Huey P. Newton – Em defesa da autodefesa: mandato executivo n°1

Em resposta à Lei de Armas de Mulford, o Ministro da Defesa Huey Newton escreveu uma declaração que o Presidente Pantera Bobby Seale entregou na escadaria do Capitólio em Sacramento em 2 de maio de 1967. A declaração é a que segue:

O Partido Pantera Negra para a Autodefesa chama o povo americano em geral e o povo negro em particular a estarem atentos e cuidadosos à Legislatura racista da Califórnia, que agora está pensando em uma legislação com o objetivo de manter o povo negro desarmado e sem poder ao mesmo tempo em que as agências de polícia racistas por todo o país estão intensificando o terror, a brutalidade, o assassinato e a repressão do povo negro.

Ao mesmo tempo que o governo americano está travando uma guerra racista de genocídio contra o Vietnã, os campos de concentração em que japoneses americanos foram internados durante a Segunda Guerra Mundial estão sendo renovados e expandidos. Uma vez que a América reservou historicamente o tratamento mais bárbaro para as pessoas não-brancas, somos forçados a concluir que esses campos de concentração estão sendo preparados para as pessoas negras, que estão determinadas a conquistar sua liberdade por quaisquer meios necessários. A escravidão das pessoas negras desde o início desse país, o genocídio praticado contra os índios americanos e o confinamento dos sobreviventes em reservas, o linchamento selvagem de milhares de mulheres e homens negros, o lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, e agora o massacre covarde no Vietnã, todos testemunham o fato de que a estrutura de poder racista da América só tem uma política para as pessoas de cor: repressão, genocídio, terror e o grande porrete [big stick].

As pessoas negras imploraram, rezaram, peticionaram, se manifestaram e tudo o mais para que a estrutura de poder racista da América corrigisse os erros que historicamente fora feitos contra o povo negro. Todos esses esforços foram respondidos por mais repressão, enganações e hipocrisia. Enquanto a agressão dos governos racistas da América aumenta no Vietnã, os agentes de polícia da América aumentam a repressão às pessoas negras por todos os guetos da América. Cães policiais raivosos, bastões elétricos e patrulhas aumentadas se tornaram imagens comuns nas comunidades negras. A prefeitura oferece um ouvido surdo para os apelos do povo negro para que esse terror crescente seja aliviado.

O Partido Pantera Negra para a Autodefesa acredita que chegou o momento para o povo negro se armar contra esse terror antes que seja tarde demais. A atual Lei Mulford deixa a hora da catástrofe um passo mais próxima. Um povo que sofreu tanto, por tanto tempo, nas mãos de uma sociedade racista, deve traçar a linha em algum lugar. Acreditamos que as comunidades negras da América devem se levantar como uma única pessoa para deter a progressão de uma tendência que leva inevitavelmente à sua destruição total.

 

O Pantera Negra, 2 de julho de 1967

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de The Black Panthers Speak. Haymarket Books, 2014.
Você pode contribuir enviando e-mails indicando erros de tradução ou sugestões de melhoria para autonomistablog@gmail.com
Este e outros textos de tradução do Coletivo Autonomista! estão disponíveis em: https://autonomistablog.wordpress.com/

Todo conhecimento deve ser livre. Por isso, não há restrições à cópia e distribuição desse material. Compartilhe!

Huey P. Newton – Definição Funcional da Política

Política é guerra sem derramamento de sangue. Guerra é política com derramamento de sangue. A política tem as suas características particulares que a diferenciam da guerra. Quando os meios pacíficos de política estão esgotados e o povo não conseguiu o que queria, a política continua. Normalmente, ela termina em conflito físico, que é chamado guerra, e que também é político.

Como não temos poder político, o povo negro não é livre. A reconstrução negra falhou porque o povo negro não tinha poder político e militar. As massas do povo negro na época eram bastante claras quanto à definição de poder político. Era evidente nas músicas do povo negro naquela época. Nas músicas se dizia que no Dia do Jubileu, teríamos quarente acres e duas mulas. Isso foi prometido ao povo negro pelo gabinete Freedman. Isso era a liberdade no que dizia respeito às massas negras.

Os Dez Talentosos, na época, viam a liberdade como operacional na arena política. Pessoas negras foram ativas na arena política durante a reconstrução. Elas eram mais estudadas do que a maior parte dos brancos no sul. Elas haviam sido educadas na França, no Canadá e na Inglaterra, em que foram qualificadas para servir na arena política. Mas ainda assim, a reconstrução negra fracassou.

Quando se atua na arena política, se assume que se tem ou representa o poder; ele é simbólico de uma força poderosa. Existem mais ou menos três áreas de poder na arena política: poder econômico, poder da terra (poder feudal) e poder militar. Como o povo negro não recebeu 40 acres e 2 mulas, seria absurdo ter um representante na arena política.

Quando as pessoas brancas mandam um representante para a arena política, eles tem uma força de poder ou base de poder que representam. Quando as pessoas brancas, através de seus representantes, não conseguem o que querem, sempre existe uma consequência política. Isso fica evidente no fato de que quando os fazendeiros não conseguem um preço adequado por seu cultivo, a economia irá receber uma consequência política. Eles deixarão a sua plantação apodrecer no campo; eles não irão cooperar com outros setores da economia. Para ser político, você deve produzir uma consequência política quando não ganhar o que quer – caso contrário, você é não-político.

Quando as pessoas negras mandam um representante, isso é, de certa maneira, absurdo, porque ele não representa nenhum poder político. Ele não representa o poder da terra, porque não temos nenhuma terra. Ele não representa o poder econômico ou industrial, porque o povo negro não possui os meios de produção. A única maneira pela qual ele pode se tornar político é representar o que normalmente se chama um poder militar – que o PARTIDO PANTERA NEGRA PARA A AUTODEFESA chama de Poder de Autodefesa. O povo negro pode desenvolver o Poder de Autodefesa se armando de casa a cada, de quarteirão a quarteirão, de comunidade a comunidade, por toda nação. Então, vamos escolher um representante político e ele irá colocar para a estrutura de poder os desejos das massas negras. Se os desejos não forem correspondidos, a estrutura de poder receberá uma consequência política. Vamos fazer com que se torne economicamente não-lucrativo para a estrutura de poder continuar com suas práticas opressoras. Então, vamos negociar como iguais. Haverá um equilíbrio entre as pessoas que são economicamente poderosas e as pessoas que são potencialmente destrutivas economicamente.

Os racistas brancos oprimem o povo negro não apenas por razões racistas, mas porque é economicamente lucrativo fazer isso. O povo negro deve desenvolver um poder que irá tornar não-lucrativo para os racistas continuar nos oprimindo. Se os racistas imperialistas brancos na américa continuarem a fazer guerra contra todas as pessoas de cor pelo mundo e também sustentarem uma guerra civil contra os negros aqui na América, irá se tornar economicamente impossível para eles sobreviver. Devemos desenvolver uma estratégia que irá tornar as suas campanhas de guerra não-lucrativas. Esses Estados Unidos racistas operam em função do lucro. Eles levantam as armas e aumentam as guerras por motivos de lucro. Iremos fazer com que abaixem as armas porque elas não irão mais servir ao seu lucro.

Todo homem nasce, portanto ele tem um direito de viver, um direito de participar da riqueza. Se lhe for negado o direito de trabalhar, então lhe é negado o direito de viver. Se ele não puder trabalhar, ele merece um alto padrão de vida, independentemente do seu grau de educação ou das suas habilidades. Deve caber aos administradores do sistema econômico construir um programa para fornecer emprego ou meios de vida para o povo. Negar isso a um homem é negara a vida para ele. Os controladores do sistema econômico são obrigados a dar a cada homem meios de vida. Se eles não podem fazer isso, ou se eles não querem fazer isso, eles não merecem a posição de administradores. Os meios de produção devem ser tomados deles e colocados nas mãos do povo, para que o povo possa organizá-los de modo a dar a todos um meio de vida. O povo irá escolher administradores capazes, motivados por um interesse sincero no bem estar do povo e não pelos interesses da propriedade privada. O povo irá escolher os administradores para controlar os meios de produção e a terra, que são por direito do povo. Até que o povo controle a terra e os meios de produção, não haverá paz. O povo negro deve controlar o destino de sua comunidade.

Como o povo negro deseja determinar seu próprio destino, eles são constantemente atacados com brutalidade pelo exército de ocupação, encarnado pela polícia. Existe uma grande semelhança entre o exército de ocupação no sudestes asiático e a ocupação de nossas comunidades pela polícia racista. Os exércitos estão ali não para proteger o povo do Vietnã do Sul, mas para brutaliza-los e oprimi-los pelos interesses egoístas do poder imperial.

A polícia deve ser o povo da comunidade de uniformes. Não deve haver divisão ou conflito de interesses entre o povo e a polícia. Uma vez que existe essa divisão, então a polícia se torna o inimigo do povo. A polícia deve servir aos interesses do povo, e ser uma e a mesma coisa que eles. Quando esse princípio se rompe, então a polícia se torna um exército de ocupação. Quando historicamente uma raça oprimiu a outra e os policiais são recrutados da raça opressora para patrulhar as comunidades do povo oprimido, existe uma contradição intolerável.

O CÃES POLICIAIS RACISTAS DEVEM SE RETIRAR IMEDIATAMENTE DE NOSSAS COMUNIDADES, PARAR COM O ASSASSINATO INJUSTIFICÁVEL E A BRUTALIDADE E A TORTURA DO POVO NEGRO, OU ENCARAR A FÚRIA DO POVO EM ARMAS.

 

The Black Panther, 17 de janeiro de 1969

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de The Black Panthers Speak. Haymarket Books, 2014.
Você pode contribuir enviando e-mails indicando erros de tradução ou sugestões de melhoria para autonomistablog@gmail.com
Este e outros textos de tradução do Coletivo Autonomista! estão disponíveis em: https://autonomistablog.wordpress.com/

Todo conhecimento deve ser livre. Por isso, não há restrições à cópia e distribuição desse material. Compartilhe!

 

Linda Harrison – Sobre o nacionalismo cultural

O nacionalismo cultural é reconhecido por muitos que pensam de uma maneira revolucionária como uma fase específica pela qual as pessoas passam antes de se tornarem revolucionárias. Esse não é sempre o caso, e muitas pessoas permanecem no nível do nacionalismo cultural por todas as suas vidas. Nos Estados Unidos, o nacionalismo cultural pode ser sintetizado nas palavras de James Brown – “Sou negro e tenho orgulho”.

O nacionalismo cultural se manifesta de muitas maneiras, mas todas essas manifestações se fundam, essencialmente, em um mesmo fato; uma negação universal e uma ignorância das atuais realidades políticas, sociais e econômicas e uma concentração no passado como eixo de referência.

Esse fenômeno não é único a esse estado da revolução em que nos encontramos; nem é específico da luta dos “cidadãos” negros dos Estados Unidos pela liberdade. Frantz Fanon, em OS CONDENADOS DA TERRA disse, sobre esse fenômeno, que “Não há nenhuma tomada da ofensiva – e nenhuma redefinição das relações. Há simplesmente a concentração em um núcleo duro de cultura que está se tornando cada vez menor – inerte e vazio.”

Aqueles que acreditam na teoria do “sou negro e tenho orgulho” – acreditam que existe uma dignidade inerente em deixar o cabelo ao natural; que uma buba faz de um escravo um homem; e que uma linguagem comum, o swahili, faz com todos nós sejamos irmãos. Essas pessoas normalmente querem uma cultura enraizada na cultura da África, uma cultura que ignora a colonização e a brutalização que foram parte e parcela, por exemplo, da formação e do surgimento da língua swahili. Em outras palavras, o nacionalismo cultural ignora o político e o concreto e se concentra no mito e na fantasia.

Um homem que vive sob a escravidão e suas extensões raramente reconquista sua dignidade rejeitando as roupas do seu escravizador; ele raramente reconquista a sua dignidade, exceto por um confronto em condições iguais com seu escravizador. Todo homem pode morrer e essa é a única coisa que os torna iguais. Em muitos sistemas, aqueles com dinheiro morrem menos frequentemente do que os que não têm. Qualquer confronto que dê ao homem, não importa a sua posição econômica e social, uma chance igual de morrer em condições iguais, é um avanço para aqueles que se consideram por baixo e um rebaixamento para os que se consideram por cima. Se ver no mesmo plano que seu escravizador é perceber que os que escravizam e oprimem não tem o direito divino de fazê-lo. Não há nada do que se orgulhar na colonização e na escravidão e só da iniciativa dos oprimidos pode surgir alguma coisa significativa e justa para a sua existência.

Citando Fanon, “O desejo de se ligar à tradição ou de retornar tradições abandonadas à vida mais uma vez não apenas significa ir contra o curso da história, mas também se opor ao seu próprio povo –”. Os nacionalistas culturais, com os seus adereços, apoiam muitos dos males que os colocaram na posição de servilismo. Na ausência de plataformas e ações construtivas e corretivas, com o apoio e o lucro de “ser negro” eles se tornam gente que busca o lucro vendendo brincos 400% acima do custo e bubas do brechó de garagem com preços da Quinta Avenida. Uma espécie de gente vendida tentando se tornar respeitável. Explorar aqueles com mentes e bolsos mais fracos.

E como o nacionalismo cultual não tem doutrina política como regra, os limites de ser negro e orgulhoso são próximos. Aonde vai uma mulher depois que conseguiu deixar o cabelo ao natural [has got a natural] – para o salão, é claro! – e paga $5,50 pelo penteado, $2,00 pelo spray de óleo capilar, $2,00 pelo condicionador, $3,50 para desembaraçar, e então para a loja de roupas para uma roupa tradicional que custa entre $25,00 e $500. No caminho de ida e volta dessas compras e gastos, eles ainda observam a opressão e a exploração do seu povo – com roupas diferentes.

Como o nacionalismo cultural não oferece nenhum desafio ou risco contra a ordem social estabelecida, o aumento de atores, estrelas de cinema, assistentes sociais, professores, oficiais de condicional e políticos “negros e orgulhosos” é imenso. A burguesia e uma posição de classe superior não são obstáculo para o “negro” e vice-versa. A estrutura de poder, depois da luta de mandatos, desculpa e até venera esse orgulho recém encontrado que ela usa para vender cada produto sob o sol. Até mesmo seus representantes superiores o recebem bem e o transformam em um “capitalismo negro” e fenômenos do tipo. Todo mundo é negro e a burguesia continua a odiar seus irmãos e irmãs negros menos favorecidos; e os oprimidos continuam na vontade. O assistente social “negro” continua a trabalhar para um sistema de seguridade social degradante e os oficiais de condicional continuam a violar os direitos dos que estão em seus encargos.

Não temos uma nação sem uma luta contra aqueles que nos oprimem. Não temos cultura além da cultura nascida da nossa resistência à opressão. “Nenhum sistema colonial toma a sua justificativa do fato de que os territórios (ou o povo) que domina são culturalmente inexistentes. Nunca se fará o colonialismo ficar vermelho de vergonha expondo nossos pouco conhecidos tesouros culturais aos seus olhos”. Os povos da África tinham culturas. Foram apenas o racismo e as necessidades e desejos econômicos que escravizaram esses países e povos. A economia transcende as culturas no contexto capitalista. Isso quer dizer que o capitalismo sempre vai utilizar a necessidade econômica, real ou imaginária, como base para a expansão. Ele vai, é claro, se justificar com conclusões e explicações racistas sobre o progresso que estão trazendo para os “nativos” e “selvagens” e nenhuma cultura no mundo, a não ser uma cultura revolucionária, vai parar ou deter ou destruir esse avanço. O colonialismo, a escravidão, o neocolonialismo e outras extensões do capitalismo prosperam por mil e uma culturas.

“É em torno das lutas populares que a cultura negra africana toma sua substância – e não de canções, poemas e folclore”. Uma cultura que não desafie integral e positivamente as forças dominantes e exploradoras – forças políticas, econômicas e sociais – é uma cultura que é ou pré-escravidão, pré-colonialista ou completamente inventada, e em todos os casos completamente inútil. E o nacionalismo cultural é quase sempre baseado em racismo. Ouvimos “odeie o branquelo” e “mate o desgraçado”. Essas declarações ignoram as análises- análises intelectuais, como as feitas por Eldrige Cleaver sobre as relações entre o governo e os porcos, e os fuzileiros, etc.; e elas ignoram a possibilidade de aliados. Em todos os casos, o nacionalismo cultural – no interior da luta, busca criar uma ideologia racista. Ser um racista na América é, com certeza, uma posição justificável, mas é uma posição deficiente para se assumir como revolucionário.

“A adesão à cultura negra africana e à unidade cultural da África é conseguida, em primeiro lugar, apoiando incondicionalmente a luta dos povos pela liberdade. Ninguém pode desejar sinceramente a difusão da cultura africana se não dá apoio prático à criação das condições necessárias para a existência dessa cultura.”

Como um nacionalista cultural pode dizer que ama e é orgulhoso de um país e um continente que sofreu por centenas de anos de colonialismo e escravidão, e ainda está sofrendo em todas as formas, disfarçadas ou abertas, dessas instituições? Como ele pode negar as realidade políticas de sua própria vida na América se vestindo com uma bata (de cores vibrantes) para participar na cultura de um povo rasgado pela revolução e pela revolta? Como pode um nacionalista cultural proclamar a adesão às cultura da África, quando a cultura da África é uma cultura revolucionária? A solidariedade com os povos revolucionários por todo o mundo fez nascer uma cultura comum a povos que não conhecem nada um do outro a não ser que sofrem debaixo de sistemas de exploração, degradação e racismo semelhantes. Que os seus povos tenham passado por muitas das mesmas transformações e que em nenhum caso o povo irá reconquistar a sua dignidade e encontrar a sua liberdade a não ser por um confronto igual e cara a cara, pelas táticas e ações revolucionárias. “Uma cultura revolucionária é a única cultura válida para os oprimidos!!”

Todas as citações, exceto a última, foram tiradas de OS CONDENADOS DA TERRA de Fanon.

 

The Black Panther, 2 de fevereiro de 1969

 

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de The Black Panthers Speak. Haymarket Books, 2014.
Você pode contribuir enviando e-mails indicando erros de tradução ou sugestões de melhoria para autonomistablog@gmail.com
Este e outros textos de tradução do Coletivo Autonomista! estão disponíveis em: https://autonomistablog.wordpress.com/

Todo conhecimento deve ser livre. Por isso, não há restrições à cópia e distribuição desse material. Compartilhe!

Eldridge Cleaver – Uma carta aberta para Stokely Charmichael

Stokely Charmichael, Conarky, Guiné:

 

A sua carta de renúncia como Primeiro Ministro do Partido Pantera Negra chegou, acho, mais ou menos um ano atrasada. Na verdade, desde o dia da sua indicação para o cargo – 17 de fevereiro de 1968 – os acontecimentos provaram, para começar, que você não era adequado para o serviço. Mesmo nessa época já estava claro que a sua posição sobre a aliança com organizações revolucionárias brancas entrava em conflito com a do Partido Pantera Negra. Mas, na época, pensamos que até você conseguiria largar a paranoia do SNCC sobre controle branco e continuar a tocar o processo de construir o tipo de aparelho revolucionário de que precisamos nos Estados Unidos para unir todas as forças revolucionárias do país para derrubar o sistema do capitalismo, imperialismo e racismo.

E sei como esses termos são chutados por aí como corpos sem vida e que é fácil deixar que as realidades horríveis por trás delas fiquem obscurecidas com repetição demais. Mas quando você vê a miséria em que as pessoas vivem como resultado da política dos exploradores, quando você vê os efeitos da exploração nos corpos esqueléticos de crianças pequenas, quando você vê a fome e o desespero, então esses termos ganham vida de uma maneira nova. Uma vez que você mesmo fez essa viagem e viu tudo com seus próprios olhos, você deve saber que o sofrimento não olha para a cor, que as vítimas do imperialismo, do racismo, do colonialismo e do neocolonialismo vêm em todas as cores, e que eles precisam de uma unidade baseada em princípios revolucionários e não na cor da pele.

As outras acusações que vocês faz na sua carta – sobre a nossa recém descoberta ideologia, nosso dogmatismo, nossa truculência, etc. – parecem ter uma importância secundária porque com a exceção, talvez, do honorável Elijah Muhammad, você é o gato mais dogmático nas ruas hoje, e eu nunca soube que você se opunha a torcer braços ou, inclusive, pescoços. De muitas maneiras, a sua carta me pareceu ser um eco e uma repetição das acusações feitas ao partido pelos lambe-botas no comitê McClellan. E uma vez que você escolheu esse momento para denunciar o partido, nós – e tenho certeza de que muitas outras pessoas fora do partido também – temos que ler a sua carta dessa perspectiva. O único ponto na sua carta que eu acho que é realmente seu é o sobre a aliança com brancos, porque é sobre esse ponto que as nossas diferenças se deram desde o início.

Você nunca conseguiu distinguir a história do Partido Pantera Negra da história da organização de que você foi presidente um dia – o Comitê de Coordenação Não-Violenta Estudantil (SNCC). É compreensível que você possa ter esses medos de organizações negras serem controladas, ou parcialmente controladas, por brancos, porque a maior parte dos seus anos no SNCC se passaram precisamente nessas condições. Mas o Partido Pantera Negra nunca esteve nessa situação. Como nunca tivemos que tirar o controle da nossa organização das mãos dos brancos, não ficamos acorrentados ao tipo de medo paranoico que se desenvolveu por vocês do SNCC. Portanto, conseguimos nos sentar com os brancos e construir soluções para os nossos problemas comuns se tremer nas botas pensando se vamos ou não ser controlados no processo. Sempre me pareceu que você diminui a inteligência dos seus irmãos e irmãs negros quando você os avisa constantemente que eles têm que tomar cuidado com as pessoas brancas. Afinal de contas, você não é a única pessoa negra da Babilônia que foi vitimada pelo racismo branco. Mas você fala como se estivesse com medo das pessoas brancas, como se você ainda estivesse fugindo dos capitães do mato que vão colocar as mãos em você e colocar você em um saco.

Na verdade, foi precisamente a sua proclamação nebulosa do Poder Negro que deu à estrutura de poder a sua nova arma contra o nosso povo. O Partido Pantera Negra tentou te dar uma chance de resgatar o Poder Negro dos porcos que o capturaram e o transformaram na justificativa para o capitalismo negro. Com James Farmer na administração Nixon controlando a implementação do capitalismo negro sob a palavra de ordem do Poder Negro, que valor ela pode ter agora na luta do nosso povo pela liberação? E denunciar o Partido Pantera Negra é o melhor que você pode fazer para combater esse mal? Eu pensaria que a sua responsabilidade vai um pouco mais longe do que isso. Embora você tivesse razão quando disse que LBJ nunca se levantaria e proclamaria o Poder Negro, Nixon fez isso e ele está sustentando a coisa com milhões de dólares. Então, agora os seus velhos amiguinhos do Poder Negro se tornaram lubrificante para facilitar a chegada da burguesia negra na estrutura de poder.

Dando a você a posição de Primeiro Ministro do Partido Pantera Negra, estávamos tentando resgatar você da burguesia negra que tinha se grudado nas suas pegadas e estava montando você feito uma mula. Agora eles roubaram a sua bola e correram para o touchdown: seis pontos para Richard Milhous Nixon.

Em fevereiro de 1968, no Encontro de Aniversário Libertem Huey, em Oakland, Califórnia, quando você fez a sua primeira fala pública depois de voltar para os Estados Unidos do seu tour triunfante pelos países revolucionários do Terceiro Mundo, você aproveitou a oportunidade para denunciar a aliança que o Partido Pantera Negra fez com o Partido da Paz e da Liberdade. O que você convocava, contra isso, era uma Frente Única Negra que unisse todas as forças da comunidade negra, da esquerda à direita, para formar fileiras contra os brancos e todos iriam pulando direto para a liberdade. Nas fileiras da Frente Única Negra você queria colocar os nacionalistas culturais, os capitalistas negros, e os Tio Tom profissionais, mesmo que fossem precisamente esses três grupos que estavam trabalhando para acabar com a sua merda mesmo antes que ela começasse (se lembra do que Ron Karenga fez com o seu encontro em Los Angeles?).

Você tinha grandes sonhos nesses tempos, Stokely, e as suas visões, pelo lado bom, eram heroicas. Pelo lado ruim, quando se tratava de detalhes da realidade, a sua visão era cega. Você era incapaz de distinguir os seus amigos e os seus inimigos porque tudo o que você podia ver era a cor da pele do gato. Foi essa cegueira que levou você a defender Adam Clayton Powell, aquele chacal do Harlem, quando ele foi atacado por seus irmãos chacais no congresso. E foi essa cegueira que levou você a defender aquele policial negro em Washington, D.C., que estava sendo fodido por todos os brancos acima dele no departamento de polícia para o qual ele carregava a arma enquanto patrulhava a comunidade negra. Resumindo, o seu hábito de olhar para o mundo por óculos de cor negra levaria você, no nível doméstico, a formar fileiras com inimigos do povo negro como James Farmer, Whitney Young, Roy Wilkins e Ron Karenga; e no nível internacional a terminar no mesmo saco que Papa Doc Duvalier, Joseph Mobuto e Haile Selassie. Sim, nos opúnhamos a essa merda na época e nos opomos a ela agora de maneira ainda mais forte, especialmente uma vez que a administração Nixon roubou o seu programa de você e, eu acho, te excluiu dele.

E agora você quer liberar a África! Por onde você vai começar, Gana? O Congo? Biafra? Moçambique? África do Sul? Se você não percebeu, eu acho que você deveria saber que os irmãos na África que estão envolvidos na luta armada contra os colonialistas não gostariam de nada mais do que de você arrumando as suas malas cheias de souvenires africanos e voltando para a Babilônia. Eles nunca perdoaram você pela boca grande que você tece em Dar-es-Salaam quando você supôs que tinha que dizer a eles como tocarem os seus assuntos. Me parece que você agora está encurralado entre os extremos da sua própria retórica. Por um lado, você se separou da luta na Babilônia, e, por outro, você não está para se tornar o redentor da Mãe África.

Os inimigos do povo negro aprenderam algumas coisas com a história, mesmo que você não tenha, e eles estão descobrindo novas maneiras de nos dividir mais rápido do que estamos descobrindo novas maneiras de nos unir. Uma coisa que eles sabem, e nós sabemos, e que vocês parece não notar, é que não vai haver revolução ou liberação negra nos Estados Unidos enquanto revolucionários negros, brancos, mexicanos, porto riquinhos, índios, chineses e esquimós não estiverem dispostos ou não puderem se unir em algum aparelho funcional que possa lidar com a situação. As suas falas e medos de aliança prematura são absurdas porque nenhuma aliança de forças com integridade revolucionária contra a opressão pode ser prematura. Se ela é qualquer coisa, ela é tardia, porque as forças da contrarrevolução estão varrendo o mundo, e isso está acontecendo precisamente porque no passado as pessoas se uniram em bases que perpetuam a desunião entre as raças e ignoram princípios e análises revolucionárias básicos.

Você ficou irritado porque o Partido Pantera Negra se instrui com os princípios revolucionários do marxismo-leninismo, mas se você olhar através do mundo você vai ver que os únicos países que conseguiram se liberar e resistir a maré contrarrevolucionária são precisamente os países que tem fortes partidos marxistas-leninistas. Todos aqueles países que lutaram por sua liberação apenas com base no nacionalismo se tornaram vítimas do capitalismo e do neocolonialismo, e em muitos casos agora se encontram debaixo de tiranias igualmente opressoras em relação aos antigos regimes coloniais.

Que você não sabe nada sobre o processo revolucionário está claro; que você sabe menos ainda sobre os Estados Unidos e o seu povo está mais claro; e que você sabe menos ainda sobre a humanidade do que você sabe sobre o resto está ainda mais claro. Você fala de um “amor imortal pelo povo negro”. Um amor imortal pelo povo negro que nega a humanidade de outras pessoas está condenado. Foi um amor imortal das pessoas brancas umas pelas outras que as levou a negar a humanidade das pessoas de cor e que expulsou pessoas brancas da própria humanidade. Me parece que um amor imortal pelo nosso povo iria, no mínimo, levar você a uma estratégia que ajudasse nossa luta pela liberação ao invés de levar você a uma aliança de intenções com o comitê McClellan em sua tentativa de destruir o Partido Pantera Negra.

Bem, então adeus, Stokely, e tome cuidado. E esteja atento a algumas pessoas brancas e algumas pessoas negras, porque eu te asseguro que algumas dessas têm dentes que mordem. Lembre-se do que o irmão Malcolm disse em sua autobiografia: “Nós tivemos a melhor organização que o homem negro já teve nos Estados Unidos – e negros a arruinaram!”. PODER AO POVO.

 

ELDRIDGE CLEAVER, Ministro da Informação, Partido Pantera Negra, julho de 1969.

 

Ramparts, setembro de 1969

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de The Black Panthers Speak. Haymarket Books, 2014.
Você pode contribuir enviando e-mails indicando erros de tradução ou sugestões de melhoria para autonomistablog@gmail.com
Este e outros textos de tradução do Coletivo Autonomista! estão disponíveis em: https://autonomistablog.wordpress.com/

Todo conhecimento deve ser livre. Por isso, não há restrições à cópia e distribuição desse material. Compartilhe!

Eldridge Cleaver discute a revolução: uma entrevista do exílio

O Ministro da Informação do Partido Pantera Negra em exílio, Eldridge Cleaver, apareceu no último verão no Festival Pan-Africano em Argel. Essa entrevista foi feita na época por Steven Aust, um jornalista da Alemanha Ocidental. – Serviço de Notícias Liberação

 

PERGUNTA: Qual era a situação na América no momento da ruptura de Stokely Charmichael com o Partido Pantera Negra, e como ela contribuiu para a ruptura?

ELDRIDGE: Toda a maneira de abordar o problema que o governo está assumindo, o capitalismo negro, eles estão usando o chamado do Poder Negro para esconder isso. Isso forçou Stokely a continuar a articular o que ele começou de modo a deixar claro que ele não está envolvido com o capitalismo negro. Mas abandonando a cena e não defendendo a sua posição, a coisa toda foi cooptava pela gente que está no CENTRO, toda a organização entrou para o capitalismo negro. O velho líder do CENTRO, James Farmer, se tornou o homem mais importante para implementar isso na administração Nixon, o homem que veio depois de Farmer como líder do CENTRO, Floyd McKissik, ele conseguiu uma organização para ele mesmo, uma firma de negócios que ele chama de Floyd McKissik Inc., e muitas verbas são canalizadas através dela.

Encaramos isso como o surgimento de uma fase neocolonialista de nossa situação particular nos Estados Unidos, porque ela corresponde ao momento em que o poder colonial decide garantir um certo grau de independência à colônia e substituir o regime colonial com um regime de marionetes. E isso é o que eles estão fazendo nos Estados Unidos quando puxam alguns níveis da burguesia negra para a estrutura de poder e desenvolvem para eles um investimento de interesse no sistema capitalista. Então, essa posição realmente desafiadora, as pessoas que fingiam ser revolucionárias, estão aceitando verbas.

O governo vai dar dinheiro para qualquer um. Eles ofereceram dinheiro ao Partido Pantera Negra; eles ofereceram dinheiro para todo mundo, e eles não se preocupam com qual é a nossa linha, eles só querem que nós nos envolvamos com os seus programas e então começam a colocar limitações em você para se tornar dependente.

Muitas pessoas estão aceitando esse dinheiro e elas estão usando o chamado do Poder Negro para conciliar o capitalismo negro com o poder. E isso é uma das coisas muito ruins que aconteceu como resultado do que Stokely estava falando. Oferecemos a ele uma posição como Primeiro Ministro do Partido para dar para ele uma base que ele não tem mais como resultado dos seus problemas com o SNCC e a decomposição do próprio SNCC. Mas ele abandonou o campo. Agora ele está falando sobre as lutas na África. Ele quer liberar Gana; isso simplesmente não se sustenta.

A questão chave para mim é que ele fez um declaração que eu penso que é fundamental. Ele disse. Ele disse “vocês estão aí em cima agora, mas esperem. Eu voltarei aí pra cima”. Então, todo esse jeito de pensar é uma viagem de ego [ego trip], fazendo constantemente essas comparações invejosas. Estávamos falando com ele logo que viemos para cá, porque pensamos que ele iria perceber o erro que cometeu, pedir desculpas ao Partido, e o aceitaríamos de volta no Partido porque há muito tempo estávamos tensos com a maneira com que ele estava agindo. Ele disse que não sabia que o comitê McClellan estava envolvido nas investigações sobre o Partido na época em que ele entregou a sua renúncia e as acusações. Mas as acusações que ele fez contra o Partido pareciam um eco das acusações dessas marionetes que estavam se lamentando no comitê McClellan. Quando isso foi apontado ele disse que não sabia que o comitê McClellan estava envolvido nas investigações. E sob a perspectiva de ele não saber isso, ele disse que estava disposto a fazer uma declaração para esclarecer a situação e deixar claro que ele não tinha nada a ver com o ataque do comitê McClellan, então tudo se resumiu a isso, e ele estava procrastinando, e então, quando ele deu aquela última declaração, alguma coisa estalou em mim e eu não estava mais disposto a continuar com isso.

Era eu quem estava tentando salvar a situação e dar a ele uma chance de se desculpar com o Partido, e todas as outras pessoas estavam perfeitamente dispostas a deixa-lo ir e não cobrar nada. Então, quando ele tomou a posição que tomou, o chamamos e só dissemos a ele que não iríamos arranjar aquela outra coisa de que falamos e que iríamos aceitar a sua renúncia da maneira como ele escreveu e lidar com as coisas como ele colocava. E essa foi a última vez em que ouvimos falar dele.

PERGUNTA: Os problemas mais importantes na carta dele eram, primeiro, chamar o Partido de dogmático, e segundo, condenar a aliança com movimentos radicais brancos.

ELDRIDGE: Penso que esses dois estão profundamente relacionados, porque quando ele se refere a dogmatismo, ele está se referindo na verdade ao fato de que somos um partido marxista-leninista, e o internacionalismo proletário está implícito no marxismo-leninismo, a solidariedade com todos os povos que estão lutando e isso, é claro, inclui pessoas brancas. Então, uma vez que o objetivo principal dele é a não-aliança com brancos e virar as costas para os brancos e não ter absolutamente nenhuma política voltada para eles, apenas ignorá-los, ele foi com peso nesses dois pontos para manter a sua posição. E nós consideramos essa posição racista.

Reconhecemos que não podemos funcionar dessa maneira, especialmente nos dias de hoje, quando estão usando nacional e internacionalmente a negritude como uma maneira de criar divisões entre o povo, e a contraparte doméstica dessa abordagem internacional é o uso do capitalismo negro, da consciência negra. Chamamos isso de nacionalismo cultural nos Estados Unidos, e se tornou muito claro como eles financiam algumas organizações de nacionalistas culturais. Eles já se expuseram como ferramentas da estrutura de poder com as suas atividades. Então, é preciso uma outra definição para fazer distinções entre amigos e inimigos quando eles vêm em todas as cores. E pensamos que os únicos guias seguros para a ação são os princípios revolucionários do marxismo-leninismo, pensamos que eles são relevantes nesse ponto por essa razão e escolhemos trabalhar com base nisso e deixar o resto passar, porque o povo negro já ganhou a sua consciência, eles tem um sentido da sua identidade, que foi perdida nos Estados Unidos. No momento em que isso estava acontecendo, era bastante progressista, era uma coisa muito boa que estava acontecendo. Mas depois que as pessoas assimilaram isso e se lembraram de quem eram e tudo mais, manter essa posição e não ir adiante se torna reacionário.

Foi isso o que aconteceu a Stokely e a muitas outras pessoas, muitas outras pessoas ficam culturalmente presas nesse sentido, mas Stokely ficou preso politicamente nesse sentido. Existe uma falsa distinção que as pessoas fazem entre cultura e política, e então, depois de fazer essa falsa distinção, ele confunde cultura e política de novo. Então, é como um erro em cima de um erro, e não conseguimos aceitar isso.

PERGUNTA: Sendo um crítico do nacionalismo cultural, como você vê o papel desse festival de cultura africana?

ELDRIDGE: Bem, eu penso que ele reuniu todas as linhas ideológicas experimentadas e forçou certas coisas a serem colocadas abertamente, e ele realmente serve para mandar a mensagem para muitas pessoas de que essa negritude e o nacionalismo cultural são pedras no caminho das lutas de libertação popular, mais do que auxílios. Penso que muitas das conversas que tivemos aqui foram repetidas várias vezes, as pessoas que estão envolvidas nos processos de luta pela liberação nesse momento parecem perceber de maneira mais atenta os aspectos negativos disso tudo por contraposição com aqueles que já conseguiram a independência e tem regimes bastante reacionários no poder que estão usando isso. As pessoas que estão lutando estão abertas a toda ajuda que puderem ter, e elas não querem fechar nenhuma via por conta de algumas posições ideológicas simplistas.

Mas aqueles que já estão no poder e conseguiram a sua liberação com essa sustentação falsa, eles estão felizes em deixar isso continuar. Uma coisa muito interessante sobre a qual eu ouvi as pessoas falando é que depois da Segunda Guerra Mundial, todas as colônias estavam lutando pela sua libertação baseadas no nacionalismo e não na construção de um partido revolucionário forte. Historicamente, isso se mostrou um erro. Era a maneira fácil de tentar resolver as coisas, porque é mais fácil mobilizar as pessoas baseado no nacionalismo do que criar uma organização marxista-leninista forte. As contrarrevoluções que se colocaram no lugar e colocaram muitos desses regimes nacionalistas para fora do poder e se montaram sobre o povo com regimes opressões, mais uma vez demonstraram o ponto de que os únicos governos que conseguiram sobreviver a essa destruição foram os governos que conseguiram a sua liberação e criaram, ou já tinham criado antes, ou criaram durante a luta ou depois da luta, um forte partido marxista-leninista. E eu penso que isso é o resultado na experiência na China, em Cuba e nos países socialistas do leste europeu, incluindo a União Soviética. Que não importa o que você diga sobre algumas da políticas revisionistas galopantes na área, eu sempre escolherei esses regimes socialistas ao invés de regimes capitalistas. Existe uma coisa lá que consegue suportar as tentativas dos imperialistas e capitalistas de lutar contra a corrente. Eles descobriram que era fácil fazer isso em países que são mantidos em pé apenas por um nacionalismo estreito.

PERGUNTA: Você pensa que o papel do nacionalismo no movimento pela liberação não é mais importante?

ELDRIDGE: Eu penso que ele vai continuar a ter importância, e que existe uma maneira adequada de lidar com o nacionalismo. Eu não penso que exista necessariamente uma distinção, ou, deveria dizer, uma contradição, entre nacionalismo e internacionalismo proletário, porque se mostrou muitas vezes que se você não pode amar aqueles ao seu redor, o que é uma forma de nacionalismo, se vincular com aqueles que estão na sua própria entidade, então você não pode se vincular àqueles que estão longe de você, e do mesmo modo, se você consegue se vincular àqueles que estão longe de você e não consegue se vincular aos que estão perto de você, então ainda há problema. Eu estou me referindo a essa abordagem nacionalista grosseira ao problema que obscurece completamente as contradições de classe e os problemas de classe e unifica o povo por cima das linhas de classe e de acordo com a totalidade da nação, deixando problemas para depois. Porque com base nisso, a burguesia, que é sempre mais educada nesse momento, consegue se colocar nos aparelhos do governo, uma vez que pessoas com determinadas habilidades são necessárias, e quando ela vai para lá ela consegue o poder, e como as coisas estão organizadas com base no nacionalismo, não há nada ali para contra-atacar a usurpação do poder, a organização de golpes e a contramaré. Eu acho que as pessoas estão se afastando disso, especialmente as pessoas jovens, os estudantes jovens que estão nesses países, a maior parte deles está muito consciente e está se voltando para o marxismo-leninismo.

PERGUNTA: A questão principal na divisão do SDS (Estudantes por uma Sociedade Democrática) americano foi a relação com o movimento negro. O que você pensa da divisão, e qual você pensa que é a tarefa dos radicais brancos do país em relação a essa situação específica agora?

ELDRIDGE: Eu acho que as pessoas que estavam separando o SDS eram as pessoas que têm essa análise falha da situação, elas ainda estavam funcionando baseadas na análise do que chamamos de Velha Esquerda. Elas não estão reconhecendo as lutas étnicas que estão acontecendo agora nos Estados Unidos, que normalmente obscurecem a luta passada. As pessoas no SDS com quem trabalhamos se aproximaram da análise que fizemos e elas vêm a sua causa funcional, porque nos Estados Unidos você tem mexicanos americanos, porto-riquenhos, índios, esquimós, sino-americanos, americanos negros, americanos brancos e muitos outros grupos étnicos. Esses grupos étnicos foram divididos uns dos outros e eles estão em tal posição nos dias de hoje que não tem fundamento tentar cometer os erros que já foram cometidos no passado colocando todos eles em uma organização homogênea sem levar todas essas particularidades em consideração. Dizemos que isso é colocar a carroça na frente dos bois. O que temos que fazer é tomar o povo como ele está agora, colocá-los em um aparelho organizativo, e então criar outro aparelho organizativo em que eles possam ser inseridos uma vez que estão conscientes disso. Isso se faz por um processo de coalizão, e isso funciona e está funcionando agora, e se desenvolvendo, e fomos capazes de lidar com muito mais problemas do que tínhamos quando estávamos tentando integrar as pessoas pobres em um grupo e continuar gastando muitas das nossas energias com muitas lutas internas e coisas do tipo. Essas pessoas que estão no PL e que são muito dogmáticas, e que não quiseram reconhecer o que estava acontecendo em outras comunidades e queriam começar a impor a sua própria perspectiva ideológica ao povo, foram recusadas, eu acho que eles saírem do SDS uma recusa adequada para a situação que estavam tentando reproduzir.

PERGUNTA: Depois de passar tanto tempo no Terceiro Mundo, você mudou as suas posições sobre a política americana, você pode falar alguma coisa sobre as experiências que teve desde que saiu dos Estados Unidos?

ELDRIDGE: Eu só me tornei mais convicto da posição e da atitude do Partido Pantera Negra. Agora eu reconheço que algumas das coisas que estávamos fazendo e tentando fazer são ainda mais importantes do que pensávamos que eram, especialmente nas direções em que atuamos, tentando contornar os obstáculos que foram criados por Stokely Charmichael e o SNCC, mas que achávamos que eram historicamente necessários – com o Poder Negro. Tomamos um caminho diferente nos Estados Unidos, e fizemos isso por necessidade. Depois de entrar em contato com outras pessoas que são revolucionárias mas não são negras, você vê como é importante isso tudo é para poder trabalhar com elas. Eu fiquei chocado em um grau em que eu nunca tinha sonhado que eu poderia ter ficado pelos resultados visíveis do colonialismo e do imperialismo. Nós que somos oprimidos nos Estados Unidos, em comparação com o que vi no resto do mundo, parece como se fôssemos oprimidos através de um véu de seda, porque não há nada comparado com a pobreza que eu encontrei no resto no mundo, nada comparado a isso nem mesmo nas áreas mais oprimidas dos Estados Unidos.

Eu penso que governo dos Estados Unidos é o inimigo número um da humanidade e está muito envolvido na reprodução de todas essas coisas que eu vi, por meio de suas organizações internacionais como a OTAN, o SEATO (Organização do Tratado do Sudeste Asiático) e por meio das Nações Unidas. Eles conseguem perpetuar a estagnação do povo e corromper suas tentativas de industrializar seus países. Isso, eu acho, teve um grande impacto em mim, e muito do fervor revolucionário puro que eu encontrei entre as pessoas serviu para estimular mais dedicação em mim mesmo.

PERGUNTA: Você não pensa que é muito importante que as frentes de libertação no Terceiro Mundo trabalhem junto com o Partido Pantera Negra?

ELDRIDGE: Não apenas com o Partido Pantera Negra, mas com todas as forças revolucionárias nos Estados Unidos. Certamente, eu penso que foi demonstrado aqui nesse festival em Argel, que aconteceu sob os cuidados da OAU (Organização da Unidade Africana), mas também de todo o governo da Argélia, o fato de que eles tiveram a coragem de nos convidar, o fato de que eles tiveram a coragem de me convidar, considerando a situação que existia, eu acho que isso fez muito no sentido de fortalecer a solidariedade.

Teve um grande impacto nos Estados Unidos, tenho certeza, e eu acho que o que é importante nisso é que no passado houveram indivíduos, pessoas negras nos Estados Unidos, que vieram para cá para fazer certos contatos e fizeram algumas promessas que elas não puderam cumprir, e pela primeira vez uma grande organização nacional está fazendo contato com essas pessoas, e como as nossas relações não dependem de uma única pessoa para a sua continuidade, então isso terá que fortalecer esses laços e criar canais que podem continuar no futuro. Esses são alguns dos aspectos positivos que eu vejo nisso.

PERGUNTA: Existem planos concretos para a cooperação, como mandar delegações para outros países?

ELDRIDGE: Naturalmente, queremos cooperar e nos ajudar uns aos outros de qualquer maneira que possamos. Muito disso, claro, não pode ser discutido abertamente, podemos dizer que o povo expressou uma grande alegria com os desenvolvimentos nos Estados Unidos, com o fato de que vanguardas revolucionárias estão sendo criadas. Isso dá a elas mais esperanças, saber que mesmo na Babilônia podemos lutar pela revolução.  E as ajuda na sua luta, porque elas dizem que se aqueles caras podem fazer isso lá, então o que está errado conosco aqui? Todos nós sabemos que estamos lidando com o mesmo inimigo. Só saber que há alguém na mesma luta que você sempre fortalece a sua dedicação.

PERGUNTA: Você acha que os Estados Unidos mudaram desde que você partiu?

ELDRIDGE: Eu acho que a repressão aumentou claramente e que isso quer dizer que a efetividade do ataque do Partido contra estrutura de poder está se tornando intolerável para a própria estrutura de poder. Uma das coisas mais importantes que se desenvolveu desde que eu parti foi o Programa de Café da Manhã Para Crianças que o Partido adotou. Isso foi uma maneira de o Partido fortalecer seus laços com a comunidade e conseguir que milhares e milhares de pessoas pelo país se envolvessem no programa e se abrissem para o Partido. E essas pessoas ficaram muito bravas quando o governo começou a atacar o Programa de Café da Manhã Para Crianças. Houve muito mais aceitação do Partido.

É muito interessante que a maioria das coisas que estávamos defendendo, que estávamos propondo quando estávamos lá, ganharam mais urgência e mais aceitação desde que eu fui embora, porque as pessoas tinham que lidar com isso. É como se – falando sobre isso com os irmãos da delegação que veio para cá dos Estados Unidos, só para ouvi-los falar, houve um longo período em que o Partido Pantera Negra esteve atravessado de nacionalismo cultural, e estamos tentando sair desse saco. Os irmãos que estavam aqui agora são irmãos que estão no Partido praticamente desde o início, e eu tive a chance de vê-los se desenvolverem, vê-los resistir à direção que estávamos tentando tomar, em temos de relações com os revolucionários brancos, e houve uma mudança completa nisso.

Eu ouvi um irmão se referir ao povo da Escandinávia como nossos irmãos e irmãs escandinavos, e esse cara em particular, em um momento em que estávamos tentando mobilizar as pessoas da comunidade para ir para o tribunal e se juntar em um protesto no tribunal por Huey Newton quanto ele estava sendo julgado, ele se recusou a entrar no carro de som porque ele estava sendo dirigido por um cara branco.

Foi necessário que esse cara dirigisse o carro de som porque ele tinha a licença e a carteira e simplesmente tinha que ser desse jeito. Mas ele se recusou a entrar no carro de som, e agora ele é quem fez essa declaração a que eu me referi. Isso indica, para mim, que as coisas mudaram e que muitas coisas que estávamos tentando fazer enquanto eu estava lá foram aceitas. Essa é apenas uma delas, existem outras, mas essa é uma das mais difíceis.

Isso é muito desenvolvimento. O Partido está mais forte e maior. Eu penso que o grande florescimento e desenvolvimento do Partido ideologicamente é uma das coisas mais importantes que aconteceu. Sempre tentamos nos aplicar o marxismo-leninismo, mas sempre houve muita dificuldade em manter a disciplina no Partido. Não era funcional, não estava realmente claro como você poderia aplicar o centralismo democrático nessa situação, com as pessoas com quem tínhamos que lidar.

Uma coisa que é muito importante é que muitas pessoas não entendem porque muitas pessoas foram expulsas do Partido. Na época em que Huey Newton estava sendo processado, abandonamos muitos dos nossos programas por conta da necessidade de mobilizar tantas pessoas quanto possível. Nós praticamente fechamos a adesão, nós não fizemos nenhuma declaração pública e simplesmente começamos a colocar pessoas para dentro. Nós sabíamos quem eram os Panteras, mas para maximizar o número de pessoas que colocávamos para dentro, não discutíamos com as pessoas se elas colocavam uma jaqueta preta ou boinas pretas e diziam que eram panteras. Elas simplesmente chegaram e disseram que apoiavam Huey e que queriam se juntar à nossa organização. Não tínhamos tempo para conduzir aulas de educação política, que é uma parte muito importante em nosso processo de recrutamento, nessa situação. Depois que o julgamento de Huey Newton acabou e o veredito estava dado, era uma questão de voltar às nossas outras atividades em que estávamos envolvidos. No momento, muitas pessoas que entraram na organização na campanha para libertar Huey se mostraram muito indisciplinadas e não funcionais, e elas criaram muitos problemas para o Partido e elas não estavam dispostas a fazer aulas de educação política. Então simplesmente fomos duros com elas.

Eu não estava lá na época, mas eu estava sabendo disso, eu sabia o que estava acontecendo e porque estava acontecendo, e muitas dessas pessoas eram definidas como não sendo membros do Partido. E aqueles que queriam se tornar membros do Partido tinham a exigência de passar por aulas de educação política. Então, muitas dessas pessoas que foram expulsas foram readmitidas no Partido mas muitas delas foram expulsas por um motivo e permanecerão assim por um bom tempo antes de poderem ser readmitidas – se forem.

PERGUNTA: Qual é o seu plano para o futuro: que tipo de trabalho político você quer fazer?

ELDRIDGE: E acho que tem muito que eu posso fazer em termos de fazer contatos internacionais para o Partido, eu tenho um livro que eu quero terminar, mas, verdade, eu quero voltar para os Estados Unidos, é isso que eu quero fazer.

PERGUNTA: Agora que a Frente de Libertação Nacional praticamente venceu a guerra no Vietnã e entrou em uma nova fase de luta contra o imperialismo, isso muda alguma coisa?

ELDRIDGE: Eu acho que isso vai ser muito positivo, se você pensar você vai se lembrar de que toda a posição do imperialismo dos EUA na época era que as forças de libertação no Vietnã tinham que ser derrotadas, caso contrário as pessoas iriam começar que eles podem lutar por sua liberdade também. E eu penso que isso provou que uma luta persistente até o fim será vitoriosa. É isso que está acontecendo agora. Eu acho que os Estados Unidos vão forçar as pessoas a lutar com tanto vigor quanto lutaram no Vietnã; no geral, eu penso que isso vai fortalecer a determinação do povo para continuar lutando até a vitória.

PERGUNTA: Você pensa que a perseguição do Partido Pantera Negra nos Estados Unidos exige que vocês criem um novo tipo de tática para lidar com ela?

ELDRIDGE: Essas coisas que estamos fazendo foram pensadas, e muitas pessoas acham que não estamos falando sério quando falamos isso, mas o que eles fazem e tem feito é mandar alguns provocadores que vão induzir as pessoas em conversas sobre explodir pontes ou explodir supermercados. E com base em algumas palavras frívolas que passaram por aí, eles transformar tudo em uma conspiração em grande escala e prendem todas essas pessoas e colocam um resgate por elas e não uma fiança, para acabar com nossas finanças; eles sabem o que estão fazendo, e é essa a tática que usam nos Estados Unidos para deixar o Partido na defensiva.

Eu tomei a decisão de que eu não ia me submeter a esse tipo fraude e ir para a cadeia quando está muito claro que eles estão manipulando a situação. E eu penso que isso é uma coisa que todos nós vamos ter que enfrentar, porque não podemos pagar fianças de $200.000. Quando você pensa em 21 pessoas em Nova York, 16 pessoas em Chicago, isso custa o resgate de um rei, e nós não temos esse tipo de dinheiro, não temos nenhum procedimento para conseguir essa quantidade de dinheiro, então eu acho que as pessoas que estão dedicadas a agir de uma maneira revolucionária vão começar a adotar a atitude de que elas não serão presas. E elas tem que estar prontas a se defender em todos os momentos, de modo que quando os homens venham para cima deles e tentem prendê-los, esses caras vão começar a ter que lidar com isso bem no mesmo lugar, porque isso é mais desejável do que ficar em uma penitenciária apodrecendo.

PERGUNTA: E a Frente Unida Contra o Fascismo é uma parte dessa tática para criar solidariedade?

ELDRIDGE: É uma movimentação muito importante nesse sentido, mas há outra frente que eu acho que deve ser criada, e isso é uma coisa em que tenho trabalhado e em que eu pretenso continuar trabalhando, e é uma coisa que estamos chamando de Frente de Libertação Norte Americana. Eu penso que é o momento certo, porque muitas pessoas vêm a situação com que nos enfrentamos como uma situação em que a política foi transformada em guerra, e não tem fundamento continuarmos nos enganando; o que temos que fazer é lutar. Temos terreno lá para lutar. Muitas pessoas pensam que a luta armada feita nas montanhas de Cuba ou no Vietnã são uma coisa, e que isso não poderia acontecer nos Estados Unidos. Mas os Estados Unidos têm mais montanhas do que todas essas outras zonas, ele têm a vantagem de áreas montanhosas, e uma situação altamente organizada e tem zonas rurais. Eles são tão grandes que as forças do governo seriam forçadas a se distribuir de maneira muito escassa, ao mesmo tempo em que a insatisfação nas fileiras do Exército dos Estados Unidos está em no ponto mais alto. Os fortes e prisões militares estão abarrotados de gente que desertou e não quer lutar no Vietnã. E eu penso que as contradições que surgiram nas fileiras do Exército vão continuar a crescer, e mais ainda quando eles finalmente tiverem se voltado contra o povo americano.

 

The Black Panther, 11 de outubro de 1969

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de The Black Panthers Speak. Haymarket Books, 2014.
Você pode contribuir enviando e-mails indicando erros de tradução ou sugestões de melhoria para autonomistablog@gmail.com
Este e outros textos de tradução do Coletivo Autonomista! estão disponíveis em: https://autonomistablog.wordpress.com/

Todo conhecimento deve ser livre. Por isso, não há restrições à cópia e distribuição desse material. Compartilhe!

Afeni Shakur – Nós vamos ganhar: uma carta da prisão

Afeni Shakur é uma dos 21 Panteras em Nova York acusados de conspiração. A carta foi escrita durante a sua prisão na Casa de Detenção para Mulheres, com uma fiança de $100.000.

 

Pensamos que vocês estão nos indiciando, detendo, encarcerando, julgando e provavelmente condenando baseados em uma imagem de nós que receberam da imprensa, e sabemos que essa imprensa não apenas é duvidosa como brutalmente racista. Pensamos que antes que continuemos, uma vez que são as nossas vidas que estão em perigo, gostaríamos de poder compartilhar pelo menos alguns fatos sobre a nossa organização, seus objetivos, e porque essas acusações são não apenas ilegais e inconstitucionais, mas também ridículas, para dizer o mínimo.

O Partido Pantera Negra foi formado três anos atrás em Oakland, Califórnia, por Huey P. Newton – ou não? Os próprios historiadores Panteras Negras discutem com relação ao início e ao espírito do Partido Pantera Negra. Alguns dizem que ele começou há mais ou menos 400 anos, quando você decidiram pela primeira vez que não éramos seres humanos. Outros atribuem o início aos 100 milhões ou mais que vocês mataram nos navios negreiros. Outros, o atribuem a Gabriel Posser, Denmark Vesey, Nat Turner e, é claro, Toussaint L’Ouverture. Alguns dizem até mesmo que ele começou na época da lei do escravo fugido e a decisão Dred Scott. Mas todos concordam que esse espírito está lá e esteve por um bom tempo. E todos concordam sobre a sua adaptação moderna – que Frantz Fanon colocou no papel, Malcolm X colocou em palavras e Huey P. Newton colocou em prática. É um espírito que foi sufocado por séculos, mas que não pode e não vai mais ser sufocado.

Sabemos que vocês estão nos julgando porque somos a verdade e porque não podem nos controlar. Sabemos que vocês sempre tentaram destruir o que não podem controlar. Sabemos que vocês têm medo de nós porque representamos a verdade do universo. Não estamos sendo julgados por nenhuma ação aberta nem por tentar cometer uma ação aberta – estamos sendo julgados por colocar em nossas mentes o foco nas ideias dos séculos e tentar transformar esse conhecimento em um plano executável para liberar nosso povo da opressão. Estamos sendo julgados apenas porque não temos medo de vocês. Sabemos da sua história de mentiras, enganação e escravidão. Sabemos que vocês, agora, mantém 80% do mundo na escravidão. Sabemos como vocês jogam nação contra nação, tribo contra tribo, irmão contra irmão. Sabemos que vocês são sanguinários, impiedosos e desumanos. Vimos vocês justificarem os crimes mais desumanos – o pior de todos sendo a destruição dos corações e mentes dos homens. Conhecemos a sua ganância. Sabemos que 10.000 bases militares não fazem desse um “mundo livre”, a não ser que seja livre para a sua exploração e imperialismo. Quantas civilizações vocês destruíram?

Nesse país, sabemos que não somos cidadãos de segunda classe – sabemos que não somos cidadãos de modo algum. Sabemos que a 13ª, a 14ª e a 15ª emendas não nos liberaram – que elas apenas legalizaram a escravidão e expandiram a decisão de Dred Scott para incluir os índios, os que falam espanhol e os brancos pobres. Sabemos que as coisas não melhoraram – apenas pioraram progressivamente. Sabemos que esses são os tribunais, a justiça e as leis do homem rico. São o seu céu e o seu ar – só podemos olhar para ele e respirar se ele diz que podemos. Sabemos que a riqueza não é o fruto do trabalho, mas o resultado de um roubo organizado e protegido. Mas vocês ensinam os pobres trabalhadores a serem honestos. Sabemos que o todo-poderoso dólar, que todos são ensinados a adorar, só é garantido pela escravidão e pela exploração. Sabemos que vivemos em um mundo desumano em sua pobreza. Sabemos que somos uma colônia, vivendo sob uma comunidade de imperialismo. Os EUA que vemos não são um país de liberdade, beleza e sabedoria, mas de medo, terror e ódio. Essa é uma nação com as suas leis, tocada pela sua polícia e baseada na proteção da sua força econômica. Os pobres são política, econômica e legalmente inexistentes, e é por isso que nas prisões 80% dos presidiários são não-brancos e são todos pobres. Ainda assim, mesmo os seus sociólogos e criminologistas admitem que 80% deles são inocentes.

Vemos esse tratamento inumano, mas nos dizem que não. Vemos que homens são espancados até a morte em presídios, mas se diz que eles morreram de “causas naturais”, mas somos mentirosos. Assim como sempre se presume que somos culpados. Ouvimos o juiz nos dizer que “A lei não se aplica a vocês”, mas isso não está nos autos, e é claro que estamos mentindo. Nascemos mentirosos e criminosos. Sabemos que somos inocentes, mas somos mentirosos. O povo sabe que somos inocentes, mas o povo não conta. Os guardas e até mesmo os capitães dos guardas sabem que somos inocentes, mas eles não podem testemunhar. Eles perderiam seus empregos. Podemos provar que somos inocentes. Mas nos perguntamos se isso realmente importa. Podemos provar em detalhes, e iremos provar, mas justamente, em geral, as acusações contra nós nesse processo são ridículas e são contraditórias com nossas crenças básicas. Nunca fomos perguntados, como um povo, se gostaríamos de ser governados pelo seu Deus, as suas leis, a sua justiça, os seus costumes, a sua fala, as suas roupas e a sua ética. Não queremos. Não temos nenhum respeito por eles. Não respeitamos suas leis, impostos, sua gratidão, sinceridade, honra, dignidade – tenham vocês respeito por elas. Vocês não nos respeitam – portanto, não respeitamos VOCÊS.

Admitimos que não queremos que vocês nos “levantem” para sermos trabalhadores que só são livres o suficiente para vender os seus trabalhos para vocês. Não seremos mais ou seus assassinos – nem seremos “levantados” para nos tornarmos seus cúmplices. Vocês não irão reformar nem melhorar esse sistema – pensamos que ele não pode ser reformado e não queremos que ele seja melhorado – exigimos que ele seja mudado. Percebemos que vocês encheram o exército, as cadeias as listas dos traficantes, com os nossos jovens – exigimos a sua libertação. Percebemos que vocês não podem nos dar o direito a nada – ou nós o temos ou não. Que devemos ser independentes, que devemos deixar de ser dependentes – agora. Não podemos simplesmente fazer isso com moderação – isso é uma contradição e uma impossibilidade – não se impede uma criança de morrer de fome com moderação – você não detém um assassinato com moderação. Percebemos que a liberdade é um dever e é o nosso dever conquistar essa liberdade para o nosso povo e para não recuar para ninguém no processo de conquista-la. Não seremos mais pedintes. Vocês criaram o negro [nigger], e agora nós estamos destruindo ele.

Sabemos que o seu sistema econômico é uma corrente nos nossos pescoços e que estamos rompendo todas as suas correntes. Vamos nos identificar com as necessidades do povo – os oprimidos. Vocês não querem que nós governemos vocês, nem nós queremos que vocês nos governem. Vamos nos governar a nós mesmos, fazer nosso próprio progresso, nossos próprios erros, nossos próprios amigos e nossos próprios inimigos. Vamos julgar os nossos nós mesmos. Vamos corrigir as inimizades que vocês criaram e transformar os seus amigos em inimigos. Vamos viver. Vamos ter uma cooperação mútua humanista e disciplinada como nosso objetivo. A questão se torna – o Estado governa o povo ou o povo governa o Estado? Vocês são o Estado e nós dizemos “Todo poder ao povo” e o povo terá o poder. Mas vocês tentarão nos deter. Vocês irão nos oprimir até que paremos vocês e nós vamos parar vocês. A história mostra que as guerras contra a opressão sempre são vitoriosas. E haverá uma guerra – uma verdadeira guerra revolucionária – uma guerra sangrenta. Ninguém, nem vocês, nem nós, nem nenhuma outra pessoa nesse país pode evitar que ela aconteça agora. E nós vamos vencer. E admitimos tudo isso. Mas, e isso é importante, quanto às acusações que vocês têm contra nós, somos inocentes. Vejam, por exemplo, que estudamos Malcolm X – e ele disse: “eu acredito em qualquer coisa que seja necessária para corrigir condições injustas… eu acredito nisso por tanto tempo quanto isso for dirigido de maneira inteligente e voltado para conseguir os objetivos. Mas eu não acredito em envolvimento em qualquer tipo de ação política sem sentar e analisar as possibilidades de sucesso ou fracasso”. Que sucesso poderíamos ter alcançado, que resultados teríamos obtidos que poderiam corresponder a nosso objetivo? Vocês nos acusam de termos conspirado para assassinar pessoas inocentes pelo uso do terrorismo. Vemos isso em si mesmo como um insulto a nossa inteligência e nossa seriedade. A técnica do terrorismo é sempre a mesma – bombas – normalmente contra soldados e sempre contra os nossos inimigos. As pessoas que compram nas lojas não são nossas inimigas. Porque desejaríamos machucar ou matar ou queimá-las? Todos os trabalhadores e a maior parte dos lojistas, especialmente em torno de Easter, são o nosso povo. Como Frantz Fanon diz “a decisão de matar um civil não é uma decisão fácil, e ninguém a toma facilmente. Ninguém dá o passo de colocar uma bomba em um lugar público sem uma guerra de consciência”. Porque faríamos isso?

O que nós teríamos ganhado como Panteras Negras, como pessoas negras, como pessoas pobres, como seres humanos? Não somos melodramáticos – não somos, pelo menos não voluntariamente, mártires e não somos loucos – somos revolucionários, e como tais iremos fazer o que for necessário e apenas o que for necessário – quando e apenas quando essa ação levar adiante o interesse de nossa luta. Tudo além disso, como nessa acusação, é loucura.

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de The Black Panthers Speak. Haymarket Books, 2014.
Você pode contribuir enviando e-mails indicando erros de tradução ou sugestões de melhoria para autonomistablog@gmail.com
Este e outros textos de tradução do Coletivo Autonomista! estão disponíveis em: https://autonomistablog.wordpress.com/

Todo conhecimento deve ser livre. Por isso, não há restrições à cópia e distribuição desse material. Compartilhe!

Silvia Federici & George Caffentzis – Mórmons no espaço

O Espaço é só Tempo congelado. Um arranjo de vida/trabalho em sequências integradas. A Terra é outra Coisa, no entanto. Então, por que a urgência em fugir da Terra? Para simultaneamente destruí-la e transcendê-la?

É esse o segredinho sujo do capital: a destruição do último Corpo resistente? O em-si da funcionalidade capitalista, o resíduo de bilhões de anos de formação não-capitalista… por que deveriam haver aqui Montanhas, Rios e um Oceano, afinal?

De fato, por que naves espaciais, colônias espaciais misturadas com um número tão grande de bombas, bombas e ainda mais bombas… para destruir a Terra n vezes repetidamente, como se fosse para não deixar a existência nem para as baratas. Por que a tentativa simultânea de recodificar os cromossomos e o sistema nervoso?

Por que, a não ser para criar um SER verdadeiramente capitalista, e uma substância puramente capitalista, e uma última sequência puramente capitalista de eventos de trabalho? Sistemas nervosos sem peso e sem forma, desconectados e prontos para serem infinitamente recodificados.

Por que, a não ser por uma busca por um ser não programado por milênios de mudanças no fundo de uma tonelada de oxigênio fazendo todo esse peso por aí, essa gravidade contra o trabalho?

O Espaço é, no fim das contas, o último obstáculo do Tempo… Bergson entendeu tudo errado… Luckacs também… O capitalismo não é a espacialização do Tempo, mas, antes, a temporalização do Espaço, a dissolução da distância, do exatamente-ali de onde nós viemos.

O “espaço sideral” não é o Espaço como o conhecemos, mas uma última fusão com as relações do tempo. Ele é desejado não por causa dos minerais em Marte – não mais do que o ouro ou a prata nos rios das ilhas caribenhas eram – mas por causa do que eles podem fazer com você em Marte, quando vocês chegarem lá.

É por isso que a classe trabalhadora é uma máquina tão arcaica, tão defeituosa. Os velhos hobbesianos só estavam parcialmente certos: os Humanos não são Máquinas, só cópias ruins delas. Seus desejos são muito limitados, mas, por outro lado, muito vastos. Eles sentem um desespero por um trabalho doméstico construído em um milhão de anos de prazeres e dores não-capitalistas e uma repulsa de seu próprio arcaísmo que é muito arbitrária.

O Lebensraum de Hitler era na verdade um Arbeitsraum, que exigia uma imensa destruição de “leben” para ser realizado e, no final, fracassou. É do mesmo jeito com azulejos de porcelana colados, computadores em uma novela de “você não me entende”: o retorno da nave espacial é precedido por um desespero tal que você se espanta com esse desejo por um reino biologicamente puro, livre dos ciclos de estações, diurnos e lunares, sem ar, sem peso, e aberto a infinitas alterações.

Essa sempre foi a atração fatal do capital: a sua indiferença em relação ao Espaço. Porque o Aqui-Agora desaparece quando seu problema essencial não é o que eu preciso, desejo ou quero agora, mas o que outro precisa, deseja ou quer do que eu preciso, desejo ou quero. O Aqui some em um Ali-Aqui-Ali abstrato.

Você pode ver o capital das suas estações espaciais olhando para baixo… “Aquelas pobres máquinas meio enlouquecidas! As suas necessidades foram definidas de uma maneira tão exaustiva, a sua sexualidade é tão irracional, os seus desejos são fixados por ciclos bioquímicos tão locais que elas te fazem ter vontade de chorar! Quando finalmente vamos nos livrar desses Corpos?”

 

Se alguém tentasse definir o zeitgeist que atravessa a nova direita hoje, iria se deparar com um quebra-cabeças aparentemente indecifrável. Por um lado, eles são os defensores de uma revolução científica e tecnológica que há alguns anos teria saído direto da ficção científica: análise de genes, computadores de DNA, técnicas de compressão do tempo, colônias espaciais. Ao mesmo tempo, os círculos da nova direita assistiram a uma retomada de tendências religiosas e de conservadorismo moral de tal maneira que alguém poderia pensar que estava enterrado de uma vez por todas com os “nossos” Pais Fundadores Puritanos. A Maioria Moral de Falwell é o mais gritante desses retornos aos valores de Calvino e Cotton Mather, mas nem de longe o único. Pra onde quer que você se vire, grupos tementes a Deus e preocupados com o diabo estão crescendo feito cogumelos: a Voz Cristã, o Fórum Pró-Família, a Campanha Nacional de Oração, o Fórum da Águia, a Comissão do Direito à Vida, o Fundo para Recuperar um Eleitorado Instruído, o Instituto de Economia Cristã. Visto em seus contornos gerais, então, o corpo da nova direita parece se esticar em duas direções opostas, tentando ao mesmo tempo um salto audacioso no passado e um salto igualmente audacioso no futuro.

O quebra-cabeças se complica quando percebemos que essas não são seitas separadas, mas que, em mais de uma maneira, elas envolvem as mesmas pessoas e o mesmo dinheiro. Apesar de uns poucos desentendimentos pequenos de algumas contorções patéticas para manter a fachada de “pluralismo”, a mão que coloca a nave em órbita ou que recombina ratos e coelhos é a mesma que pressiona ansiosamente para que os gays sejam mandados para a fogueira e que está desenhando uma grande cruz não apenas pelo século XX, mas também pelo XVIII e XIX.

Até que ponto a Maioria Moral & cia e os futurólogos da ciência têm uma alma e uma missão idênticas se vê melhor – senão nas vidas de suas figuras públicas individuais (embora imagem do “pastor eletrônico” e de um presidente que, com o mesmo discurso, abençoa Deus e pede uma produção aumentada de gás asfixiante e a bomba de nêutrons sejam boas evidências desse casamento) – na harmonia de intenções que mostram quando confrontados com os “problemas centrais” do momento. Quando se trata de questões políticas e econômicas, todos os vestígios de diferença são abandonados e todas as almas da nova direita levantam dinheiro e recursos para seus objetivos comuns. Livre mercado, economia laissez-faire (para os negócios, claro), militarização do país (o que é chamado de “construir uma forte defesa militar”), impulsionar a “segurança interna”, i.e., dar ao FBI e à CIA liberdade para policiar nossa vida cotidiana, cortando todo investimento social exceto o destinado para a construção de prisões e assegurando que milhões de pessoas vão encontrá-las; em uma palavra, garantindo a propriedade do capital dos EUA sobre o mundo e colocando a “América” para trabalhar com salário mínimo (ou menor) são objetivos pelos quais toda a nova direita juraria com a mão na Bíblia.

Uma pista para entender a dupla alma da nova direita é perceber que essa mistura de políticas sociais reacionárias e audácia científica não é uma novidade na história do capitalismo. Se olhamos para o início do capital – os séculos XVI e XVII, para os quais a Maioria Moral voltaria com tanta alegria – vemos uma situação semelhante nos países da “decolada”. No mesmo momento em que Galileu estava apontando seu telescópio para a lua e Francis Bacon estava construindo as fundações da racionalidade científica, mulheres e gays eram queimados na fogueira por toda a Europa, com a benção da intelligentsia modernizadora (sic) europeia.

Um mal súbito? Uma queda inexplicável no barbarismo? Na realidade, a caça às bruxas foi parte e parcela dessa tentativa de “aperfeiçoamento humano”, que era usualmente reconhecida como o sonho dos pais do racionalismo moderno. Porque o impulso da classe capitalista emergente na direção da dominação e da exploração da natureza teria permanecido letra morta sem a criação simultânea de um novo tipo de indivíduo cujo comportamento seria tão regular, tão previsível e controlável quanto o das recém-descobertas leis naturais. Para conseguir esse propósito, tinha-se que destruir a concepção mágica do mundo que, p.ex., fazia com que os índios nas colônias de ultramar acreditassem que era um sacrilégio minerar a terra, o que garantia ao proletariado no interior da Europa que as pessoas poderiam voar, estar em dois lugares ao mesmo tempo, adivinhar o futuro e (mais importante) que, em alguns “dias azarentos”, todo trabalho deveria ser cuidadosamente evitado. A caça às bruxas, além disso, assegurava o controle da maior fonte de trabalho, o corpo da mulher, criminalizando o aborto e todas as formas de contracepção como um crime contra o Estado. Enfim, a caça às bruxas era funcional para a reorganização da vida familiar, i.e., a reestruturação da reprodução que acompanhava a reorganização do trabalho em bases capitalistas. Na fogueira morreram adúlteras, mulheres de “má reputação”, lésbicas, mulheres que viviam sozinhas ou não tinham “espírito materno” ou tinham filhos ilegítimos. Na fogueira terminaram muitas pedintes que amaldiçoavam sem receio os que recusavam um pouco de “cerveja e pão”. Porque, na “transição” para o capitalismo, foi principalmente a mulher rebelde (destinada a depender do homem para a sua sobrevivência) que foi pauperizada. Os pais do racionalismo moderno aprovaram; alguns até mesmo reclamaram que o Estado não havia ido longe o suficiente. Sabidamente, Bodin insistiu que as bruxas não deveriam ser “misericordiosamente” enforcadas antes de ser entregadas às chamas.

Que encontremos hoje uma situação parecida dominando nos EUA é uma indicação da profundidade da crise do capital. Sempre – no seu começo, assim como, esperamos, no seu fim – que está incerto das suas fundações, o capital volta às bases. Atualmente isso quer dizer tentar um audacioso salto tecnológico que, por um lado (no desenvolvimento da produção), concentre o capital e automatize o trabalho em um grau sem precedentes e que, por outro, empurre milhões de trabalhadores seja para o desassalariamento (desemprego), seja para o emprego em tarefas de trabalho intensivo, pagas com salários mínimos, nos moldes da muito aplaudida força de trabalho. Isso envolve, no entanto, a reorganização do processo pelo qual o trabalho é reproduzido – um projeto em que se espera que as mulheres tenham o papel mais crucial.

A institucionalização da repressão e da autodisciplina nas linhas da Maioria Moral e da nova direita cristã é, hoje, exigida para as duas pontas do campo da classe trabalhadora: para aqueles que estão destinados ao nível de subsistência dos salários temporários e de meio expediente (acompanhados por longas horas de trabalho ou por uma busca perene de empregos), assim como para aqueles eleitos para um trabalho de “salário significativo”, com os equipamentos mais sofisticados que os tecnólogos do capital podem produzir no momento. Que a santíssima trindade Deus/Trabalho/Família seja sempre crucial em momentos de repressão é uma verdade bem provada que o capital nunca esqueceu. O que poderia ser mais produtivo do que uma vida de isolamento, em que as únicas relações que temos uns com os outros são relações de disciplina recíproca: papai controlando mamãe, mamãe ensinando às crianças que a vida é dura e a sobrevivência é problemática, os vizinhos se juntando para manter a vizinhança “limpa”, a sociabilidade se reduzindo àquelas ocasiões que nos ajudam encontrar ou manter um emprego? E se a vida é dolorosa, sempre existe Deus, em nome de quem você pode justificar até uma guerra nuclear contra os infiéis que, como os sodomitas rebeldes, merecem ser eliminados da face da Terra (mesmo que alguns dos justos sejam eliminados também). E você pode até justificar uma guerra nuclear que vai eliminar você também: afinal, qual é a importância da vida se você já aceitou negociar um câncer pelo salário, renunciar seus desejos e postergar sua realização para outro mundo?

Não nos enganemos. Weinberger precisa de Jerry Farwell, assim como Reagan. De Wall Street ao exército, todas as utopias do capital são sustentadas em uma micropolítica infinitesimal no nível do corpo, contendo nossos espíritos animais e redefinindo o sentido daquela famosa Busca da Felicidade que (pelo menos até agora) [referência à constituição dos EUA] foi a maior de todas as mentiras constitucionais. E Jerry Falwell é ainda mais necessário para o desenvolvimento do trabalhador de alta tecnologia (computação, informação, energético, genético), que – diferente daqueles nos andares mais baixos da classe trabalhadora – não pode ser gerido pela vara (caso Deus falhe); porque o dano que ele pode causar (caso durma no serviço) é infinitamente maior, porque as máquinas que ele controla são infinitamente mais caras.

O que iniciar uma indústria de alta tecnologia mais exige hoje é um salto tecnológico na máquina humana – um grande passo evolucionário criando um novo tipo de trabalhador para responder às necessidades de investimento do capital. Quais são as capacidades necessárias para o novo ser que os nossos futurólogos querem? Uma olhada no debate sobre colônias espaciais é revelador a esse respeito. Todos concordam, em primeiro lugar, que hoje o maior impedimento para o desenvolvimento de colônias no espaço é biossocial e não tecnológico, i.e., você pode conseguir arranjar e manter juntas as peças da nave espacial, mas arranjar o técnico-trabalhador espacial certo é um projeto que até mesmo os atuais avanços da genética estão longe de resolver. É preciso um indivíduo que possa:

 

. suportar isolamento social e privação sensorial por longos períodos de tempo sem surtar;

. trabalhar “perfeitamente” em ambientes extremamente hostis/alienígenas e artificiais e sob enorme stress;

. atingir um controle extraordinário de suas funções corporais (pense nisso: leva uma hora cagar no espaço!) e reações psicológicas (raiva, ódio, indecisão), nossas fragilidades demasiado humanas que podem ser desastrosas no mundo frágil e vulnerável da vida no espaço;

. demonstrar total obediência, conformidade e receptividade às ordens, já que pode haver pouca tolerância para desvios sociais e desentendimentos quando o menor ato de sabotagem pode ter consequências catastróficas ao próprio equipamento muito caro, complexo e poderoso confiado a suas mãos;

 

De fato, não apenas o técnico espacial deverá ter uma relação quase religiosa com as suas máquinas, mas ele mesmo deve se tornar cada vez mais parecido com uma máquina, atingindo uma perfeita simbiose com seu computador que, nas longas noites do espaço, é frequentemente sua única e sempre sua mais confiável guia, sua companheira, sua colega e sua amiga.

O trabalhador espacial, então, deve ser um tipo muito ascético, puro de corpo e alma, perfeito em sua performance, obediente como um relógio bem acertado e extremamente fetichista em seus modos mentais. Onde essa joia será provavelmente criada? Em uma seita religiosa de tipo fundamentalista. Para colocar nas palavras do biólogo Garrett Harding:

 

Que grupo seria o mais adaptado a esse mais recente admirável mundo novo (a colônia espacial)? Provavelmente um grupo religioso. Deve haver unidade de pensamento e aceitação da disciplina. Mas os colonizadores não podem ser um grupo de unitaristas ou de quakers, porque essas pessoas enxergam a consciência individual como o melhor guia para a ação. A existência das colônias espaciais deverá exigir uma coisa mais parecida com os hutteritas ou os mórmons como seus habitantes… A integração não pode ser arriscada nesse veículo delicado, por medo de sabotagem e terrorismo. Apenas a ‘purificação’ pode funcionar.[1]

 

Não surpreendentemente, alguns dias depois de aterrissar, os astronautas da primeira nave espacial foram cumprimentados pelo Elder Neal Maxwell no Tabernáculo Mórmon. “Honramos hoje homens que viram Deus em toda a sua majestade e poder”, ele disse, e seis mil membros da congregação responderam “amém”.

A luta entre criacionismo e evolucionismo é apenas uma briga interna capitalista sobre quais são os meios de controle mais adequados. Até que nossos sociobiólogos e engenheiros genéticos – os heróis do atual avanço científico – tenham encontrado os meios para criar o robô perfeito, o chicote vai dar conta, especialmente em uma era ainda infectada pelas ideologias anárquicas dos anos 60, quando muitos de germes ruins já tinham sido implantados nas cabeças tanto dos filhos quanto dos pais.

Além disso, o ascetismo, o autocontrole, a saída da Terra e o corpo, que é a substância do ensinamento puritano, é o melhor solo em que os planos científicos e econômicos do capital podem florescer. De fato, hoje, de maneira mais consciente do que nunca, em sua tentativa de se mudar para praias mais seguras, o capital está abraçando o sonho de toda religião: a superação de todos os limites físicos, a redução do ser humano individual a uma criatura angelical, só alma e vontade. Na criação do trabalhador eletrônico/espacial, o sacerdote da exploração/exploração do universo, o capital está lutando mais uma vez sua batalha histórica contra a matéria, tentando romper finalmente tanto os limites da Terra quanto os limites da “natureza humana” que, em sua forma atual, apresenta limites irredutíveis que devem ser superados.

O impulso para a organização de indústrias no espaço e a desmaterialização do corpo andam juntos. Porque a primeira não pode ser realizada sem a remodelagem de todo um nexo de necessidades, vontades, desejos, que são o produto de bilhões de anos de evolução material do planeta e que até agora foram as condições materiais da reprodução biossocial – os azuis, os verdes, o mamilo, as bolas, os pelos do cu, a textura das laranjas, carne, cenouras, o vento e o cheiro mar, a luz do dia, a necessidade de contato físico, SEXO!

Os perigos da sexualidade são emblemáticos dos obstáculos que o capital encontra em sua tentativa de criar um ser totalmente autocontrolado, capaz de passar noites sozinho, falando só com seu computador, com sua mente focada exclusivamente em sua tela. Você pode se dar ao luxo de ter tesão ou se sentir solitário no espaço? Você pode ser dar ao luxo de ser ciumento ou ter uma crise matrimonial?

A atitude correta a esse respeito é indicada por um relatório sobre a Estação do Polo Sul na Antártica, que foi montada ostensivamente para estudar as condições meteorológicas, astronômicas e geográficas do polo, mas na realidade é um grande centro para a experimentação humana: o estudo de seres humanos em condições próximas às do espaço (isolamento por muitos meses, falta de contato sexual, etc.). Esse relatório diz:

 

Quanto às relações sexuais, todos os candidatos foram advertidos sobre os ‘perigos’ de ligações sexuais sob as condições sobrecarregadas aqui. O celibato foi a melhor opção… Homens não pensam em nada a não ser em sexo pelas primeiras semanas, mas então isso submerge até mais ou menos o fim do inverno. Um trabalhador relatou: ‘você basicamente coloca isso pra fora da cabeça. Você trabalha o tempo todo; não há privacidade.[2]

 

Celibato, AIDS, abstinência: é o último passo em um longo processo pelo qual cada vez mais o capital reduziu o conteúdo sensível-sexual de nossas vidas e encontros com pessoas, substituindo o toque físico pela imagem mental. Séculos de disciplina capitalista percorreram um longo caminho na direção da produção de indivíduos que fogem dos outros por medo do toque (é só observar o modo como vivemos em nossos espaços sociais: ônibus, trens, cada passageiro fechado em seu espaço, seu próprio corpo mantendo fronteiras bem definidas, mas invisíveis; cada pessoa em seu castelo). Esse isolamento físico assim como emocional de cada um é a essência da cooperação capitalista. Mas ele – assim como a desmaterialização de todas as formas de nossas vidas – encontra seu cúmulo no habitante da futura colônia espacial, cujo sucesso depende de sua habilidade de se tornar um anjo puro, totalmente purificado – que não fode, não precisa dos estímulos sensíveis que são nosso alimento diário na Terra, mas que pode viver apenas se alimentando de sua força de vontade autossuficiente e autocentrada.

Aumentando a abstração do corpo inimigo, reduzindo a pessoa que você destrói a um traço em uma máquina de vídeo: esse é mais um elemento essencial da produção de morte que provavelmente será o produto central da industrialização espacial. De fato, a guerra eletrônica pode se tornar tão abstrata que a não ser que a sua imagem seja colocada na tela, você provavelmente vai esquecer que pode ser destruído. A abstração do objeto de agressão é a essência da lição que está sendo ensinada à juventude fundamentalista, que desde muito cedo ouve que todos os “desviantes” são iguais – perfeitamente substituíveis – como expressões iguais dos poderes abstratos do mal.

Comunismo = Homossexualidade = Drogas = Promiscuidade = Subversão = Terrorismo = Lesbianismo  = … = Satanás. Desse ponto de vista, todas as questões sobre “quem”, “o que”, “onde” e “quando” se tornam irrelevantes: uma boa prática para uma política de repressão e uma excelente para uma política de destruição nuclear maciça que exige a construção de um tipo de ser que pode aceitar a destruição de milhões de corpos como desagradável, talvez, mas um objetivo não menos necessário para limpar a Terra de todo desvio social e luta – uma poluição muito pior aos olhos do fundamentalista do que o estrôncio 90.

Para conseguir isso, uma estratégia de isolamento sistemático é necessária: rompendo todos os laços entre nós e os outros e nos distanciando até mesmo do nosso próprio corpo. A igreja eletrônica desmaterializa completamente o curador que se torna uma imagem fria duplicada em milhares de telas ou um comentário “pessoal” em uma carta escrita por um computador. O feedback principal de uma pessoa com o pregador é o monetário: você manda seu dinheiro e ele começa a rezar por você. Se você se atrasa nos pagamentos, as orações começam a perder o fervor até que terminam com um “aviso final”.

Com o pregador eletrônico, as relações sociais se tornam tão abstratas que elas são virtualmente substituídas por uma imagem: o sermão de rádio e TV tem a mesma função que o computador doméstico para a família de alta tecnologia: reproduzir para você, em uma forma purificada e incorpórea, as relações/experiências de que você foi privado na vida cotidiana. Elas substituem encontros humanos perigosos – porque imprevisíveis – com uma sociabilidade produzida por geringonças que podem ser desligadas à vontade. Elas vão direto à alma sem passar pelo corpo: limpas, eficientes, infinitamente disponíveis e em todas as horas do dia e da noite (de fato, elas podem ser gravadas e executadas novamente sempre que você quiser – o tempo, também, e não apenas o espaço, é ganho!).

Vivendo com a máquina, se tornando uma máquina: um anjo dessexualizado, se movendo os espaços internos do aparelho, integrando perfeitamente o espaço de trabalho e o espaço de vida como na cápsula de um astronauta, infinitamente sem peso, porque purificado da força da gravidade, de todos os desejos/tentações humanas – a antiga recusa do trabalho finalmente negada. O velho sonho do capital sobre a “perfectibilidade humana” que estava por trás de tantas utopias distintas dos séculos XVI e XVII, de Bacon a Descartes, parece estar ao alcance da mão. Não apenas agora podemos responder à antiga pergunta puritana “o que os anjos fazem no paraíso?”, mas sabemos até como eles se sentem. Aqui, é Wally Shirra falando:

 

Se sentindo sem peso… Eu não sei, são tantas coisas diferentes juntas. Um sentimento de orgulho, de solidão saudável, de liberdade dignificada de tudo o que é sujo e pegajoso. Você se sente requintadamente confortável, é essa a palavra, requintadamente… Você se sente confortável, e você sente que tem tanta energia, uma urgência tal de fazer as coisas, uma tal habilidade de fazer as coisas. E você trabalha bem, sim, você pensa bem, você se move bem, sem nenhum suor, sem dificuldade, como se a maldição bíblica do suor do seu rosto não existisse mais. Como se você tivesse nascido de novo.[3]

 

Como a vida na Terra parece pequena dessas alturas… Não espanta que o capital seja tão descuidado com nossa casa terrestre, tão interessado em destruí-la – o big bang da explosão nuclear – destruindo em um segundo milhões de toneladas de matéria – a perfeita encarnação da vitória do espírito sobre a matéria-terrestre – tão criador quanto o primeiro ato de Deus! Big Bang Big Falo. Reduzido à sua essência pura e faminta de poder, fodendo essa Terra degradada em sua aspiração divina de se libertar de todos os entraves. Fausto em um rosto de anjo/astronauta/trabalhador espacial, um super-homem, que não precisa de corpo algum, nem do seu próprio nem do de outra pessoa, para ter sua vontade, não apenas na Terra, mas no universo também.

Uma sociedade de anjos, governada por Deus, e motivada por preocupações puramente espirituais/religiosas/patrióticas. A aventura da colonização espacial não será uma “Nova América”, no sentido de ser um território de despejo de degredados, recusados e escravos. A necessidade de identificação total com o projeto de trabalho, obediência total, autodisciplina total e autocontrole, é tão alta que, de acordo com a Nasa, até mesmo as velhas formas de recompensa deveriam ser imediatamente excluídas:

 

Incentivos monetários elevados não devem ser utilizados no recrutamento para a colonização espacial, porque atraem as pessoas erradas. Além disso, não seria saudável para a comunidade, assim como para os indivíduos envolvidos, fazer esforços para manter ‘rebeldes’ na comunidade extraterrestre. Seria mais saudável retorná-los para a Terra, mesmo que isso possa ser mais caro.[4]

 

Trabalho sem salário. É a utopia capitalista essencial, em que o trabalho e a repressão se tornam sua própria recompensa, e todas as recusas são jogadas no frio da noite estelar. Finalmente atingimos seu limite.

[1] Stuart Brand, ed., Space Colonies, p. 54. NY: Penguin. 1977.

[2] Robert Reinhold, “Strife and Despair at South Pole Illuminate Psychology of Isola- tion,” New York Times, January 12, 1982.

[3] Uma citação de Walter M. Schirra Jr, durante uma transmissão para televisão do espaço, na Apollo 7, em outubro de 1968.

[4]  Richard D. Johnson e Charles H. Holbrow, eds., Space Settlements: A Design Study, p. 31. Washington, DC: Nasa, Scientific and Technical Information Office, 1977.

 

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de In Letters of Blood and Fire, Common Notions, 2013.
Você pode contribuir enviando e-mails indicando erros de tradução ou sugestões de melhoria para autonomistablog@gmail.com
Este e outros textos de tradução do Coletivo Autonomista! estão disponíveis em: https://autonomistablog.wordpress.com/

Todo conhecimento deve ser livre. Por isso, não há restrições à cópia e distribuição desse material. Compartilhe!

The Black Panther: Sobre a Crítica de Cuba

Existem dois tipos de crítica, a crítica revolucionária e a crítica reacionária. A crítica revolucionária é feita com base em princípios, no momento correto, quando as condições objetivas e subjetivas estão corretas, e ela é feita para atingir um maior grau de unidade e fortalecer o campo revolucionário. A crítica reacionária geralmente assume a forma de um ataque pessoal, por conta de alguma mágoa pessoal. Ela é geralmente uma crítica unilateral baseada em uma análise subjetiva, sem ter examinado a situação por todos os lados e a crítica reacionária só serve aos interesses dos fascistas e imperialistas.

Sobre a questão do socialismo e do racismo, o Partido Pantera Negra não disse, nunca disse, que se o socialismo for instituído então o racismo automaticamente acaba. Embora alguns críticos do Partido Pantera Negra, a saber Stokely Charmichael, tenham insinuado que temos essa posição. O que dizemos é que em uma sociedade socialista as condições são mais favoráveis para que as pessoas comecem a luta para eliminar o racismo.

Cuba, a 90 milhas da Flórida em que lançam aqueles foguetes para Saturno, com uma base naval dos EUA, Guantánamo, bem na sua ilha, está lutando pela defesa do povo cubano e a sua revolução debaixo de um bloqueio econômico que é asfixiante e promete aumentar. Vemos a revolução cubana como uma grande conquista da revolução mundial, ao estabelecer uma ilha de socialismo em um oceano, o hemisfério ocidental, de exploração capitalista, agressão imperialista e repressão fascista. Desejamos ao povo cubano vitória na sua luta contra o bloqueio e que o povo cubano atinja seu objetivo de 10 milhões de toneladas na sua colheita de cana-de-açúcar de 1970.

Não nascemos em solo cubano. Alguns membros do Partido Pantera Negra usaram Cuba como meio de escapar da repressão fascista na Babilônia, e eles estão vivos, bem e livres hoje. Não seria no interesse de Cuba ou no da revolução mundial começar a lançar ataques a Cuba porque não conseguiram eliminar todas as formas de racismo nos dez anos desde que a sua revolução socialista começou.

A regra central do Partido Pantera Negra diz: Tenha fé no Povo, tenha fé no Partido. Esse princípio não deve ser aplicado apenas na Babilônia, mas por todo o mundo. Com base nele e no materialismo histórico, sabemos que Cuba, os EUA e o mundo se livrarão do racismo, e que os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos.

TODO PODER AO POVO.

Los Tem Million Van [Estamos realizando os dez milhões de toneladas]

– The Black Panther, 27 de dezembro de 1969

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de The Black Panthers Speak. Haymarket Books, 2014.
Você pode contribuir enviando e-mails indicando erros de tradução ou sugestões de melhoria para autonomistablog@gmail.com
Este e outros textos de tradução do Coletivo Autonomista! estão disponíveis em: https://autonomistablog.wordpress.com/

Todo conhecimento deve ser livre. Por isso, não há restrições à cópia e distribuição desse material. Compartilhe!

Huey P. Newton – O manejo correto de uma Revolução

A maior parte do comportamento humano é comportamento aprendido. A maior parte das coisas que o ser humano aprende é adquirida em uma relação indireta com o objeto. Os humanos não agem pelo instinto, como os animais inferiores fazem. Essa coisas aprendidas indiretamente podem muitas vezes estimular respostas muito eficazes para o que pode ser uma experiência direta posterior. Nesse momento, as massas negras estão lidando com a revolução de maneira incorreta. Os irmãos em East Oakland aprenderam com Watts os meios de resistência, lutando reunindo pessoas nas ruas, jogando tijolos e coquetéis molotov para destruir a propriedade e criar distúrbios. Os irmãos e irmãs nas ruas foram reunidos em uma área pequena pela polícia da gestapo[1] e, então, imediatamente contidos pela força brutal das tropas de choque do opressor. Esse modo de resistência é esporádico, de curta duração e custoso em temos de violência contra o povo. Esse método foi transmitido para todos os guetos da nação negra pelo país. O primeiro homem que jogou um coquetel molotov não é conhecido pessoalmente pelas massas, mas ainda assim a ação foi respeitada e seguida pelo povo.

O partido de vanguarda deve fornecer uma liderança para o povo. Ele deve ensinar os métodos estratégicos corretos de resistência prolongada pela literatura e por atividades. Se as atividades do partido são respeitadas pelo povo, o povo seguirá o exemplo. Esse é o papel principal do partido. Esse conhecimento provavelmente será adquirido em segundo mão pelas massas, assim como o que mencionamos acima era adquirido indiretamente. Quando o povo aprende que não é mais vantajoso para ele resistir indo para as ruas em grandes números, e quando ele vê a vantagem nas atividades do método da guerra de guerrilhas, eles rapidamente seguirão o exemplo.

Mas primeiro, eles devem respeitar o partido que está transmitindo essa mensagem. Quando o grupo de vanguarda destrói a maquinaria do opressor lidando com ele em pequenos grupos de três ou quatro e então escapa da força do opressor, as massas ficarão entusiasmadas e irão aderir a essa estratégia correta. Quando as massas ouvirem que um policial da gestapo foi executado enquanto tomava seu café na esquina, e os executores revolucionários fugiram sem ser rastreados, as massas vão ver a validade desse tipo de abordagem à resistência. Não é necessário organizar trinta milhões de negros em grupos primários de dois ou três, mas é importante para o partido mostrar ao povo como conduzir a revolução. Durante a escravidão, em que nenhum partido de vanguarda existia e as formas de comunicação eram severamente restritas e insuficientes, muitas revoltas de escravos aconteceram.

Existem basicamente três maneiras pelas quais se pode aprender: pelo estudo, pela observação e pela experiência real. A comunidade negra é basicamente composta de ativistas. A comunidade aprende pela atividade, seja pela observação ou pela participação na atividade. Estudar e aprender é bom, mas a melhor maneira de aprender é a experiência real é a melhor maneira de aprender. O partido deve se envolver em atividades que irão ensinar o povo. A comunidade negra basicamente não é uma comunidade de leitores. Portanto, é muito importante que o grupo de vanguarda sejam, em primeiro lugar, ativistas. Sem esse conhecimento da comunidade negra, não se poderia conquistar o conhecimento fundamental para a revolução negra na América racista.

A principal função do partido é despertar o povo e ensiná-los o método estratégico de resistir à estrutura de poder, que é preparada não apenas para combater a resistência do povo, que é preparada não apenas para o combate à resistência do povo com brutalidade massiva, mas para também para aniquilar completamente a comunidade negra, a população negra.

Se a estrutura de poder aprender que o povo negro tem uma quantidade ‘x’ de armas em seu poder, isso não vai estimular a estrutura de poder a se preparar com armas, porque ela já está mais do que preparada.

O resultado dessa educação será positivo para o povo negro em sua resistência e negativo para a estrutura de poder em sua opressão, porque o partido sempre exemplifica o desafio revolucionário. Se o partido não conseguir fazer o povo perceber as ferramentas de sua libertação e o método estratégico que deve ser usado, então não há meios pelos quais o povo pode ser mobilizado de maneira adequada.

A relação entre o partido de vanguarda e as massas é uma relação secundária. A relação entre os membros do partido de vanguarda é uma relação primária. É importante que os membros do grupo de vanguarda mantenham uma relação cara-a-cara uns com os outros. Isso é importante se os aparelhos do partido devem funcionar bem. É impossível reunir aparelhos funcionais do partido ou programas sem essa relação direta. Os membros do grupo de vanguarda devem ser revolucionários experientes. Isso vai reduzir o risco de informantes do Tio Tom e de oportunistas.

O principal propósito do grupo de vanguarda deve ser elevar a consciência das massas através de programas educacionais e certas atividades físicas de que o partido irá participar. As massas adormecidas devem ser bombardeadas com a abordagem correta da luta pelas atividades do partido de vanguarda. Assim, as massas devem saber que o partido existe. O partido deve usar de todos os meios necessários para conseguir que essa informação circule entre as massas. Se as massas não tem conhecimento do partido, então será impossível para as massas seguir o programa do partido.

O partido de vanguarda nunca é clandestino no início de sua existência, porque isso limitaria sua efetividade e processos educativos. Como você pode ensinar as pessoas se as pessoas não te conhecem e te respeitam? O partido deve existir abertamente por tanto tempo quanto a estrutura de poder dos cães permitir, e, com sorte, quando o partido for obrigado a se tornar clandestino, a sua mensagem já terá sido circulada entre o povo. As atividades do partido de vanguarda na superfície terão necessariamente uma vida curta.

É por isso que é tão importante que o partido tenha um impacto imenso no povo antes de ser forçado à clandestinidade.

Nesse momento, o povo sabe que o partido existe, e eles vão buscar mais informação sobre as suas atividades de um partido clandestino.

Muitos assim chamados revolucionários trabalho com a ilusão falaciosa de que o partido de vanguarda deve ser uma organização secreta que a estrutura de poder desconhece, exceto por algumas cartas ocasionais que chegam às suas casas de noite. Partidos clandestinos não podem distribuir panfletos anunciando uma reunião clandestina. Essas são as contradições e inconsistências dos assim chamados revolucionários. Os assim chamados revolucionários tem, na verdade, medo do risco que eles defendem para o povo. Esses assim chamados revolucionários querem que o povo diga o que eles mesmos tem medo de dizer, e que o povo faça o que eles tem medo de fazer. Isso torna o assim chamado revolucionário um covarde e um hipócrita.

Se esses impostores investigassem a história da revolução, eles veriam que o grupo de vanguarda sempre começa como uma organização aberta e é, mais tarde, forçada à clandestinidade pelo agressor. A Revolução Cubana exemplifica esse fato; quando Fidel Castro começou a resistir ao açougueiro Batista e aos cães dominantes americanos, ele começou falando no campus da Universidade de Havana, em público. Ele foi, depois, forçado a ir para as montanhas. Esse impacto no povo pobre de Cuba foi muito grande e recebido com muito respeito. Quando ele passou à clandestinidade, o povo cubano o procurou. As pessoas foram para as montanhas para encontrar a ele e a seu bando de doze. Castro manejou a luta revolucionária corretamente. Se a Revolução Chinesa for investigada, se verá que o Partido Comunista estava tranquilo na superfície, de modo que eles conseguiram reunir apoio das massas. Existem muitos lugares em que se pode ler sobre e aprender a abordagem correta, como na revolução no Quênia, na Revolução Argelina, em OS CONDENADOS DA TERRA de Fanon, a Revolução Russa, os trabalhos do Presidente Mao Tsé-Tung e muitos outros.

Um revolucionário deve perceber que se ele for sincero, a morte é iminente pelo fato de que as coisas que ele está dizendo e fazendo são extremamente perigosas. Sem essa percepção, é impossível proceder como um revolucionário. As massas estão constantemente procurando por um guia, um messias, para liberá-las das mãos do opressor. O partido de vanguarda deve exemplificar as características de uma liderança digna. Milhões e milhões de pessoas oprimidas podem não conhecer os membros do partido de vanguarda diretamente ou pessoalmente, mas elas irão ganhar por um contato indireto o conhecimento da estratégia adequada para a libertação pela mídia de massas e pelas atividades físicas do partido. É de importância fundamental que o partido de vanguarda desenvolva um órgão político, como um jornal produzido pelo partido, assim como é que ele empregue a arte estratégica revolucionária da destruição da maquinaria do opressor. Por exemplo, Watts. A economia e a propriedade do opressor foram destruídas de tal maneira que não importa o quanto o opressor tentasse apagar as atividades dos irmãos negros, a natureza real e a causa real da atividade foram comunicadas a cada comunidade negra. Para dar mais um exemplo, não importa o quanto o opressor tente confundir e distorcer a mensagem do irmão Malcolm X, o povo negro por todo o país a entende perfeitamente pelo país e a recebe.

O Partido Pantera Negra para a Autodefesa ensina que em última análise, a quantidade de armas de fogo e de defesa, como as granadas, bazucas e outros equipamentos necessários, serão supridas ao tomar essas armas da estrutura de poder, como no exemplo do Viet Cong. Assim, quanto maior a preparação militar, maior a disponibilidade de armas para a comunidade negra. Alguns hipócritas acreditam que quando o povo for ensinado pelo grupo de vanguarda a se preparar para a resistência, isso apenas traz os homens para eles com cada vez mais violência e brutalidade; mas o fato é que quando o homem se torna mais opressor, isso apenas aumenta o fervor revolucionário. O povo nunca faz a revolução. Os opressores, com suas ações brutais, causam a resistência do povo. O partido de vanguarda apenas ensina os métodos corretos de resistência. Então, se as coisas podem ficar piores para o povo oprimido, então eles não sentirão necessidade de revolução ou resistência. A reclamação dos hipócritas de que o Partido Pantera Negra para a Autodefesa está expondo o povo a sofrimentos maiores é uma observação incorreta. O povo provou que eles não irão tolerar mais opressão da polícia racista dos cães com suas rebeliões nas comunidades negras pelo país. O povo está procurando, agora, por orientação para aumentar e fortalecer sua luta de resistência.

 

O Pantera Negra, 18 de maio de 1968

[1] [N.T.] Maneira pela qual os panteras se referiam à polícia estadunidense, remetendo à polícia nazista.

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de The Black Panthers Speak. Haymarket Books, 2014.
Você pode contribuir enviando e-mails indicando erros de tradução ou sugestões de melhoria para autonomistablog@gmail.com
Este e outros textos de tradução do Coletivo Autonomista! estão disponíveis em: https://autonomistablog.wordpress.com/

Todo conhecimento deve ser livre. Por isso, não há restrições à cópia e distribuição desse material. Compartilhe!

Huey Newton fala ao The Movement sobre o Partido Pantera Negra, nacionalismo cultural, SNCC, liberais e revolucionários brancos

 

THE MOVEMENT: A questão do nacionalismo é uma questão vital no movimento negro hoje. Alguns fazem uma distinção entre nacionalismo cultural e nacionalismo revolucionário. Você gostaria de falar sobre as diferenças e nos dizer qual é a sua perspectiva?

HUEY P. NEWTON: Existem dois tipos de nacionalismo, o nacionalismo revolucionário e o nacionalismo reacionário. O nacionalismo revolucionário depende primeiramente de uma revolução popular que tenha como meta o povo no poder. Por isso, para ser um nacionalista revolucionário você teria necessariamente que ser um socialista. Se você é um nacionalista reacionário, você não é um socialista, e sua meta final é a opressão do povo.

O nacionalismo cultural, ou nacionalismo de costela de porco, como eu chamo às vezes, é basicamente um problema de ter a perspectiva política errada. Ele parece ser uma reação, ao invés de responder à opressão política. Os nacionalistas culturais estão preocupados em retornar à velha cultura africana e, com isso, reconquistar sua identidade e liberdade. Em muitos casos, os nacionalistas culturais se alinham com um nacionalismo reacionário.

Papa Doc, no Haiti, é um excelente exemplo de nacionalismo reacionário. Ele oprime o povo, mas promove a cultura africana. Ele é contra qualquer coisa que não seja negra, o que superficialmente parece muito bom, mas para ele é apenas uma maneira de enganar o povo. Ele só expulsou os racistas e os substitui por ele mesmo como opressor. Muitos dos nacionalistas nesse país parecem desejar os mesmos objetivos.

O Partido Pantera Negra, que é um grupo revolucionário de pessoas negras, percebe que temos que ter uma identidade. Temos que perceber nossa herança negra para nos dar força de ir adiante e progredir. Mas quanto a retornar à velha cultura africana, é desnecessário e desvantajoso em muitos pontos. Acreditamos que a cultura por si mesma não vai nos liberar. Vamos precisar de coisas mais fortes.

Nacionalismo revolucionário

Um belo exemplo de nacionalismo revolucionário foi a revolução na Argélia, quando Ben Bella assumiu. Os franceses foram expulsos, mas foi uma revolução popular, porque o povo terminou no poder. Os líderes que assumiram não estavam interessados em razões de lucro, em que poderiam explorar o povo e mantê-lo num estado de escravidão. Eles nacionalizaram a indústria e semearam todos os lucros possíveis na comunidade. Em poucas palavras, disso que se trata no socialismo.  Os representantes do povo exercem suas funções estritamente com a permissão do povo. A riqueza do país é controlada pelo povo e eles são consultados sempre que modificações nas indústrias são feitas.

O Partido Pantera Negra é um grupo nacionalista revolucionário e vemos uma contradição fundamental entre o capitalismo nesse país e os nossos interesses. Percebemos que esse país se tornou muito rico com a escravidão e que a escravidão é o capitalismo ao extremo. Nós temos dois males para combater: o capitalismo e o racismo. Devemos destruir tanto o racismo quanto o capitalismo.

MOVEMENT: A questão da unidade no interior da comunidade negra está diretamente relacionada com a questão do nacionalismo. Houveram algumas questões sobre isso, já que o Partido Pantera Negra lançou candidatos contra outros candidatos negros nas eleições recentes na Califórnia. Qual é a sua posição sobre isso?

HUEY: Bem, uma coisa muito peculiar aconteceu. Historicamente, tínhamos o que Malcolm X chamava de negro da plantação e negro da casa[1]. O negro da casa tinha alguns privilégios, um pouco mais. Ele ganhava as roupas usadas do senhor e não tinha que trabalhar tanto quanto o negro da plantação. Ele chegou a respeitar o senhor a tal ponto que ele se identificava com o senhor, porque ganhava algumas das sobras que os negros da plantação não ganhavam. E, por ter essa identidade com ele, ele via os interesses do senhor de escravos como sendo os seus interesses. Em alguns momentos ele chegaria até a proteger o senhor de escravos mais do que ele protegia a si mesmo. Malcolm argumenta que se a casa do senhor pegasse fogo, o negro da casa trabalharia mais duro do que o senhor para apagar o fogo e salvar a casa do senhor, enquanto o negro da plantação, os negros da plantação, estavam rezando para que a casa queimasse por inteiro. O negro da casa se identificava tanto com o senhor que quando ele ficava doente, o negro da casa diria, “Senhor, tamos doentes!”

 

Burguesia negra

O Partido Pantera Negra são os negros da plantação, e estamos esperando que o senhor morra quando ele ficar doente. A burguesia negra parece estar agindo no papel do negro da casa. Eles são pró-administração. Eles gostariam que algumas concessões fossem feitas, mas na configuração geral, eles tem um pouco mais de bens materiais, um pouco mais de vantagens, um pouco mais de privilégios do que os pobretões negros; a classe inferior. E, assim, eles se identificam com a estrutura de poder e veem os seus interesses como os interesses da estrutura de poder. Na verdade, ela é contrária aos seus interesses.

O Partido Pantera Negra foi forçado a traçar uma linha de demarcação. Somos por todos aqueles que são pelo avanço do interesse dos negros pobres, que representam por volta de 98% dos negros aqui na América. Não somos controlados pelos radicais brancos desse país, nem somos controlados pela burguesia negra. Temos uma mente própria e se a burguesia negra não puder se alinhar com nosso programa inteiro, então a burguesia negra se coloca como nossa inimiga. E serão tratados e atacados como tais.

MOVEMENT: O Partido Pantera Negra teve um contato considerável com os radicais brancos desde seus primeiros dias. Qual é o papel desses radicais brancos, na sua perspectiva?

HUEY: Os radicais brancos desse país são a descendência dos filhos da besta que saqueou o mundo explorando todas as pessoas, se concentrando nas pessoas de cor. Eles são os filhos da besta que agora buscam se redimir, porque percebem que seus heróis anteriores, que eram senhores de escravos e assassinos, pregavam ideias que eram apenas fachadas para esconder a traição que infligiam no mundo. Eles estão virando as costas para seus pais.

O radical branco desse país, resistindo ao sistema, se torna de certo modo uma coisa abstrata, porque ele não é oprimido tanto quanto as pessoas negras são. Na verdade, a sua opressão é mais ou menos abstrata simplesmente porque ele não tem que viver em uma realidade de opressão.

O povo negro na América e as pessoas de cor em todo o mundo sofrem não apenas da exploração, mas sofrem também com o racismo. As pessoas negras aqui na América, a colônia negra, são oprimidas porque somos negros e somos explorados. Os brancos são rebeldes, muitos deles da classe média e quanto a qualquer opressão aberta, esse não é o caso. Então, eu chamo a sua rejeição do sistema de uma coisa mais ou menos abstrata. Eles estão procurando por novos heróis. Eles estão buscando limpar a hipocrisia que os seus pais deram ao mundo. Fazendo isso, eles veem as pessoas que estão realmente lutando por liberdade. Eles veem as pessoas que estão realmente defendendo a justiça e a igualdade e a paz por todo o mundo. Eles veem o povo do Vietnã, o povo da América Latina, o povo da Ásia, o povo da África e povo negro na colônia negra aqui na América.

 

Revolucionários brancos

Isso coloca mais ou menos um problema, de muitas maneiras, para o revolucionário negro, especialmente para o nacionalista cultural. O nacionalista cultural não entende os revolucionários brancos porque ele não pode ver porque uma pessoa branca se voltaria contra o sistema. Então, ele pensa que talvez isso seja mais hipocrisia sendo plantada pelas pessoas brancas.

Pessoalmente, penso que existem muitos jovens revolucionários brancos que são sinceros em sua tentativa de se realinhar com a humanidade e tornar realidade os altos padrões morais que seis pais e antepassados apenas exprimiram. Buscando novos heróis, os jovens revolucionários brancos encontraram os heróis na colónia negra no país e nas colônias em todo o mundo.

Os jovens revolucionários brancos levantaram a exigência para que as tropas se retirassem do Vietnã, tirassem as mãos da América Latina, se retirassem da República Dominicana e também se retirassem da comunidade negra ou da colônia negra. Então, você tem uma situação em que os jovens revolucionários brancos estão tentando se identificar com os povos oprimidos das colônias e contra o explorador.

O problema surge, então, no papel que eles podem assumir. Como eles podem ajudar a colônia? Como eles podem ajudar o Partido Pantera Negra ou qualquer outro grupo revolucionário? Eles podem ajudar os revolucionários negros, em primeiro lugar, simplesmente se afastando da ordem atual, e, em segundo lugar, escolhendo seus amigos. Por exemplo, eles têm a escolha de serem ou amigos de Lyndon Barnes Johnson ou de Fidel Castro. Amigos de Robert Kennedy ou amigos de Ho Chi Minh. E esses são opostos diretos. Amigos meus ou amigos de Johnson. Depois que fizerem essa escolha, então os revolucionários brancos tem um dever e uma responsabilidade de agir.

O sistema imperialista ou capitalista ocupa regiões. Ele ocupa o Vietnã agora. Eles o ocupam mandando soldados para lá, mandando policiais para lá. Os policiais ou soldados são apenas uma arma na mão da ordem. Eles tornam o racista seguro no seu racismo. A arma na mão da ordem torna a ordem segura em sua exploração. O primeiro problema parece ser remover a arma da mão da ordem. Até pouco tempo atrás o radical branco não via razão para entrar em confronto com os policiais em sua própria comunidade. A razão pela qual eu disse até pouco tempo atrás é porque há atrito agora no país entre os jovens revolucionários brancos e a polícia. Porque agora os revolucionários brancos estão tentando colocar algumas das suas ideias em ação, e há tensão. Dizemos que isso deve ser uma coisa permanente.

Pessoas negras estão sendo oprimidas na colônia por policiais brancos, por racistas brancos. Estamos dizendo que eles devem se retirar. Percebemos que não é apenas o departamento policial de Oakland, mas as forças de segurança em geral. No dia 6 de abril não foi só o departamento de polícia de Oakland que emboscou os panteras. Foi o departamento de polícia de Oakland, o departamento de polícia de Emeryville e eu não me surpreenderia se houvessem mais outros. Quando os revolucionários brancos se mobilizaram para fechar o terminal do exército em outubro de 1965 não foi a polícia de Oakland por sua própria conta que tentou detê-los. Foram a polícia de Oakland, a polícia de Berkeley, a Patrulha Rodoviária, o Departamento do Xerife, e a guarda nacional estava a postos. Então, vemos que eles são todos parte de uma força de segurança para proteger o status quo; para garantir que as instituições consigam executar seus objetivos. Eles estão aqui para proteger o sistema.

No que me diz respeito, a única conclusão razoável seria primeiro perceber o inimigo, conceber um plano, e então quando alguma coisa acontecer na colônia negra – quando somos atacados e emboscados na colônia negra –, então os estudantes e intelectuais brancos revolucionários e todos os outros brancos que apoiam a colônia deveriam responder nos defendendo, atacando o inimigo em suas comunidades. A cada vez que formos atacados em nossa comunidade, deve haver uma reação dos revolucionários brancos; eles devem responder nos defendendo, atacando parte das forças de segurança. Parte dessa força de segurança que está determinada a executar os objetivos racistas das instituições americanas. No que diz respeito ao nosso partido, o Partido Pantera Negra é um partido totalmente negro, porque pensamos, como Malcolm X pensava, que não pode haver unidade entre brancos e negros até que primeiro exista unidade entre os negros. Temos um problema na colônia negra que é particular à colônia, mas estamos dispostos a aceitar ajuda do país desde que os radicais desse país percebam que temos, como Eldrige Cleaver diz em Soul on Ice, uma mente própria. Reconquistamos nossa mente, que foi tirada de nós, e vamos decidir as posições políticas e práticas que vamos tomar. Nós vamos fazer a teoria e executar a prática. É dever do revolucionário branco nos ajudar nisso.

Então, o papel do radical desse país, e ele tem um papel, é primeiro escolher seus amigos e seus inimigos, e, depois de fazer isso, coisa que parece que ele já fez, então ele tem que não só rearticular seus desejos para reconquistar seus padrões morais e se realinhar com a humanidade, mas também colocar isso em prática atacando os protetores das instituições.

MOVEMENT: Você falou bastante de lidar com os protetores do sistema, as forças armadas. Você gostaria de elaborar mais a razão pela qual você coloca tanta ênfase nisso?

HUEY: As razões pelas quais penso muito na questão de lidar com os protetores do sistema são simplesmente que sem essa proteção do exército, da polícia, dos militares, as instituições não poderia continuar com seu racismo e sua exploração. Por exemplo, quando os vietnamitas expulsam as tropas americanas imperialistas do Vietnã, eles automaticamente fazem com que as instituições racistas e imperialistas da América parem de oprimir esse país em particular. O país não pode implementar seu programa racista sem armas. E as armas são o exército e a polícia. Se os militares forem desarmados no Vietnã, então os vietnamitas serão vitoriosos.

Estamos na mesma situação aqui na América. Sempre que atacamos o sistema, a primeira coisa que os administradores fazem é mandar seus homens de armas. Se é uma greve pelo aluguel, por causa das habitações indecentes que temos, eles vão mandar a polícia para jogar os móveis pela janela. Eles mesmos não vêm. Eles mandam seus protetores. Então, para lidar com o explorador corrupto você vai ter que lidar com seu protetor, que é a polícia que recebe ordens dele. Isso é uma necessidade.

MOVEMENT: Você gostaria de ser mais específico em relação às condições que devem existir antes de uma aliança ou coalizão possa ser formada com grupos predominantemente brancos? Você poderia comentar em especial a sua aliança com o Partido da Paz e Liberdade na Califórnia?

HUEY: Temos uma aliança com o Partido da Paz e da Liberdade. O Partido da Paz e da Liberdade apoiou nosso programa integralmente e esse é o critério para uma coalizão com o grupo revolucionário negro. Se eles não tivessem apoiado integralmente nosso programa, então não veríamos nenhuma razão para fazer uma aliança com eles, porque somos a realidade da opressão. Eles não são. Eles são apenas oprimidos de uma maneira abstrata; somos oprimidos de uma maneira real. Nós somos os verdadeiros escravos! Então, esse é um problema pelo qual passamos mais do que qualquer um, e é nosso problema de libertação. Assim, deveríamos decidir que medidas e que ferramentas e que programas usar para nos libertar. Muitos dos jovens revolucionários brancos percebem isso e eu não vejo razão para não ter uma coalizão com eles.

MOVEMENT: Outros grupos negros parecem sentir que por suas experiências passadas é impossível para eles trabalhar com brancos e é impossível formar alianças. Quais razões você vê para isso e você pensa que a história do Partido Pantera Negra torna esse um problema menor?

 

SNCC e liberais

HUEY: Sempre houve uma espécie de relação doentia no passado com os liberais brancos apoiando as pessoas negras que estavam tentando conquistar sua liberdade. Eu os chamo de liberais brancos porque eles são muito diferentes dos radicais brancos. A relação era que os brancos controlaram o SNCC[2] por muito tempo. Desde o início do SNCC até recentemente, eles eram a mente do SNCC. Eles controlavam o programa do SNCC com dinheiro e eles controlavam a ideologia, ou as posições que o SNCC iria tomar. Os negros no SNCC eram completamente controlados programaticamente; eles não podiam fazer mais do que o que esses liberais brancos queriam que eles fizessem, o que não era muito. Então, os liberais brancos não estavam trabalhando pela autodeterminação da comunidade negra. Eles estavam interessados em algumas concessões de uma estrutura de poder. Eles sabotaram o programa do SNCC.

Stokely Charmichael chegou e, percebendo isso, começou a seguir o programa de Malcolm X para o Poder Negro. Isso assustou muitos dos liberais brancos que estavam apoiando o SNCC. Os brancos tiveram medo quando Stokely veio com o Poder Negro e disse que as pessoas negras tinham uma mente própria e que o SNCC seria uma organização totalmente negra e que o SNCC buscaria a autodeterminação para a comunidade negra. Os liberais brancos retiraram seu apoio, deixando a organização financeiramente quebrada. Os negros que estavam na organização, Stokely e H. Rap Brown, ficaram com muita raiva dos liberais brancos que os estavam ajudando sob a aparência de serem sinceros. Eles não eram sinceros.

O resultado foi que a liderança do SNCC se afastou dos liberais brancos, o que foi muito bom. Eu não penso que eles distinguiram o liberal branco e o revolucionário branco, porque o revolucionário branco também é branco e eles tem muito medo de ter qualquer contato com pessoas brancas. Até mesmo ao ponto de negar que os revolucionários brancos poderiam dar apoio, apoiando os programas do SNCC no país. Não fazendo programas, não sendo um membro da organização, mas simplesmente resistindo. Da mesma maneira que o povo vietnamita percebe que eles são apoiados sempre que outros povos oprimidos pelo mundo resistem. Porque isso ajuda a dividir as tropas. Isso drena o país militar e economicamente. Se os radicais desse país são sinceros, então isso definitivamente se somaria ao ataque que estamos fazendo à estrutura de poder. O programa do Partido Pantera Negra é um programa em que reconhecemos que uma revolução no país definitivamente nos ajudaria e tem tudo a ver com nossa luta!

 

Odeie o opressor

Penso que um dos maiores problemas do SNCC é que eles eram controlados pelo administrador tradicional: o administrador onipotente, a pessoa branca. Ele era a mente do SNCC. E então o SNCC reconquistou sua mente, mas acredito que ele perdeu sua perspectiva política. Penso que isso foi uma reação mais do que uma resposta. O Partido Pantera Negra NUNCA foi controlado por pessoas brancas. O Partido Pantera Negra sempre foi um grupo negro. Sempre tivemos uma integração de mente e corpo. Nunca fomos controlados por brancos, e, portanto, não tememos os radicais brancos desse país. Nossa aliança é a dos grupos organizados negros com os grupos organizados brancos. Logo que os grupos organizados brancos deixem de fazer as coisas que nos beneficiariam em nossa luta pela libertação, esse será nosso ponto de afastamento. Então, não sofremos com o complexo de cor de pele. Não odiamos pessoas brancas; odiamos o opressor. E se acontece de o opressor ser branco, o odiamos. Quando ele deixa de nos oprimir, não o odiamos mais. E nesse momento, na América, os senhores de escravos são um grupo branco. Estamos os expulsando do cargo com a revolução nesse país. Penso que a responsabilidade do revolucionário branco será nos ajudar nisso. E quanto somos atacados pela polícia ou pelos militares, então cabe ao revolucionário branco desse país atacar os assassinos e responder como respondemos, seguir nosso programa.

 

Senhores de escravos

MOVEMENT: Você aponta que existe um processo psicológico que existe historicamente nas relações entre brancos e negros nos EUA, e que ele deve mudar no correr da luta revolucionária. Gostaria de falar sobre isso?

HUEY: Sim. A relação histórica entre o negro e o branco aqui na América foi a relação entre o escravo e o senhor; o senhor sendo a mente e o escravo o corpo. O escravo executaria as ordens que a mente exigia que ele executasse. Fazendo isso, o senhor roubava a virilidade [manhood] do escravo, porque arrancava sua mente. Ele arrancava as mentes das pessoas negras. No processo, o senhor de escravos arrancava sei próprio corpo de si mesmo. Como Eldrige diz, o senhor de escravos se torna um administrador onipotente e o escravo se torna o servo supermasculino. Isso coloca o administrador onipotente na posição de controle ou no cargo principal, e o servo supermasculino na plantação.

Toda a relação se desenvolveu de modo que o administrador onipotente e o servo supermasculino se tornam opostos. O escravo sendo um corpo muito forte fazendo todas as coisas práticas, todo o trabalho se torna bastante masculino. O administrador onipotente, no processo de remover a si mesmo de todas as funções corpóreas, percebe mais tarde que ele se emasculou. E isso é muito perturbador para ele. Então, o escravo perdeu a sua mente e o senhor de escravos seu corpo.

 

Inveja do pênis

Isso fez com que o senhor de escravos tivesse muita inveja do escravo, porque ele imaginava o escravo como sendo mais homem, sendo sexualmente superior, porque o pênis é parte do corpo. O administrador onipotente baixou um decreto quando percebeu que seu plano para escravizar o homem negro tinha uma falha, quando descobriu que ele havia emasculado a si mesmo. Ele tentou atar o pênis do escravo. Ele tentou mostrar que o seu pênis poderia alcançar mais longe do que o do servo supermasculino. Ele disse “eu, o administrador onipotente, posso ter acesso à mulher negra”. O servo supermasculino então, teve uma atração psicológica pela mulher branca (a esquisita ultrafeminina) pela simples razão de que ela era fruto proibido. O administrador onipotente decretou que esse tipo de contato seria punido com a morte. Ao mesmo tempo, para reforçar seu desejo sexual, para confirmar sua virilidade, ele iria as quartos dos escravos e teria relações sexuais com a mulher negra (a amazona autossuficiente). Não para se satisfazer, mas simplesmente para confirmar sua virilidade. Porque se ele conseguisse satisfazer a amazona autossuficiente, então ele estaria certo de que ele era um homem. Porque ele não tem um corpo, ele não tem um pênis, ele quer castrar psicologicamente o homem negro. O escravo estava constantemente buscando a unidade consigo mesmo: uma mente e um corpo. Ele sempre quis poder decidir, ganhar o respeito de sua mulher. Porque a mulher deseja alguém que possa controlar. Eu faço essa imagem para olharmos para o quadro geral do que está acontecendo agora. A estrutura do poder branco hoje na América se define como a mente. Eles querem o controle do mundo. Eles vão e saqueiam o mundo. Eles são os policiais do mundo, exercendo o controle especialmente em relação às pessoas de cor.

 

Re-capturar a mente

O homem branco não pode conquistar sua virilidade, não pode se unir com o corpo, porque o corpo é negro. O corpo simboliza a escravidão e a força. É uma coisa biológica da maneira como ele vê. O escravo está em uma situação muito mais vantajosa, porque não ser um homem integral sempre foi encarado como uma coisa psicológica. E é sempre mais fácil fazer uma transição psicológica do que uma biológica. Se ele conseguir recapturar sua mente, recapturar seus culhões, então ele vai perder todo o medo e será livre para determinar seu destino. É isso o que está acontecendo nesse momento com a rebelião dos povos oprimidos do mundo contra o controlador. Eles estão reconquistando sua mente, e estão dizendo que têm uma mente própria. Estão dizendo que querem liberdade para determinar o destino de nosso povo, unindo, assim, a mente e seus corpos. Eles estão pegando de volta a mente do administrador onipotente, o controlador, o explorador.

Na América, as pessoas negras também estão dizendo que têm uma mente própria. Temos que ter a liberdade de determinar nossos destinos. É uma coisa quase espiritual, essa unidade, essa harmonia. Essa unidade da mente e do corpo, essa unidade do homem consigo mesmo. Algumas palavras de ordem do Presidente Mao, eu acho, demonstram essa teoria de unir a mente com o corpo no homem. Um exemplo é seu chamado para que os intelectuais fossem ao campo. Os camponeses no campo são todos corpos; eles são trabalhadores. E ele mandou os intelectuais para lá porque a ditadura do proletariado não tem lugar para o administrador onipotente; não tem lugar para o explorador. Então, por isso, ele deve ir para o campo para reconquistar seu corpo; ele deve trabalhar. E realmente se faz um favor a ele, porque as pessoas o forçam a unir sua mente e seu corpo colocando os dois para trabalhar. E ao mesmo tempo, o intelectual ensina às pessoas ideologia política, ele as educa, unindo assim a mente e o corpo no camponês.

 

O guerrilheiro

MOVEMENT: Você mencionou em outro momento que o guerrilheiro era o homem perfeito, e esse tipo de formulação parece se encaixar diretamente com o guerrilheiro como homem político. Gostaria de falar sobre isso?

HUEY: Sim. O guerrilheiro é um homem bastante singular. Isso se opõe às teorias marxistas-leninistas ortodoxas em que o partido controla o exército. O guerrilheiro não é apenas o guerreiro, o combatente militar; ele é também tanto o comandante militar quanto o teórico político. Debray diz “pobre da caneta sem as armas, pobres das armas sem a caneta”. A caneta sendo só uma extensão da mente, uma ferramenta para escrever conceitos, ideias. A arma é só uma extensão do corpo, a extensão de nossas presas que perdemos na evolução. Ela é a arma, as garras que perdemos, ela é o corpo. O guerrilheiro é o comandante militar e o teórico político, todos em um só.

Na Bolívia, Che disse que ele teve muito pouca ajuda do Partido Comunista de lá. O Partido Comunista queria ser a mente, o Partido Comunista queria o controle total da atividade guerrilheira. Mas ainda assim, não estavam tomando parte no trabalho prático das guerrilhas. O guerrilheiro, por outro lado, não apenas está unido com ele mesmo, mas ele também tenta difundir isso pelo povo educando os camponeses, dando uma perspectiva política a eles, apontando coisas, os educando politicamente, e armando o povo. Portanto, o guerrilheiro está dando as camponeses e trabalhadores uma mente. Porque eles já têm o corpo, e você tem uma unidade da mente e do corpo. As pessoas negras aqui na América, que por muito tempo tem sido trabalhadoras, reconquistaram suas mentes, e agora temos uma unidade da mente e do corpo.

MOVEMENT: Você estaria disposto a estender essa fórmula nos termos dos radicais brancos; a dizer que uma das suas lutas hoje é para reconquistar seus corpos?

HUEY: Sim. Achei que tinha deixado isso claro. O radical branco desse país, ao se tornar um ativista, está tentando reconquistar seu corpo. Sendo um ativista e não o teórico tradicional que determina um plano, como o Partido Comunista tem tentado fazer desde muito tempo, o radical branco desse país está reconquistando seu corpo. A resistência dos radicais brancos em Berkeley durante as últimas três noites é uma boa indicação de que os radicais brancos estão no caminho certo. Eles identificaram seus inimigos. Os radicais brancos integraram a teoria e a prática. Eles perceberam que o sistema americano é o verdadeiro inimigo, mas para atacar o sistema americano eles precisam atacar o policial comum. Para atacar o sistema educacional, eles precisam atacar o professor comum. Assim como o povo vietnamita, para atacar o sistema americano, deve atacar o soldado comum. Os radicais brancos desse país agora estão reconquistando seus corpos e eles estão também reconhecendo que o homem negro tem uma mente e que ele é um homem.

MOVEMENT: Você gostaria de comentar sobre como essa compreensão psicológica nos ajuda na luta revolucionária?

HUEY: Você pode ver que, até recentemente, em suas declarações as pessoas negras que não haviam sido esclarecidas [enlightened] definiram o homem branco chamando-o de “o HOMEM”. “O Homem” está tomando a decisão, “O Homem” isso, “O Homem” aquilo. A mulher negra achava difícil respeitar o homem negro porque ele nem mesmo se definia como homem! Porque ele não tinha uma mente, porque quem a capacidade de tomar decisões estava fora dele. Mas o grupo de vanguarda, o Partido Pantera Negra, juntamente com todos os grupos negros revolucionários, reconquistou nossas mentes e nossa virilidade. Assim, não definimos mais o administrador onipotente como “o Homem”, ou a autoridade como “o HOMEM”. Na verdade, o administrador onipotente, junto com todos os seus agentes de segurança, é menos do que um homem, porque NÓS os definimos como porcos! Eu acho que essa é uma coisa por si mesma revolucionária. Isso é poder político. Isso é o próprio poder. Na verdade, o que é o poder além da habilidade de definir os fenômenos e então fazê-los agir de uma determinada maneira? Quando as pessoas negras começam a definir as coisas e a fazer com que elas ajam da maneira desejada, então chamamos isso Poder Negro!

MOVEMENT: Você gostaria de falar mais sobre o que você quer dizer com Poder Negro?

HUEY: O Poder Negro é, na realidade, o poder do povo. O Programa Pantera Negra, o Poder Pantera, como chamamos, vai implementar esse poder do povo. Respeitamos toda a humanidade e pensamos que as pessoas devem controlar e determinar seus destinos. Elimine o controlador. Ter Poder Negro não humilha ou subjuga ninguém à escravidão ou à opressão. Poder Negro é dar poder às pessoas que não tiveram o poder de determinar seu destino. Defendemos e ajudamos qualquer pessoa que estiver lutando para determinar seu destino. E isso independentemente da cor. Os vietnamitas dizem que o Vietnã deve poder determinar seu próprio destino. Poder do povo vietnamita. Também gritamos pelo poder do povo vietnamita. Os latinos estão falando de América Latina para os latino-americanos. Cuba si, Yanqui no. Não é que eles não queiram que os ianques não tenham nenhum poder, eles só não querem que os ianques não tenham poder sobre eles. Eles poder ter poder sobre eles mesmos. Nós na colônia negra na América queremos poder ter poder sobre nossos próprios destinos, e isso é poder negro.

MOVEMENT: Muitos radicais brancos são românticos em relação ao que Che disse: “na revolução, ou se ganha ou se morre”. Para muitos de nós, essa é uma questão abstrata ou teórica. Para você é uma questão real e gostaríamos que você falasse um pouco sobre o que pensa sobre isso.

HUEY: Sim. O revolucionário não enxerga compromissos. Não vamos fazer acordos porque os problema é muito básico. Se transigimos uma vírgula, vamos estar vendendo nossa liberdade. Estaremos vendendo a revolução. E nos recusamos a continuar escravos. Como Eldridge diz em Soul on Ice, “um escravo que morre de causas naturais não irá mover duas moscas mortas na balança da eternidade”. No que nos diz respeito, preferimos estar mortos a continuar na escravidão em que estamos. Uma vez que fazemos acordos, não estamos fazendo acordos apenas com nossa liberdade, mas também com nossa humanidade. Percebemos que estamos indo contra um país altamente tecnológico, e percebemos que eles não são apenas tigres de papel, como Mao diz, mas tigres reais, porque eles têm a capacidade de chacinar muitas pessoas. Mas a longo prazo, eles se mostrarão tigres de papel, porque não estão alinhados com a humanidade; eles estão divorciados do povo. Sabermos que nosso inimigo é muito poderoso e que nossa humanidade está em jogo, mas sentimos que é necessário sermos vitoriosos para nos reconquistar, reconquistas nossa humanidade. E esse é o ponto fundamental. Então, ou nós fazemos isso ou não teremos liberdade alguma. Ou vencemos ou vamos morrer tentando vencer.

O estado de espírito do povo negro

MOVEMENT: Como você caracterizaria o estado de espírito das pessoas negras na América hoje? Elas estão desencantadas, esperando uma fatia maior do bolo, ou excluídas, não querendo se integrar em uma casa em chamas, não querendo se integrar na Babilônia? O que você pensa que será preciso para que elas se tornem excluídas e revolucionárias?

HUEY: Eu ia dizer desiludidas, mas não penso que em algum momento tivemos a ilusão de que tínhamos liberdade nesse país. Essa sociedade é definitivamente uma sociedade decadente e percebemos isso. As pessoas negras estão percebendo cada vez mais. Não podemos conquistas nossa liberdade no sistema atual; o sistema que está executando seus planos de racismo institucionalizado. A sua questão é o que teremos que fazer para estimulá-las para a revolução. Eu penso que isso já está sendo feito. É uma questão de tempo para nós, agora, educá-las em relação a um programa a mostrar a elas o caminho para a libertação. O Partido Pantera Negra é o farol de luz que aponta para as pessoas negras o caminho para a libertação.

Vocês noticiam as insurreições que têm acontecido por todo o país, em Watts, Newark, Detroit. Elas foram todas respostas do povo exigindo que tenham a liberdade de determinar seu destino, rejeitando a exploração. Agora, o Partido Pantera Negra não pensa que as revoltas ou insurreições tradicionais que aconteceram sejam a resposta. É verdade que elas são contra a ordem, que elas foram contra a ordem e a opressão em suas comunidades, mas elas eram desorganizadas. No entanto, as pessoas negras aprenderam com cada uma dessas insurreições.

Elas aprenderam com Watts. Estou certo de que as pessoas em Detroit foram educadas pelo que aconteceu em Watts. Talvez essa tenha sido a educação errada. Ela meio que errou o alvo. Não era bem a atividade correta, mas o povo foi educado pela atividade. O povo de Detroit seguiu o exemplo do povo de Watts, eles só adicionaram um exame cuidadoso a ele. O povo de Detroit aprendeu que o caminho para causar danos à administração é fazer coquetéis molotov e ir às ruas em grande número. Então, isso foi um caso de aprendizado. A palavra de ordem era “Burn, baby, burn”. As pessoas foram educadas pela atividade e ela se espalhou pelo país. As pessoas foram ensinadas a resistir, mas talvez de maneira incorreta.

 

Educar pela atividade

O que temos que fazer como uma vanguarda da revolução, é corrigir isso pela atividade. A grande maioria de pessoas negras são ou analfabetas ou semianalfabetas. Elas não leem. Elas precisam de uma atividade para se guiar. E isso é verdade de qualquer povo colonizado. A mesma coisa aconteceu em Cuba, em que foi preciso que doze homens com a liderança de Che e Fidel fossem para as montanhas e então atacassem a administração corrupta; para atacar o exército que eram os protetores e exploradores de Cuba. Eles poderiam ter panfletado na comunidade e poderiam ter escrito livros, mas as pessoas não responderiam. Eles tiveram que agir e as pessoas puderam ver e ouvir sobre isso e assim se educaram sobre como responder à opressão.

Nesse país, os revolucionários negros têm que dar um exemplo. Não podemos fazer as mesmas coisas que foram feitas em Cuba, porque Cuba é Cuba e os EUA são os EUA. Cuba tem muitos territórios para proteger a guerrilha. Esse país é fundamentalmente urbano. Temos que pensar em novas soluções para compensar o poder da tecnologia e da comunicação desse país; a sua habilidade de se comunicar muito rapidamente por telefones e telégrafos, e por aí vai. Temos soluções para esses problemas, e elas serão colocadas em uso. E não quero entrar nos detalhes disso, mas vamos educar pela ação. E temos que nos engajar na ação para fazer com que o povo leia nossa literatura. Porque ele não é de modo algum atraído pelas leituras nesse país; há leitura demais. Muitos livros deixam uma pessoa cansada.

 

Ameaça dos reformadores

MOVEMENT: Kennedy, antes da sua morte, e em menor grau Rockefeller e Lindsay e outros liberais da ordem, têm falado de reformar para dar ao povo negro uma fatia maior do bolo e, com isso, parar qualquer movimento revolucionário em desenvolvimento. Gostaria de falar sobre isso?

HUEY: Eu diria o seguinte: se um Kennedy ou Lindsay ou qualquer outro pudesse dar moradias decentes para o nosso povo, se ele pudesse dar pleno emprego para o nosso povo com um alto padrão, se ele pudesse dar total controle ao povo negro para determinar o destino de sua comunidade, se ele pudesse dar julgamentos justos no sistema legal entregando a estrutura para a comunidade, se ele pudesse dar um fim à exploração das pessoas por todo o mundo, se ele pudesse fazer todas essas coisas, então eles já teriam resolvido os problemas. Mas eu não acredito que no sistema atual, no capitalismo, eles possam resolver esses problemas.

As pessoas devem ter o controle

Eu não acho que as pessoas negras devam ser enganadas pelas suas falações, porque todos os que assumem um cargo prometem a mesma coisa. Eles prometem pleno emprego, moradias decentes, a Grande Sociedade, a Nova Fronteira. Todos esses nomes, mas nenhum ganho real. Nenhum efeito é sentido na comunidade negra, e as pessoas negras estão cansadas de se decepcionarem e serem enganadas. O povo deve ter o controle total dos meios de produção. Pequenos negócios negros não podem competir com a General Motors. Isso está fora de questão. A General Motors nos roubou e explorou a troco de nada por séculos e pegou nosso dinheiro e montou fábricas e se tornou gorda e rica e então fala em nos dar algumas migalhas. Queremos controle total. Não estamos interessados em ninguém prometendo que os proprietários privados vão de repente se tornar seres humanos e dar essas cosias para nossa comunidade. Isso nunca aconteceu e, baseado em evidências empíricas, não esperamos que eles se tornem budistas da noite pro dia.

MOVEMENT: Colocamos essa questão não porque pensamos que essas reformas são possíveis, mas para expor suas ideias sobre os efeitos que essas tentativas de reforma podem ter no desenvolvimento da luta revolucionária.

HUEY: Penso que as reformas não colocam nenhuma ameaça real. A revolução sempre esteve nas mãos dos jovens. Os jovens sempre herdam a revolução. A população jovem está crescendo em um ritmo muito rápido e eles estão muito incomodados com as autoridades. Eles querem o controle. Duvido que no atual sistema possa ser lançado qualquer tipo de programa que consiga comprar todos esses jovens. Eles não conseguiram fazer isso com o programa para a pobreza, a grande sociedade, etc. Esse país nunca conseguiu empregar todo o seu povo simplesmente porque ele está interessado demais na propriedade privada e no lucro. Um programa para a pobreza maior é simplesmente o que ele diz ser, um programa para manter as pessoas na pobreza. Então, não penso que exista uma ameaça real das reformas.

MOVEMENT: Gostaria de dizer alguma coisa sobre a organização dos Panteras, especialmente em termos de juventude?

HUEY: Os Panteras representam uma seção transversal da comunidade negra. Temos pessoas mais velhas, assim como pessoas mais novas. As pessoas mais novas, é claro, são as que são vistas nas ruas. Elas são os ativistas. Elas são a verdadeira vanguarda da mudança, porque elas não foram doutrinadas e não foram submetidas. Elas não foram forçadas a entrar na linha [beaten into line] como algumas pessoas mais velhas foram. Mas muitas das pessoas mais velhas percebem que estamos travando uma luta justa contra o opressor. Elas estão nos ajudando e estão assumindo uma parte no programa.

Prisão

MOVEMENT: Nos conte alguma coisa sobre as suas relações com os prisioneiros nas prisões.

HUEY: Os prisioneiros negros, assim como muitos prisioneiros brancos, se identificam com o programa dos Panteras. É claro que pela sua própria natureza como prisioneiros eles podem ver a opressão e eles sofreram nas mãos da Gestapo. Eles reagiram contra isso. Os prisioneiros negros todos se uniram aos Panteras, mais ou menos 95% deles. Agora, a cadeia é toda de Panteras e a polícia está muito preocupada com isso. Os prisioneiros brancos podem se identificar conosco porque eles percebem que não estão no controle. Eles percebem que tem alguém que os controla e ao resto do mundo com armas. Eles querem algum controle sobre as suas vidas também. Os Panteras na prisão estão educando eles e então vamos construir uma revolução no interior das prisões.

MOVEMENT: Qual foi o efeito dos atos for a da prisão pedindo por “Libertem Huey”?

HUEY: Reações muito positivas. Em um ato, eu não lembro qual, um par de encarregados, encarregados brancos, levantou um cartaz na janela da lavanderia dizendo “Libertam Huey”. Eles dizem que as pessoas viram e responderam a isso. Eles ficaram muito entusiasmados com os manifestantes, porque eles também sofrem um tratamento injusto das autoridades da condicional e da polícia aqui na prisão.

Aberto ou clandestino

MOVEMENT: Os esforços organizativos dos Panteras têm sido bastante abertos até aqui. Gostaria de falar sobre a questão de uma organização política clandestina em oposição a uma organização aberta, nesse ponto da luta?

HUEY: Sim. Alguns dos grupos nacionalistas negros pensam que eles têm que ser clandestinos porque eles serão atacados. Mas não achamos que se possa romantizar a clandestinidade. Eles dizem que somos românticos porque tentamos viver vidas revolucionárias, e não estamos tomando precauções. Mas dizemos que a única maneira de nos tornarmos clandestinos é se nos obrigarem a nos tornarmos clandestinos. Todos os movimentos revolucionários reais são tornados clandestinos. Olhe a revolução em Cuba. A agitação que estava acontecendo enquanto Fidel estava na escola de direito era bastante aberta. Até a sua existência nas montanhas era, por assim dizer, uma coisa aberta porque ele estava deixando que se soubesse quem estava causando o prejuízo e porque ele estava causando. Para pegá-lo foi uma outra história. A única maneira pela qual podemos educar o povo é dando um exemplo a eles. Pensamos que isso é muito necessário.

Esse é um período pré-revolucionário e pensamos que é muito necessário educar o povo enquanto podemos. Então, somos muito abertos sobre essa educação. Estamos sendo atacados e seremos ainda mais atacados no futuro mas não vamos para a clandestinidade até que estejamos prontos para isso, porque temos uma mente própria. Não vamos deixar nenhuma outra força nos dizer o que fazer. Entraremos para a clandestinidade depois que educarmos todo o povo negro, e não antes disso. Então, não será mais realmente necessário para nós entrar na clandestinidade, porque você pode ver negros em todas as partes. Teremos justamente o suficiente para nos proteger e a estratégia para compensar o grande poder que os homens armados da ordem tem e que estão planejando usar contra nós.

Organizações dos brancos

MOVEMENT:  Seus comentários sobre os prisioneiros brancos pareceram encorajadores. Você vê a possibilidade de organizar um Partido Pantera branco em oposição à ordem, possivelmente entre os brancos pobres e trabalhadores?

HUEY: Bem, como eu disse antes, o Poder Negro é o poder do povo, e quanto a organizar as pessoas brancas, damos às pessoas brancas os privilégio de ter uma mente e queremos que elas tenham um corpo. Elas podem organizar a elas mesmas. Podemos dizer o que elas têm que fazer, qual é a sua responsabilidade se elas vão dizer que são revolucionários brancos ou de revolucionários brancos desse país, e isso é se armar e apoiar as colônias em todo o mundo em sua luta justa contra o imperialismo. Mas qualquer coisa além disso, elas vão ter que fazer por si mesmas.

– panfleto publicado pelo The Movement

[1] [NT]: No original, “field nigger” e “house nigger”. Nas referência desse parágrafo, “negro da plantação” e “negro da casa” se referem, respectivamente, a esses termos. Em todo o resto do texto, traduzimos “black” como “negro” para corresponder à tradução usual de “Black Panther Party” (Partido Pantera Negra).

[2] [N.T.] Student Non-violent Cordinating Committee, Comitê Estudantil de Coordenação Não-violenta.

Tradução para o português brasileiro diretamente de edição na língua original (inglês), feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de The Black Panthers Speak. Haymarket Books, 2014.
Você pode contribuir enviando e-mails indicando erros de tradução ou sugestões de melhoria para autonomistablog@gmail.com
Este e outros textos de tradução do Coletivo Autonomista! estão disponíveis em: https://autonomistablog.wordpress.com/

Todo conhecimento deve ser livre. Por isso, não há restrições à cópia e distribuição desse material. Compartilhe!