero dizer. Vocês tem programas de educação formais?

 

Bem, vimos a necessidade de formalizar a educação porque não acreditávamos que um tipo de estudo aleatório traria necessariamente os melhores resultados. Também vimos as supostas casas do saber não fazer nada além de nos deseducar; elas ou nos expulsavam ou nos faziam sair. Fizeram as duas coisas comigo. Então o que estamos tentando fazer é estruturar uma instituição educacional nossa.

Nossa primeira tentativa nessa linha é o que chamamos nosso Instituto Ideológico. Até agora, temos mais ou menos cinquenta estudantes, e esses cinquenta estudantes estão muito bem, diria que são estudantes únicos, porque todos eles são irmãos e irmãs da vizinhança. O que quero dizer é que eles são lumpemproletários. A maior parte deles são pessoas expulsas e marginalizadas, a maior parte deles abandonou a escola no oitavo, nono ou décimo ano. E os poucos que ficaram até o fim não aprenderam a ler ou a escrever, assim como eu não sabia ler até os dezesseis. Mas agora eles estão aprendendo dialética, e estão aprendendo ciências – eles estudam física e matemática para que possam compreender o universo – e estão aprendendo porque pensam que isso é relevante para eles agora. Eles vão levar esse conhecimento de volta para a comunidade e a comunidade irá, por sua vez, ver a necessidade do nosso programa. Ele é muito prático e está ligado às necessidades do povo de uma maneira que faz com que sejam receptivos às nossas lições e ajuda a abrir os seus olhos para o fato de que o povo é o verdadeiro poder. São eles que irão provocar a mudança, não apenas nós. Uma vanguarda é como a ponta de uma lança, é aquilo que vai primeiro. Mas o que realmente fere é o fim da lança, porque ainda que a ponta faça a perfuração necessária, é o fim que penetra. Sem a sua parte final, uma lança não é nada além de um palito de dentes.

 

E a Universidade Malcolm X? Vocês diriam que ela tem o seu valor?

A questão toda é: quem está no controle? Nós, no Partido Pantera Negra, controlamos nosso Instituto Ideológico. Se o povo (e quando dizemos “o povo”, quero dizer o povo oprimido) controla a Universidade Malcolm X, se eles a controlam sem reservas ou sem ter que responder pelo que é feito ali ou por quem fala ali, então a Universidade Malcolm X é progressista. Se não é esse o caso, então a Universidade Malcolm X, ou qualquer universidade com qualquer outro nome, não é progressista. Eu gosto do seu nome, apesar disso. [Risos]

O que eu não compreendo é o seguinte: se a unidade de identidade vai existir no intercomunalismo revolucionário, então quais serão as contradições que irão produzir novas mudanças? Me parece que seria virtualmente impossível evitar algumas contradições.

Concordo com você. Não se pode evitar as contradições, e não se pode evitar a luta de tendências opostas na mesma totalidade. Mas eu não posso te dizer quais serão essas novas oposições porque elas não existem ainda. Entendo o que eu digo?

 

Acho que sim. Mas como tudo isso se encaixa com a sua ideia de uma identidade unificada?

Bem, em primeiro lugar, não lidamos como panaceias. O salto qualitativo do intercomunalismo reacionário para o intercomunalismo revolucionário não será o milênio. Ele não irá levar imediatamente a uma identidade universal ou a uma cultura que seja essencialmente humana. Ele irá apenas oferecer as bases materiais para o desenvolvimento dessas tendências.

Quando o povo tomar os meios de produção, quando tomarem os meios de comunicação de massas e daí em diante, ainda haverá racismo, ainda haverá etnocentrismo, ainda haverá contradições. Mas o fato de que o povo estará no controle de todas as unidades produtivas e institucionais da sociedade – não apenas as fábricas, mas também a mídia – irá permitir que ele comece a resolver essas contradições. Isso irá produzir novos valores, novas identidades; isso irá moldar uma cultura nova e essencialmente humana, na medida em que as pessoas resolvem velhos conflitos baseados em contradições econômicas e culturais. E em algum momento, haverá uma mudança qualitativa e o povo terá transformado o intercomunalismo revolucionário em comunismo.

Chamamos esse ponto de “comunismo” porque nesse momento da história o povo não apenas irá controlar as unidades produtivas e institucionais da sociedade, mas terão também tomado posse de suas próprias atitudes subconscientes em relação a essas coisas; e pela primeira vez na história, ele terá uma relação mais ou menos consciente com o mundo material – pessoas, plantas, livros, máquinas, mídia, tudo – em que ele vive. Ele terá poder, ou seja, o controle dos fenômenos em torno dele e fará com que eles ajam de uma maneira esperada, e então ele irá conhecer seus verdadeiros desejos. O primeiro passo nesse processo é a conquista, pelo povo, de suas próprias comunidades.

Me deixe dizer mais uma coisa antes de voltar à sua questão. Eu gostaria de ver o tipo de comunismo que acabei de descrever chegar a existir e penso que ele irá existir. Mas o conceito está tão além da minha compreensão que eu não poderia nomear as contradição que existirão nesse momento, ainda que eu tenha certeza de que a dialética irá continuar. Vou ser honesto com você. Não importa como eu tende compreender isso, eu ainda não compreendo.

 

Mas eu ainda não vejo de onde as contradições poderiam vir.

 

Eu também não consigo ver, porque elas ainda não existem. Apenas a base para elas existe, e não podemos falar sobre coisas que ignoramos, coisas que não conhecemos. Os filósofos já fizeram isso o suficiente.

 

Você está falando dessa ideologia do intercomunalismo como parte do programa do Partido Pantera Negra e nos dizendo que a ideia é lutar por uma unidade de identidade. Ainda assim, a uns minutos atrás vocês disse que o Partido só aceita membros negros. Isso parece uma contradição para mim.

Bem, acho que é mesmo. Mas para explicar isso, eu teria que voltar ao que disse antes. Somos a ponta de lança na maior parte do tempo, e tentamos não estar muito na frente das massas do povo, muito além do seu pensamento. Temos que compreender que a maior parte das pessoas não está pronta para as coisas de que nós estamos falando.

Agora, muitas das nossas relações com outros grupos, como os radicais brancos com os quais fizemos alianças, foram criticadas pelas próprias pessoas que estamos tentando ajudar. Por exemplo, oferecemos nossas tropas aos vietnamitas, e isso teve uma resposta negativa do povo. E me refiro ao povo realmente oprimido. Pessoas que recebem nossos programas de bem-estar nos escreveram cartas dizendo “Pensei que o Partido era para nós; por que você quer dar o nosso sangue por esses vietnamitas sujos?”. Eu concordaria com você e diria que isso é uma contradição. Mas é uma contradição que estamos tentando resolver. Veja, estamos tentando oferecer uma terapia, você poderia dizer, à nossa comunidade e elevar a sua consciência. Mas primeiro temos que ser aceitos. Se o terapeuta não é aceito, então ele não pode entregar a mensagem. Tentamos fazer o que for possível para encontrar o paciente no terreno no qual ele ou ela está, porque, no fim das contas, são eles que estão em questão. Então, diria que estamos sendo pragmáticos para fazer o serviço que tem que ser feito, e então, quanto ele estiver feito, o Partido Pantera Negra não será mais o Partido Pantera Negra.

 

Isso me traz uma questão relacionada a essa. Como você vê as lutas das mulheres e pessoas gays nesse momento? Quer dizer, você as vê como parte importante da revolução?

 

Pensamos que é muito importante se ligar a isso e compreender as causas da opressão das mulheres e pessoas gays. Podemos ver que existem contradições entre os sexos e entre homossexuais e heterossexuais, mas acreditamos que essas contradições deveriam ser resolvidas na comunidade. Frequentemente, as supostas vanguardas revolucionárias tentaram resolver essas contradições isolando mulheres e pessoas gays, e, claro, isso só quer dizer que os grupos revolucionários se isolaram de uma das mais poderosas e importantes forças no interior do povo. Não acreditamos que a opressão de mulheres e gays irá acabar com a criação de comunidades separadas para cada grupo. Vemos essa como uma ideia incorreta, assim como a ideia de uma nação separada. Se as pessoas querem fazer isso, têm todo direito de fazer, mas isso não vai resolver os seus problemas. Então, tentamos mostrar às pessoas a maneira correta de resolver esses problemas: a vanguarda tem que incluir todas as pessoas e compreender os seus limites.

 

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de The Huey P. Newton Reader. Nova York: Seven Stories Press. 2002.
Você pode contribuir enviando e-mails indicando erros de tradução ou sugestões de melhoria para autonomistablog@gmail.com
Este e outros textos de tradução do Coletivo Autonomista! estão disponíveis em: https://autonomistablog.wordpress.com/

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