Huey Newton – A fundação do Partido Pantera Negra

texto retirado de Revolutionary Suicide, a autobiografia de Huey Newton, p. 115-119]

 

Por todo esse tempo, Bobby e eu não pensávamos no Partido Pantera Negra, não tínhamos nenhum plano para liderar uma organização, e o Programa de Dez Pontos ainda estava no futuro. Havíamos visto Watts se levantar no ano anterior. Havíamos visto como a polícia atacou a comunidade de Watts depois de gerar o problema em primeiro lugar. Havíamos visto Martin Luther King ir a Watts em um esforço para acalmar o povo, e vimos a sua filosofia de não-violência ser recusada. O povo negro foi ensinado a ser não-violento, isso era muito profundo em nós. Para que servia, no entanto, a não-violência quando a polícia estava determinada a agir pela força? Havíamos visto a polícia de Oakland e a Patrulha Rodoviária da Califórnia começarem a carregar as suas espingardas abertamente como uma maneira de assustar a comunidade. Vimos tudo isso, e reconhecemos que a consciência crescente do povo negro estava quase no ponto de explodir. As pessoas devem se relacionar com a história de sua comunidade e com seu futuro. Tudo que vimos nos convenceu de que nosso tempo havia chegado.

Dessa necessidade nasceu o Partido Pantera Negra. Bobby e eu finalmente não tínhamos outra escolha a não ser formar uma organização para envolver nossos irmãos das classes de baixo.

Trabalhamos nisso em conversas e discussões. A maior parte das conversas eram casuais. Bobby viviam perto do campus, e a sua sala virou uma espécie de quartel general. Apesar de ainda estarmos com o Soul Students, fomos a poucas reuniões, e quando íamos nossa presença era na maior parte das vezes incômoda; colocávamos questões que perturbavam todo mundo. Nossas conversas um com o outro se tornaram uma coisa importante. Os irmãos que tinham horários de aula livres e outros que só andavam pelo campus entravam e saíam da casa de Bobby. Bebíamos cerveja e vinho e ruminávamos a situação política, nossos problemas sociais e os méritos e limites de outros grupos. Também discutíamos as conquistas negras do passado, em especial na medida em que nos ajudavam a compreender os eventos atuais.

Em um certo sentido, essas sessões na casa de Bobby eram nossa aulas de educação política e o Partido de certa forma saiu delas. Mesmo depois que nos organizamos formalmente, continuamos as discussões em nosso escritório. No momento, tínhamos avançado para tratar não só dos problemas, mas das soluções possíveis.

Também líamos. A literatura dos povos oprimidos e de suas lutas por libertação em outros países é muito grande, e passamos por esses livros para ver como as suas experiências poderiam nos ajudar a entender nossa situação difícil. Lemos a obra de Frantz Fanon, especialmente Os condenados da Terra, os quatro volumes do Presidente Mao, e Guerra de guerrilhas, de Che Guevara. Che e Mao eram veteranos das guerras do povo e tinham construído estratégias vitoriosas para libertar o seu povo. Lemos os trabalhos desses homens porque os víamos como companheiros; o opressor que os havia controlado estava nos controlando, tanto direta quanto indiretamente. Acreditávamos que era necessário saber como eles conquistaram sua liberdade para ir adiante em conseguir a nossa. No entanto, não nos limitávamos a simplesmente importar ideias e estratégias; tínhamos que transformar o que aprendíamos em princípios e métodos aplicáveis aos nossos irmãos no bairro.

Mao, Fanon e Guevara, todos viam claramente que o povo tinha sido privado de seus direitos de nascença e de sua dignidade, não por uma filosofia ou por palavras, mas debaixo da mira de uma arma. Eles sofreram um sequestro por mafiosos e estupros; para eles, a única maneira de conquistar a liberdade é combater a força com força. No fim, isso é uma forma de autodefesa. Ainda que a defesa possa em certos momentos assumir as características da agressão, em última análise o povo não começa, ele simplesmente responde ao que foi feito a ele. O povo respeita a expressão de força e dignidade mostrada por homens que se recusam a se curvar às armas da opressão. Ainda que isso possa significar a morte, esses homens vão lutar, porque a morte com dignidade é preferível à vergonha. Então, existe sempre a chance de o opressor ser superado.

Fanon fez uma declaração durante a guerra da Argélia que me impressionou; ele disse que aquele era o “ano do bumerangue”, que é a terceira fase da violência. Nesse momento, a violência do agressor se volta contra ele e o atinge com um golpe de morte. Ainda assim, o opressor não compreende o processo; ele não sabe mais do que ele sabia no primeiro momento em que começou a violência. Os oprimidos estão sempre na defensiva, o opressor é sempre agressivo e surpreendido quando o povo volta contra ele a força que foi usada contra eles.

Negros armados, de Robert Williams, teve uma grande influência no tipo de partido que desenvolvemos. Williams tinha sido ativo em Monroe, Carolina do Norte, com um programa de autodefesa armada que integrou muitos na comunidade. No entanto, eu não gostava da maneira com a qual ele chamou o governo federal a prestar auxílio; víamos o governo como inimigo, a agência de um grupelho dominante que controla o país. Também tínhamos alguma literatura sobre os Díaconos para a Defesa e a Justiça, na Louisiana, o estado em que eu nasci. Um dos seus líderes passou pela zona litorânea em uma turnê de discursos e para levantar fundos, e gostamos do que ele disse. Os Diáconos tinham feito um bom trabalho em defender os ativistas pelos direitos civis na sua área, mas eles também tinham o hábito de chamar o governo federal para ajudar na defesa ou pelo menos para ajudá-los a defender as pessoas que estavam defendendo a lei. Os Diáconos chegaram mesmo ao ponto de alistar xerifes e policiais locais para defender os ativistas, com a ameaça de que se as instituições de defesa da ordem não os defendesse, os Diáconos os defenderiam. Também víamos a polícia local, a guarda nacional e os militares regulares como um grande grupo armado que se opunha à vontade do povo. Em uma situação limite, o povo não teria nenhuma defesa real a não ser a que pudesse dar a si mesmo.

Lemos também os trabalhos dos defensores da liberdade que tinham feito tanto pelas comunidades negras nos Estados Unidos. Bobby tinha reunido todos os discursos de Malcolm X e ideias de jornais como The Militant e Muhammad Speaks. Estudamos esse material cuidadosamente. Ainda que o programa de Malcolm para a Organização da Unidade Afro-Americana nunca tenha sido colocado em ação, ele deixava claro que os negros precisavam se armar. A influência de Malcolm sempre foi presente. Continuamos a acreditar que o Partido Pantera Negra existe com o espírito de Malcolm.

Frequentemente é difícil dizer exatamente como uma ação ou programa foi determinado de uma maneira espiritual. Esse tipo de coisa intangível é difícil de descrever, ainda que ele possa ser mais significativo do que qualquer influência precisa. Portanto, as palavras nessa página não podem transmitir o efeito que Malcolm teve no Partido Pantera negra, ainda que no que me diz respeito, o Partido seja um testamento vivo ao trabalho da sua vida. Eu não estou dizendo que o Partido fez o que Malcolm teria feito. Muitos outros dizem que os seus programas são os programas de Malcolm. Não dizemos isso, mas o espírito de Malcolm está em nós.

De todas essas coisas – os livros, os escritos e o espírito de Malcolm, nossa análise da situação local – a ideia de uma organização estava saindo. Um dia, muito de repente, quase por acaso, encontramos um nome. Eu tinha lido um panfleto sobre um registro de eleitores no Mississippi, sobre como o condado de Lowndes havia se armado contra a violência estabelecida. O seu grupo político, chamado Organização da Liberdade do Condado de Lowndes, tinha uma pantera negra como símbolo. Alguns dias depois, quando Bobby e eu estávamos conversando, eu sugeri que usássemos a pantera como nosso símbolo e que chamássemos nossa organização política de Partido Pantera Negra. A pantera é um animal feroz, mas não ataca a não ser que seja encurralada; é então que ela atava. A imagem parecia apropriada, e Bobby concordou sem discussão. Nesse ponto, sabíamos que era hora de parar de falarmos e começar a organizarmos. Ainda que sempre tenhamos desejado sair das características retóricas e intelectualistas dos outros grupos, às vezes éramos tão inativos quanto eles. Havia chegado o momento para a ação.

 

 

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de Revolutionary Suicide. Londres: Penguin Classics. 2009.
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